A francesa Annie Ernaux venceu o Nobel de Literatura de 2022. Autora de livros como "Os anos" e "O acontecimento", foi agraciada pela Academia Sueca pela "coragem e acuidade clínica com que descortina as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal.”
- Entrevista com Ernaux: "Faço o mesmo trabalho de memória que meus pais e avós"
- 'O lugar': Leia resenha sobre best-seller da autora francesa
Publicada no Brasil pela editora Fósforo, Ernaux é uma das presenças confirmadas na Festa Internacional de Paraty, que começa no dia 23 de novembro (ela falará no sábado, 26, com a escritora gaúcha Veronica Stigger).
“É honra muito grande”, disse ela à imprensa sueca, logo após o anúncio. "Fiquei muito surpresa. Nunca imaginei que iria escapar da minha bolha como escritora. É uma grande responsabilidade... testemunhar o mundo com exatidão e justiça, e não apenas em termos de escrita".
Nascida na pequena cidade de Lillebonne, no norte da França, em 1940, ela se notabilizou por uma escrita essencialmente autobiográfica, que dialoga com a sociologia e a memória coletiva. Desde os anos 70, ela conta o mundo que a cerca a partir de sua própria experiência de "jovem mulher, confrontada com o desprezo social e a dominação masculina", conforme escreveu.
Suas investigações do passado são muito menos uma forma de encontrar o seu “eu” do que de perdê-lo em “uma realidade mais vasta, uma cultura, uma condição, uma dor”, como escreveu em “L’ écriture comme un couteau”, livro de entrevistas publicado em 2003.
Muito premiada também em seu país e até 2019 pouco conhecida no Brasil, a autora de 82 anos tem um projeto literário singular: usar a escrita para “salvar alguma coisa deste tempo no qual nós nunca mais estaremos”, como indica na conclusão de “Os anos”, seu primeiro livro a ser lançado por aqui.
A obra, que abrange quase uma vida inteira: da infância, nos anos 1940, até a maturidade, em 2007 é talvez o esforço mais ambicioso de sua bibliografia, composta por quase 30 títulos. Na época do lançamento do livro no Brasil, a autora explicou seu processo de escrita ao GLOBO:
— Não busco a totalidade da minha vida, mas a totalidade de uma época. Por isso, o livro se chama “Os anos” e não “Meus anos”. Através da minha vida, tento sentir a realidade de diversos períodos que atravessei. Isto é, seus preconceitos, seus pensamentos, seus acontecimentos, tudo que constitui o seu calor.
Na França, a imprensa a tratava como um "ícone" antes mesmo do anúncio do Nobel. Seu último livro, o breve "le jeune Homme", com apenas 37 páginas, foi um sucesso de vendas. Vendeu 72 mil exemplares no país até aqui.
No Brasil ela ainda é um fenômeno de nicho, mas com um público fiel. Tanto que, de de 2019 para cá, diversas obras de Ernaux ganharam tradução para o português, como "O lugar", "A vergonha" e "O acontecimento". Juntos, venderam 15 mil exemplares físicos (e 3 mil e-books).
"O acontecimento" foi adaptado para o cinema em 2021, com o filme ganhando o Leão de Ouro no Festival de Veneza. No polêmico livro, ela narra as marcas de um aborto clandestino, desde a dificuldade para a realização do procedimento até as feridas psicológicas deixadas nela. "Eu matei minha mãe em mim naquele momento", escreve ela.
No texto em que justificou o prêmio para a francesa, a Academia Sueca chamou "O acontecimento" de "obra-prima", entre outros adjetivos como "clinicamente contido", "brutalmente honesto" e "vitalmente lúcido".
"É uma narrativa em primeira pessoa, e a distância do eu histórico não é enfatizada como em muitas outras obras", explicaram os jurados do Nobel. "De qualquer forma, o Eu se torna um objeto através das restrições morais de uma sociedade repressiva e da atitude paternalista das pessoas com as quais ela é confrontada".