Cultura
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Por Renata Izaal — Rio de Janeiro


Opostos. Amber Heard e Johnny Depp no julgamento por difamação na corte de Fairfax County, na Virgínia: disputa jurídica transformou denúncia de violência doméstica em show transmitido ao vivo — Foto: Arte de Gustavo Amaral sobre fotos da Reuters
Opostos. Amber Heard e Johnny Depp no julgamento por difamação na corte de Fairfax County, na Virgínia: disputa jurídica transformou denúncia de violência doméstica em show transmitido ao vivo — Foto: Arte de Gustavo Amaral sobre fotos da Reuters

São poucas as coisas na vida que Freud não explica. E ainda em menor número são as construções culturais que não estão desenhadas na obra de Shakespeare. Desde 12 de abril, em um tribunal na Virgínia, EUA, o julgamento do caso de difamação envolvendo os atores Amber Heard e Johnny Depp tem construído ao vivo uma Lady Macbeth dos nossos tempos e provado que, como dizia o pai da psicanálise, “uma coisa nunca é só uma coisa.”

Vamos aos fatos. Amber Heard e Johnny Depp foram casados. Ele, hoje com 58 anos, um astro multimilionário, com carreira consolidada e capaz de arrastar multidões ao cinema. Ela, 36, atriz galgando a carreira em seus primeiros papéis de destaque, linda e loira, tal e qual uma mocinha de Hitchcock.

Mas o roteiro fugiu do glamour de Hollywood para a realidade nua e crua. Em 2016, Heard pediu o divórcio e uma medida protetiva contra Depp. O motivo? Violência doméstica. Dois anos depois, em um artigo para o The Washington Post, ela se apresentou como uma “figura pública representando abuso doméstico”, o que nos traz de volta ao tribunal na Virgínia. Depp, que não foi citado no tal artigo, diz que o texto o fez perder contratos e filmes, nega o abuso e entra com uma ação por difamação pedindo US$ 50 milhões. Sua defesa chama as alegações de Heard de “farsa”, e a atriz dobra a aposta, pedindo ressarcimento de US$ 100 milhões.

O que tem se visto — o julgamento tem transmissão ao vivo pela Court TV — é a exposição da intimidade do ex-casal em áudios, vídeos e trocas de mensagens conflituosas. Tudo acompanhado, na porta do tribunal e nas redes sociais, por uma legião de fãs sedentos por vingança desde que, em 2018, Depp perdeu o processo por difamação que moveu contra o tabloide britânico The Sun, que o chamou de “espancador de esposas”. Na época, o juiz responsável pelo caso examinou 14 incidentes de abuso e concluiu que 12 ocorreram, declarando que as palavras do The Sun eram “substancialmente verdadeiras”.

Atriz Amber Heard deixa a corte de Farifax, na Virgínia, depois dos argumentos finais das partes no processo por difamação movido por Johnny Depp contra ela  — Foto: Drew Angerer/Getty Images/AFP
Atriz Amber Heard deixa a corte de Farifax, na Virgínia, depois dos argumentos finais das partes no processo por difamação movido por Johnny Depp contra ela — Foto: Drew Angerer/Getty Images/AFP

Desde então, Amber Heard está presa em um redemoinho de ódio, que inclui notícias falsas, deep fakes e conteúdo misógino produzido e compartilhado por sites ultraconservadores e portais de cultura nerd. De sobrevivente de um relacionamento abusivo, a atriz se tornou uma Lady Macbeth da Virgínia — “bruxa”, “mentirosa” e “manipuladora” (palavras usadas contra ela no Twitter) — , que tirou um ídolo do caminho da virtude. Mais ou menos como a personagem de Shakespeare fez ao “envenenar” o marido com seus planos ambiciosos e sanguinários. Só que não estamos em uma ficção do século XVII.

— O que mais chama atenção é o altíssimo engajamento nas redes sociais de pseudoanalistas comemorando fatos que desconstruam a “verdadeira vítima de violência”. Há um regozijo quase pornográfico nisso, que é revelador da misoginia latente em relação a mulheres que se levantam contra homens poderosos — explica Silvia Chakian, promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo e autora de “A construção dos direitos das mulheres” (Editora Lumen Juris).

Bem longe da pérfida Álbion, o mundo de 2022 tem disputa de narrativas. No TikTok, cujo algoritmo faz tudo viralizar com maior intensidade, #JusticeForJohnnyDepp já soma mais de 15 bilhões de citações contra 52 milhões de #JusticeforAmberHeard. No Twitter, há milhares de posts com ameaças do tipo “Quem quer me acompanhar para matar Amber Heard brutalmente?”, publicado em 13 de abril, e o Bot Sentinel já identificou 340 contas criadas para difamar a atriz. A rede de ódio atingiu seus objetivos: ameaçada de morte, Heard só se desloca com escolta, o que levou a juíza responsável pelo caso a proibir o acesso ao tribunal de pessoas consideradas “ameaçadoras”, segundo o The New York Times.

O processo — que teve argumentações finais das partes na sexta-feira (27) mas até o fechamento desta matéria ainda não tinha um veredito —, mesmo visto com ceticismo, é um desfile de estereótipos de gênero e evidencia o quanto a complexidade dos casos de violência contra a mulher permanece desconhecida da maioria, como explica Silvia Chakian.

— Existem fatos incontestáveis, mas as pessoas dizem que “ela também o agrediu”. Esse nível de conflito não é incomum em relacionamentos abusivos. A violência afeta a saúde mental e induz a agressividade da própria vítima, até mesmo com ideações suicidas— diz a promotora, para quem imaginar papéis definidos é ilusório. — Ele foge do estereótipo do abusador, e ela se posiciona, não é a vítima vulnerável que esperam.

Uma coisa nunca é só uma coisa, não é mesmo, Freud?

Johnny Depp cumprimenta de longe os fãs ao deixar a corte de Fairfax, na Virgínia, depois das argumentações finais das partes no processo por difamação que move contra a atriz Amber Heard, sua ex-mulher — Foto: Drew Angerer/Getty Images/AFP
Johnny Depp cumprimenta de longe os fãs ao deixar a corte de Fairfax, na Virgínia, depois das argumentações finais das partes no processo por difamação que move contra a atriz Amber Heard, sua ex-mulher — Foto: Drew Angerer/Getty Images/AFP

Já que chegamos à Psicanálise, Suzana Schmidt Nolasco, membro titular da Formação Freudiana, afirma que a reação desigual a Amber Heard e Johnny Depp é fruto da construção histórica do papel da mulher.

—Das mulheres, esperamos que amem e perdoem. A misoginia contra Amber fala da aversão à mulher que quebra a obediência feminina. “Como ela não vai perdoar e acolher esse homem?” é a pergunta que muitos se fazem — explica a psicanalista, lembrando que essa mesma construção histórica pune mulheres que transgridem o que se espera do feminino. — É como escreveu Foucault: “A punição de quem transgride é a vigilância e o castigo.”

Então, por que, apesar de mensagens como “quero matar Amber e transar com o cadáver queimado dela para ter certeza que morreu”, é tão difícil para tanta gente aceitar que Depp pode ter cometido uma violência?

Desde o início do julgamento, Christian Gonzatti, doutor em Comunicação e pesquisador em diversidade e cultura pop, tem acompanhado o movimento nas redes e mapeado dados sobre o tratamento desigual dado a Heard e Depp. Descobriu um espetáculo transmídia, em que fãs do ator fazem remixes das imagens do tribunal e compartilham notícias falsas que o enaltecem. Há também falas dubladas e deep fakes para, por exemplo, parecer que Amber Heard cheirava cocaína quando, na verdade, assoava o nariz.

— Há pouquíssimo conteúdo contra ele nas redes. Os fãs de Depp negam a seriedade do caso, que envolve gênero e hierarquia de poder. Há inclusive grupos de incels (celibatários involuntários) que se apropriaram da defesa dele para desqualificar o #Metoo e as mulheres. É assustador como o julgamento está servindo a masculinistas ligados à extrema direita — descreve.

Não à toa, Maureen Dowd, colunista de política do New York Times, escreveu em um artigo que “os fãs de Depp parecem com os de Trump em sua lealdade cega e disposição para colocar de lado os fatos feios sobre seu herói."

E desacreditar Heard pode mesmo ter consequências para o movimento #MeToo, cujas denúncias levaram à condenação do produtor Harvey Weinstein a 23 anos de prisão por estupro e agressão sexual, em 2018. O roqueiro Marilyn Manson, por exemplo, seguiu os passos de Depp e processa a atriz Evan Rachel Wood, sua ex-noiva, por difamação. Ela, e outras seis mulheres, o acusam de estupro e agressões físicas.

— Isso encoraja abusadores, agressores e estupradores a tentarem “limpar seus nomes” via recursos e ações de indenização. O impacto negativo é para todas nós porque de nada adianta evolução legislativa se há desconfiança pré-deliberada da palavra da mulher. Nenhuma mulher jamais se projetou sendo vítima de estupro. Amber Heard perdeu o direito de viver em paz, e isso é assustador — conclui a promotora Silvia Chakian.

ATENÇÃO: se você está em situação de violência, ou conhece uma mulher que esteja, denuncie. A Central de Atendimento a Mulher recebe denúncias e também orienta mulheres em situação de violência, direcionando-as para os serviços especializados da rede de atendimento. Ligue 180.

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