Música
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Por Maria Fortuna — Rio de Janeiro

Uma carta de amor regada a saudade. E uma válvula de escape para expurgar traumas. É desses dois aspectos que se constitui “João” (Pias), álbum que Bebel Gilberto lança na próxima sexta-feira (25) em tributo ao pai, João Gilberto, morto em 2019.

Mais que clássicos da bossa, o disco é construído por canções que compõem a memória afetiva de uma filha. Alguém que foi testemunha da mágica acontecendo na sua frente —um gênio criando canções que revolucionariam a música brasileira — , mas que também se sentia preterida. Desejava a mesma atenção que ele, obsessivo com sua arte, dispensava a cada nota.

A capa de 'João' traz um beijo de Bebel na bochecha do pai, registro feito pela mãe da cantora, Miúcha — Foto: Reprodução
A capa de 'João' traz um beijo de Bebel na bochecha do pai, registro feito pela mãe da cantora, Miúcha — Foto: Reprodução

As mesmas notas que acabaram forjando Bebel como artista. E é nelas, nas notas escolhidas pelo pai, que ela agora crava o próprio timbre. Se evitou visitar o repertório de João em busca de trilhar o próprio caminho, ela mergulha nele de cabeça aos 57 anos. E atua como criadora já que, ao contrário de João, mestre em garantir a simbiose entre violão e a voz rouca, ela coloca seu canto cool em primeiro plano.

Dois álbuns serviram de orientação para o trabalho: “João Gilberto” (1973), do qual pinçou “Undiu”, “Valsa”, “Eu vim da Bahia”, e “É preciso perdoar”; e “Amoroso” (1977), de “Caminhos cruzados”. Há canções de outros álbuns. Cada uma ligada a um momento da vida de Bebel.

“Adeus América”, que foi a história de João (“não posso mais, que saudade do Brasil/ Ai que vontade que eu tenho de voltar”), se tornou também a de Bebel, que se divide entre Nova York e Rio. “Eclipse” lembra quando morou com os pais no México e a família montou um zoológico com um pavão selvagem que vagava pela casa enquanto João compunha.

A foto do beijo da filha na bochecha do pai, que ilustra a capa do disco — com projeto gráfico de Giovanni Bianco, produção de Thomas Bartlett e participação de Chico Brown (primo de Bebel) — é registro da mãe, Miúcha (1937 - 2018), de um desses momentos felizes.

Raros, como conta Bebel na entrevista abaixo, em que narra também o processo de gravação do álbum, no Reservoir Studios, em Nova York. Ela comenta ainda os novos capítulos da novela que se tornou a briga familiar em torno do legado de seu pai. O imbróglio, aliás, fez com que precisasse da autorização da inventariante, a advogada Silvia Gandelman (indicada pelo Ministério Público para assumir o processo) para registrar músicas de João.

Bebel nos ombros do pai em foto feita em 1969, como opção de imagem para um disco de João Gilberto — Foto: Helga Ancona
Bebel nos ombros do pai em foto feita em 1969, como opção de imagem para um disco de João Gilberto — Foto: Helga Ancona

No disco, você funde a figura do gênio, inventor da bossa nova, com a do João, pai que te colocou no mundo. Como foi para você essa junção?

É um pouco como se não fosse filha, olhasse a obra dele e pensasse o que seria a minha cara cantar. Cheguei a conclusão que, se não fosse filha, seria fã de qualquer maneira. Muita gente pensa que eu escutava e cantava essas músicas desde pequena. A única que eu cantava, “Chega de saudade”, eu não quis gravar. Cantei com ele “Lua e estrela” e outras, mas "Chega de saudade” não gosto nem de pensar...

Por quê?

Seria óbvio, bobão. Como “Garota de Ipanema” e qualquer outra muito conhecida. Mas também tem o fato de… Sofri tanto que não tinha como. Dá para ver naquele vídeo no Teatro Fênix como sofro.

O vídeo em que você, criança, canta com ele? Foi sofrido por causa da mania de perfeição do João? Ele te cobrou muito?

Você pode ver que tem uma hora em que levanto para ir embora e ele me segura, tipo “fica”. Aí, sento de novo. Além de tudo, não podia cantar em pé, tinha que estar na altura dele. Em vez de pedir um banco para mim, me botou no chão. Levantei para agradecer, ele ficou puto porque eu não tinha que ter levantado, tinha que ter agradecido sentada.

Depois, houve outras ocasiões. Cantamos “Linda flor” em um teatro que pegou fogo em São Paulo. O Caetano (Veloso) foi ver e espalharam que eu cantava bem. Comecei a ficar mais pop.

Aí, papai me convidou para cantar no Municipal de São Paulo. Ele ainda estava legal. Foi quando cantei “Lua e estrela” e ele cantou “Chove lá fora”. Cazuza foi, minha mãe, o Paulinho, meu namorado na época, a Marília (Mattos), o Moraes (Moreira). Eu estava com a minha trupe. Lembro de todo mundo enlouquecendo e eu, careta, tomando suco de laranja porque era super disciplinada.

Aí, o monstro foi crescendo... Fizemos outro show quando eu já morava em Nova York, foi o pior de todos. Eu já estava maior, e acho que ele ficou com ciúme, não foi legal.

De novo, veio a cobrança?

Cobrança e uma ‘podança’ também. Já estava com 24 anos, bicho. Era para cantar de joelhos o resto da minha vida? Eu não via isso assim, claramente, mas ficava puta. Claro que eram aquelas coisas: cantar em Miami a primeira vez, ganhar em dólar.

Eu ainda era modelo vivo na School of Visual Arts, onde fazia minha maior grana. Também era babysitter. Quando o papai me chamava para fazer coisas, eu nem pestanejava. Porque eu cantava naqueles clubezinhos… Era legal, mas ganhava o quê? Quatrocentos dólares?

Você perdeu pai e mãe nos últimos anos, só não é órfã por causa da música que seus pais te deixaram. Se sente assim?

Sim. Se não, ia ser complicado… Eu me criei muito. Apesar de terem me deixado essa herança toda, eles não cuidaram de mim como deveriam, né? Fiquei muito sozinha. Ninguém tem ideia. Jornalistas de fora do Brasil pensam que era uma família feliz, que cantava “Desafinado” todo dia… Claro que, de vez em quando, tinha isso. Tem até aquela história famosa do papai me falando sobre “Wave”: “Filhinha, já te mostrei como estou cantando ‘a primeira vez era saudade…’”. Mas não era sempre.

E tinha aquela coisa de ele ficar exercitando… Ele gostava que a gente ficasse calado, ouvindo. Eu ficava de saco cheio. Falava: “Ah, não, pai, vai começar de novo ‘Concerto em dó maior’? A gente vai ter que ficar calado quantas horas? Quatro?”. Hoje, entendo mais, me toco que estava tendo aula de música de graça e nem estava sabendo (risos).

O legado acaba sendo uma forma de acolhimento, de abraço, porque conecta você a memórias afetivas que te confortam, por mais que algumas também machuquem. Porque deve ser difícil não ter mais pai e mãe na vida...

Porra, bicho. É muito foda. Graças a Deus, dei sorte, Tive Marieta (Severo), Chico (Buarque)… Apesar de todos estarem mais distantes agora, todo mundo com seus problemas, envelhecendo. A vida não é mais aquela coisa de abrir as asas e ficar botando todo mundo embaixo. Então, tive que abrir minhas próprias asas, amadurecer.

Como equilibrou, no disco, a liberdade para criar, porque a gente percebe autoralidade na sua forma de cantar, com essa sombra da cobrança?

Eu fiquei na casa de uma grande amiga em Connecticut, e esse momento foi importante. Eu pegava o trem, descia na estação e ia andando para o estúdio com minha mala e a Ella (uma shih tzu que “só come comida de gente”, define Bebel. A cantora está viajando em turnê com uma assistente que prepara a refeição da cadela) sentada em cima.

Babel Gilberto: 'Eu tinha ciúme da música 'Isaura', porque meus pais não paravam de cantá-la' — Foto: Divulgação/ Vicente de Paulo
Babel Gilberto: 'Eu tinha ciúme da música 'Isaura', porque meus pais não paravam de cantá-la' — Foto: Divulgação/ Vicente de Paulo

Eu ia estudando, ouvindo, aperfeiçoando. Aquela paz entre a casa, o trem e o estúdio me deu uma preparação especial. Foi diferente do “Agora”, que eu morava perto, chegava atrasada, a gente tomava tequila e fazia música até mais tarde.

Uma gravação mais "família"...

Foi um disco que fiz sóbria. E também foi um disco sóbrio, com compromisso absurdo com a genialidade do papai. Faço muitas repetições dele, me preocupei muito de o (guitarrista) Guilherme Monteiro fazer as harmonias diversas que o papai fazia. Mas cantei diferente, troquei palavras. Sou espontânea. E fui me sentindo. Só faltava eu cantar tudo igual ao papai, né? Tinha que dar o toque Bebel.

Você me contou que, na gravação do “Agora”, ficava conversando com o Thomas sobre a vida e que os dois estavam encalhados…

Esse processo foi diferente. Eu tinha arrumado uns namorados, o céu começou a ficar mais azul, e ele estava casado. Todo mundo menos encalhado, mais apaixonado e objetivo, com menos tempo para ficar no estúdio pirando (risos). Foi mais produtivo. E eu tinha hora para voltar por causa do trem e da casa onde estava gentilmente hospedada. Não dava para acordar a galera. Para mim, foi incrível sair de Nova York e pegar o trem para Greenwich (Connecticut) porque tinha que acordar no dia seguinte para cantar tal e tal música. Foi mágico.

E as músicas desse disco conversam diretamente com a sua memória, isso deve ter sido forte...

Foi. Esse disco da capa branca ("João Gilberto", de 1973) era a minha relação com o meu pai. Porque foi quando eles me deixaram com a minha avó. Eu não tinha referência deles. E tinha a tal mixagem que nunca terminava, então, eles nunca voltavam para o Brasil. Eu morando com minha avó, morrendo de saudades… Ouvi tanto eles trabalhando no disco que ele virou meio a espinha dorsal. Agora, mais madura, escuto ele com ouvidos diferentes, como te disse, como uma admiradora.

Não sei como tive coragem de cantar “Caminhos cruzados”, do álbum "Amoroso", uma das minhas músicas favoritas da vida. Foi difícil demais, um parto. Cantamos num tom, depois em outro… Foi um disco bem pensado. Tudo que o “Agora” teve de maluco, de espontâneo, de a gente bebendo todas no estúdio, esse não teve. Foi um disco sóbria. As sessões eram todas entre 2 e 6 da tarde.

Quando você lançou “Agora”, com “O que não foi dito”, canção que compôs para seu pai com coisas que queria ter dito a ele, você ainda elaborava certa culpa por causa da interdição que impôs a ele. O que resta desse sentimento?

A carta de amor começou ali. No “Agora”, eu estava tentando me explicar, sofrendo para caramba. Agora, não que esteja amiga da saudade, mas estou mais madura. E sabendo usar isso. Em shows recentes, cantei “Corcovado” para a Astrud (Gilberto, ex-mulher de João e mãe de João Marcelo, irmão de Bebel). Em Minneapolis e na Filadélfia, cidade onde ela viveu.

Deu medo, era a maior responsa, mas as pessoas amaram, aplaudiram de pé. Foi um gatilho na verdade, mas uma coisa boa também. Por que não fazer uma homenagem a ela? Tanta gente não entende se sou filha, o que somos. Pensei: "Abraça logo e faz uma homenagem". Uma pessoa que teve essa importância enorme na música.

Eu a achava linda, estranha, exótica. Mamãe morria de ciúme, implicava comigo. Então, tem toda essa coisa misturada. Acho que estou fazendo as pazes com tudo. Não estão feitas completamente ainda, mas estou começando.

E usando essas histórias no trabalho também, o que é super legítimo, você ganhar dinheiro com uma história que é sua...

Também. Não estou sendo comercial, estou me inspirando numa história que é minha. As pessoas não entendem: “Ah, mas a turnê é grande, cansativa”. É, mas é a chance que eu tenho. Vamos fazer aquele pezão de meia bom (risos).

Poucas vezes você revisitou o repertório do seu pai. Ele precisou morrer para você ter coragem de fazer isso…

Total. Não conseguiria, não teria capacidade de fazer esse disco se ele estivesse vivo. Imagina?

Por causa da cobrança?

Claro. O sofrimento do “Chega de saudade”… Foram anos de teatro para eu poder fazer as pazes com o palco, pisar nele sem medo, sem olhar para ele com aquela cara de “você vai errar", entendeu?. Me soltar. Hoje em dia… Tem que ver o show, está bonito, bicho solto.

Quando olha para trás, sem a implicância justificada da criança que queria atenção, e se dá conta da magnitude da arte que estava sendo criada na sua frente, o que sente?

Hoje vejo tudo diferente. Mas tem uma história boa com “Isaura”, uma música que cantei recentemente, em um show em São Paulo. Eu tinha muito ciúme dessa música. Porque era uma loucura, meus pais começavam a cantá-la e não paravam mais. Era “ai, ai, ai, Isaura” e eu fala “não, de novo, não!” (risos).

Nos raros momentos juntos, você queria fazer parte, né, trocar?

Foram temporadas curtas. Na verdade, nunca tive muito meu pai e minha mãe juntos. Na época em que fui para Nova York ficar na casa do Stan Getz (saxofonista americano com quem João gravou o disco "Getz/Gilberto", de 1964), eles ficavam ensaiando sem parar. Tinha uma hora que eu estava a fim de ver uma televisão junto, sabe? Qualquer coisa... Ficava frustrada porque queria um papo normal.

Em 2019, você me disse que não aguentava mais brigar com seus irmãos na Justiça. As coisas se acalmaram? Fez as pazes?

Não tem como fazer as pazes porque penso completamente diferente. Não existe relação, continua tudo igual, e o processo do inventário corre em segredo de Justiça. Adoraria não ter sido tão criticada e ter podido cuidar de tudo. Acho que a situação seria outra agora. Porque as coisas não andam.

O inventário ainda não foi finalizado por discordâncias entre os herdeiros?

Há questões que dependem de decisões dos outros herdeiros, cada um pensa de uma forma, não se chega a um consenso por motivos idiotas. Nada é concluído nunca. Desde uma história de pirataria, que poderia fechar acordo com a gravadora, mas acham que o valor não é suficiente e querem processar. Com que dinheiro? Com o que nem existe? É uma situação chata porque quem sai perdendo é o papai.

Uma coisa boa foi esse disco lançado pelo Sesc (“Relicário” recupera o áudio de uma apresentação ao vivo do artista, em 1998), superbem gravado, mixado, masterizado. Na época que eu fui curadora do papai, aprovei esse disco com ele. Então, acabou que ele não caiu na partilha, já tinha sido aprovado por todos.

Precisou pedir autorização aos outros herdeiros para gravar músicas do seu pai?

Fui autorizada pela inventariante, a doutora Silvia.

Sobre a novela de 25 anos com a EMI (hoje Universal), acusada de alterar a mixagem de gravações clássicas do João, saiu novo laudo judicial que aponta o valor de R$ 150 milhões que a gravadora tem que indenizar os herdeiros. Como recebeu a notícia?

Nem perco meu tempo pensando nisso, juro. Se rolar… Porque vira aquela expectativa e nunca dá em nada.

Além de triste, essa briga toda impede que a obra do João circule. Isso te deixa nervosa?

Muito. Quero resolver, quero que as músicas toquem, que as propostas de filmes aconteçam, que o nome do papai rode. No Spotify está aquela bagunça. Pessoas interessantíssimas querem fazer coisas. Nelson Motta, Conspiração, Daniela Thomas… Se dependesse de mim, não tinha mais briga nenhuma, já estava tudo resolvido, já tinha feito acordo inclusive com o banco (Opportunity). Vou fazer 60 anos daqui a três anos, Maria, não aguento mais! Quero ir pra Bahia!

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