Há 25 anos, João Gilberto viveu um dia feliz — aparentemente para ele e, certamente, para o público. Chegou cedo ao Sesc Vila Mariana, em São Paulo, e, para o seu terceiro dia de shows na casa inaugurada poucos meses antes, manteve suas exigências da temporada: um banco para piano, um tapete persa, uma mesa para violão e uma acústica perfeita. Ao que tudo indica, João foi atendido, porque se mostrou generoso, com muitos bis e pedidos de coro para o público, na longa apresentação daquela noite, cuja gravação enfim está sendo lançada num álbum duplo de 36 faixas: “Ao vivo no Sesc 1998”, que pode ser ouvido a partir desta quarta-feira (5) na plataforma Sesc Digital (dia 26, sai em CD e em outros streamings, e ainda há planos de editá-lo em LP).
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E o que significa um João Gilberto de bom humor, com a experiência e a boa forma dos seus 66 anos? É nada menos que a música popular brasileira condensada em uma cápsula atemporal: a voz-e-violão desse cientista que sintetizou a bossa nova a partir do samba e de muitas milongas mais. Tudo o que o fez ser conhecido como João está lá, em cuidadosa gravação digital (o teatro acabara de inaugurar sistema de cabeamento que ia do palco à sala de controle), esmerilhada com os recursos tecnológicos de hoje, de maneira a realçar cada uma das sutilezas da sua arte minimalista na forma e maximalista no conteúdo.
Num brilhante exercício de curadoria e invenção, João expõe a sua visão do que é essencial na música brasileira: o amor, o sorriso e a flor, a mistura de raças, a saudade, o desengano e um tanto de tristeza dão o tom em sambas que podem ser simples (mas jamais invulgares), ou sofisticados, com a marca de gênios como Tom Jobim ou Dorival Caymmi. Tem espaço para todos na lente do intérprete/criador, que começa a jornada pelo “Violão amigo”, de Bide e Marçal, e envereda pelo monumento de “Isto aqui o que é?”, de Ary Barroso.
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“Tô achando duras as cordas do violão, será alguma coisa aí?”, diz João, antes de ir para “Pra que discutir com madame” (Janet de Almeida e Ary Vidal), numa das mais bem-acabadas amostras de como violão e voz podem seguir trilhas distintas e não se perderem um do outro. A liberdade de mover o canto pela moldura do instrumento ao sabor do sentimento, ele exerce ainda sobre clássicos como “Corcovado” (Tom), “Retrato em preto e branco” (Tom e Chico Buarque) e “Carinhoso”, de Pixinguinha — sem perder a cadência ou a ternura, jamais.
Na hora de “Chega de saudade” (Tom e Vinicius), o show vira festa, com direito a coro do público (pedido pelo artista) em “Wave” e “Esse seu olhar” (ambas de Tom). São felicidade pura para o ouvinte de 2023, junto com faixa inédita em discos de João: “Rei sem coroa”, de Herivelto Martins e Waldemar Ressurreição, lançada hoje como single nas plataformas. Ela vem humilde em seu um minuto e meio de duração, mas reverbera forte na voz de João, em versos lapidares como “bem sei que me fizeram rei, mas eu não sou” e “o samba é minha nobreza”.
Cotação: ótimo.