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Análise: entender Nego do Borel é olhar o Brasil no olho

Beijo gay de 'Me solta' e foto com Bolsonaro não deveriam caber na mesma figura - mas cabem
Nego do Borel em cena de 'Me solta' Foto: Reprodução
Nego do Borel em cena de 'Me solta' Foto: Reprodução

RIO — Metido num top justinho à la Lacraia, Nego do Borel beija um cara na boca no clipe de "Me solta". Sorridente fazendo um hang loose, Nego do Borel posa para foto, resgatada na internet, ao lado de Jair Bolsonaro — político que não esconde suas posições homofóbicas, pelo contrário, se orgulha delas. As duas imagens, lado a lado, causaram curto circuito nas redes sociais desde que o clipe foi lançado, nesta segunda-feira.

Qualé a desse cara? Libertário ou oportunista ("Em troca de dinheiro e um cargo bom/ Tem mano que rebola e usa até batom", diz um verso dos Racionais MCs lembrado em meio à polêmica)? Malandro atrás do "pink money" da comunidade LGBT ou um mero perdido sem noção? Porta-voz do empoderamento ou humorista tosco de piada bicha-pão-com-ovo?

"Me solta, porra".

Nego do Borel é um preto da favela. Nego do Borel é uma celebridade. Nego do Borel é um alucinado. Nego do Borel não rasga dinheiro. Tudo ao mesmo tempo, um por cima do outro, sem limites determinados entre cada um, num equilíbrio que desafia a lógica — como a geografia do Borel que serve de cenário ao clipe. Nego do Borel não é "ou" — é "e". Nesse movimento, confunde o maniqueísmo dos algoritmos "progressistas" ou "conservadores", da "esquerda" ou da "direita".

"Me solta, porra".

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Não se nega aqui a contradição. Ela existe. Beijo gay e Bolsonaro não deveriam caber na mesma figura, se formos pesar racionalmente. Porém, cabem — o Brasil real desafia a racionalidade de analistas bidimensionais não é de hoje. Nego do Borel não é exceção. Pessoas que hoje declaram voto em Bolsonaro para a Presidência votarão em Lula se ele puder concorrer. Eleitores convictos de Lula votarão em Bolsonaro se Lula permanecer afastado do processo eleitoral. Entender do que é feito um Nego do Borel — quantos quilos de ignorância política, de sensibilidade artística, de sabedoria da rua, de leis do mercado, de falência da educação pública, de racismo na pele — é fundamental pra que possamos olhar o país no olho, sem amarras teóricas caducas.

"Me solta, porra".

Quando canta "deixa eu dançar, deixa eu dançar" e se desvencilha do beijo ao qual se entregara inteiro segundos antes, Nego do Borel afirma exatamente que não quer cumprir o que o cara que o beija espera dele. Ele está solto. Beija as expectativas de Bolsonaro e as do movimento LGBT no mesmo baile — e se desvencilha de ambas.

"Me solta, porra".

Nego do Borel seria o tal intelectual orgânico, se fosse um intelectual. Nego do Borel é orgânico — ponto. Os intelectual pira.

"Me solta, porra".

"Gil fundiu a cuca de vocês" — gritou Caetano Veloso para a plateia (de "esquerda" e "progressista") que o vaiava em 1968. Hoje a classe média ilustrada não funde as cucas. Quem funde as cucas é a bunda com celulite de Anitta em "Vai malandra". É Wesley Safadão evangélico e safadão. É Marília Mendonça negando ser feminista — e sendo. É Neymar com sua ética do drible, seus dribles na ética e seu corte de cabelo desvelando racismos e classismos. E quando se fala aqui em fundir as cucas, estamos falando das cucas do andar de cima ilustrado. O andar de baixo passa ao largo disso. Ali, com a liberdade de quem ergueu o samba e o futebol brasileiro — maiores realizações deste país —, só se ouve, em cada movimento, um coro:

"Me solta, porra".