Martha Batalha
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Martha Batalha

Escritora e jornalista.

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Martha Batalha

Escritora e jornalista

No início do ano uma amiga perguntou se eu teria uns minutinhos para falar. Conversa de minutinho é sempre séria, vai além do oi-tudo-bem que nos define na superfície. Parei tudo para falarmos. Um pouco sem graça, ela me contou que havia engravidado e iria abortar.

— O DIU não funcionou — ela disse em seguida, como que pedindo, pela explicação, para não ser julgada. —Eu não tenho condições de ter o quarto filho.

Ela estava angustiada e dividida. Certa sobre a decisão de interromper a gravidez, mas incapaz de conciliá-la com o instinto materno e a formação religiosa.

Como PhD em assuntos feministas, eu enveredei por um discurso misturando o óbvio ao lugar comum, em máximas que nós duas já estávamos carecas de saber. Disse que ela tinha o direito de decidir o que fazer com o próprio corpo, que um aborto não deve ser motivo de culpa, mas questão de livre arbítrio. É uma escolha da mulher, imune a julgamentos. Passa ao largo do que é certo ou errado.

Mas isso também aconteceu: uma parte em mim questionava o meu discurso. Partezinha de nada, mas ainda assim, eu. Era a minha versão 1987, de meias três quartos, sapatos de boneca e uniforme quadriculado, que ainda passeia impune e segura pelos cantos escuros dos meus recônditos. Um algo que persiste como ranço, nele os resquícios da formação em colégio religioso, da doutrinação católica, da tradição familiar, do condicionamento em aceitar dogmas sem jamais questioná-los por respeito e temor a uma autoridade, a um deus, a uma tradição que pela própria regra do não questionamento (eis aqui um ardil-22) eu só consegui entender e condenar quando me libertei da doutrinação.

Em vez de ignorar, eu me vi interessada nessa micro parte. Esse naco tão oposto a mim mesma, pequenino e desbotado, mas ainda capaz de despertar reações. Um naco que incomodava, uma unha encravada do ego. Ou (essa imagem é ainda melhor) uma fofolete de mim mesma. Cheia de certezas, tradicionalíssima, reconhecendo sua colega fofolete nos recônditos da minha amiga, ela tão culta e bem resolvida, mas sentindo na hora de exercer um direito a culpa e o peso da tradição.

Na teoria o feminismo é lindo. Na prática ele tem como inimigo nós mesmas em versão fofolete. Nossa pequeníssima versão, constrita e insegura. Está em nós porque é difícil se desfazer por completo de crenças arraigadas, e porque a vida não é feita de preto no branco, mas dos cinzas da cultura, da tradição, da sociedade, da educação e da família. Sairá de nós quando for reconhecida, quando a gente aguentar o incômodo e assumir que ela existe. É identificar sua fofolete, e perguntar se ela tem uns minutinhos (daqueles, de conversa séria). Dizer meu bem, isso de ter culpa por um aborto é tão... velho. Não combina com o meu guarda-roupa, o meu momento, com as minhas escolhas. Vai contra o comprometimento das mulheres de agora para com as do futuro, de não passar adiante um remorso estéril. Não passar adiante a culpa. Sai daqui, fofolete carola, volte para um lugar do seu tempo, volte para... uma loja da Mesbla.

(Minha amiga conseguiu fazer o aborto. Ela tem o mais importante para realizar o procedimento no Brasil. Ela tem dinheiro.)

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