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Por — Buenos Aires

Ela é uma das escritoras argentinas mais lidas nas últimas décadas. Terceiro nome mais traduzido de seu país, atrás apenas de Borges e Cortázar, Claudia Piñeiro, 64 anos, teve vários de seus livros adaptados para filmes e séries, e, recentemente, tornou-se uma liderança importante na luta das mulheres de seu país para conquistar direitos como a lei de legalização do aborto, aprovada em 2020. Dois anos antes, publicou “Catedrais” (Primavera Editorial), romance que chega agora ao Brasil e conta uma história marcada por um aborto clandestino.

— Eu estava escrevendo o romance e participando de marchas e debates no Congresso. E sou a mesma pessoa, tudo acaba se misturando — diz Claudia, que também está lançando aqui “Elena sabe” (Morro Branco), romance policial sobre a busca da liberdade individual que foi finalista do International Booker Prize, e vem ao Brasil para A Feira do Livro, que começa em 29 de junho, em São Paulo.

A autora fala ao GLOBO na sala de seu apartamento no bairro de Palermo, com vista espetacular para o Jardim Botânico de Buenos Aires. Nesse lugar, ela respira. Mas quando entra nas redes — nas quais é muito ativa — ou sai na rua, surge o medo de reações irracionais num país onde cresce o discurso do ódio. “As mulheres não podem baixar a guarda”, frisa a autora. “A Argentina teme o retrocesso”, diz Claudia, engajada também na defesa de tudo o que se relaciona à cultura de seu país, admirada no mundo todo. A seguir, os principais trechos da entrevista.

“Catedrais” foi publicado em 2018, dois anos antes da legalização do aborto na Argentina. Você já estava envolvida nesta luta?

Sim, e já havia tocado no assunto em outros livros. Participar da campanha me fez ver outras coisas, como a questão da hipocrisia, o intrometimento da Igreja em questões da vida privada. Tudo aparece no livro. Eu estava escrevendo o romance e participando de marchas e debates no Congresso. E sou a mesma pessoa, tudo acaba se misturando.

Como o tema entra na trama?

Ana, personagem principal, é uma moça que, 30 anos antes do tempo presente do livro, aparece morta, desmembrada, em um terreno baldio. No meio do romance, você descobre que Ana fez um aborto clandestino e morreu nesse aborto, tendo sido depois atacada violentamente. Mas esse é apenas um pedaço da história, tem muito mais. Tudo o que aparece depois é terrível. Quem matou Ana? Por que a atacaram depois do aborto? O que aconteceu naquela noite e nos dias anteriores? Essas perguntas são feitas 30 anos depois. Tudo isso tem a ver com questões privadas e familiares.

Seus livros são uma forma de resistência?

Dou minha opinião, sempre, e sou atacada. Mas me sentiria desconfortável se não falasse. Falo a favor das universidades, da ciência, das bibliotecas. Estão acontecendo coisas muito graves. Temos jornalistas e artistas agredidos pelo presidente. O discurso de ódio cria um clima que habilita a violência. Não vivi agressões físicas, mas nas redes sociais recebi vídeos de estupros e mensagens dizendo que isso vai acontecer comigo. Outras mensagens com Ford Falcon verde (modelo usado pela ditadura argentina para sequestrar opositores), fotos de pênis dizendo barbaridades. É a resposta a qualquer coisa que eu diga.

Ato de 2018 em Buenos Aires a favor da legalização do aborto na Argentina, que ocorreu dois anos depois — Foto: Raul Ferrari/AFP
Ato de 2018 em Buenos Aires a favor da legalização do aborto na Argentina, que ocorreu dois anos depois — Foto: Raul Ferrari/AFP

A Argentina ainda é um país conservador?

A Argentina ainda tem setores de sua sociedade muito conservadores. Minha geração sempre viu o Brasil como um país muito mais livre, em muitos sentidos. Na campanha pela legalização do aborto, viajei muito pelo interior da Argentina, e vi uma evolução positiva entre os mais jovens. Mas o conservadorismo ainda tem um peso grande, e a Igreja, uma influência enorme. Lembro de ter tido conversas com senadores nas quais perguntava o que eles fariam se uma de suas filhas tivesse uma noite de amor, ficasse grávida, mas optasse por não ter o filho. A resposta era “minha filha nunca faria isso”. Foi um trabalho duro penetrar nessas cabeças.

Negação ou hipocrisia?

Quando eu era mais jovem as pessoas diziam: “Vai tirar”. Mas não se dizia a palavra “aborto” abertamente. A palavra era sussurrada. Aos poucos, pessoas que tinham abortado começaram a contar suas histórias. Foram habilitadas conversas dentro das famílias, e assim a hipocrisia foi diminuindo. Tanto que, antes da aprovação da lei, o país já havia mergulhado em um debate muito amplo. Lembro de estar na província de Córdoba, em debates sobre o aborto, e uma mulher adulta se aproximou com lágrimas nos olhos e me contou que, pela primeira vez, tinha falado sobre o aborto que fez aos 18 anos. Quanta dor nesse silêncio. O silêncio gera um trauma. O aborto não é algo que você deseja, mas fica a culpa.

Em “Catedrais”, cada personagem tem seu momento de contar o que sabe sobre a morte de Ana. Quis dar a eles uma oportunidade de falar?

Cada um conta o que sabe e o quão responsável se sente. Algumas pessoas não tiveram nada a ver com o que aconteceu. Outras têm grande responsabilidade, e não reconhecem. O pai, um personagem que amo porque, apesar de sua idade, muda muito após a morte da filha, faz uma reflexão, diz que deveriam ter se falado mais. Ele não teve responsabilidade, mas assumiu uma responsabilidade. O livro também fala sobre a falta de resposta da Justiça, comum em tantos países da América Latina.

A Argentina trouxe esperança para mulheres de países, como o Brasil, onde ainda está longe a possibilidade de legalização do aborto.

Sim, sinto isso quando vou a países da região. Mas a Argentina também teme o retrocesso. O clima está ruim, temos uma sensação, como dizia Simone de Beauvoir, de que nunca faltará uma crise política ou econômica que tire nossos direitos. Não tenho dúvidas de que, embora seja difícil derrubar uma lei, buscarão desfinanciar um projeto. O aborto é legal, seguro e gratuito na Argentina. Mas se o hospital não tiver os medicamentos usados para o procedimento a lei não poderá ser cumprida. E, até onde sei, o governo não está comprando os medicamentos.

A sociedade argentina toleraria esse retrocesso?

Acho que não, inclusive entre quem elegeu o atual governo. Mas outros que não votaram neste governo estão esperando esse retrocesso. O problema é que muitas coisas que pensei que não seriam possíveis estão acontecendo. Não podemos baixar a guarda. Temos de estar alertas. Todos os dias o governo entrega capital simbólico, porque não pode entregar resultados, sobretudo em matéria de economia. Esse capital simbólico que Milei entrega em geral tem a ver com os direitos das mulheres e da minorias, ou com a cultura. O presidente convenceu seus seguidores de que as pessoas que fazem cultura vivem do Estado, mesmo que nunca tenhamos recebido nada do Estado. Esvaziaram o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais, a Biblioteca Nacional, e vão entregando esse capital simbólico aos que acreditam que assim o Estado vai ganhar a guerra cultural. É tudo gravíssimo.

‘Catedrais’
Autora: Claudia Piñeiro. Tradutor: Marcelo Barbão.
Editora: Primavera. Páginas: 256. Preço: R$ 69,90.

‘Elena sabe’
Autora: Claudia Piñeiro. Tradutora: Elisa Menezes.
Editora: Morro Branco. Páginas: 160. Preço: R$ 59,90.

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