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Por — Rio de Janeiro

A essa altura do campeonato, todas nós sabemos que “não se nasce mulher, torna-se mulher” ou ainda que “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. São palavras de Simone Beauvoir, a filósofa francesa que, em 1949, ao publicar o agora clássico “O segundo sexo”, deixou meio mundo em choque ao defender que “nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualifica o feminino”.

Desde então, seu pensamento tem sido acionado pelos diversos movimentos globais que defendem a autonomia das mulheres, ao mesmo tempo em que tem feito ultraconservadores fermentarem ódio contra sua crítica implacável à opressão moral e religiosa das mulheres, sem falar do pânico moralista diante de sua relação com o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre (1905-1980), muito distante do comportamento esperado de uma mulher “bela, recatada e do lar”.

Hoje, 38 anos após sua morte, Beauvoir é presença certa nas redes sociais. Nesta sexta-feira, Dia Internacional da Mulher, mais uma vez os feeds foram inundados com sua imagem dizendo “que nada nos defina, que nada nos sujeite; que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre” (um pensamento modificado do original, que está no romance “A força da idade”). Será que ela fala às novas gerações de mulheres? E o que Simone de Beauvoir ainda tem a nos dizer?

— Tudo! — afirma, sem meias palavras, a atriz Fernanda Montenegro, que inicia nesta sexta-feira temporada no Teatro Prio, onde fará leituras de “A cerimônia do adeus” até o dia 31 de março.

Contradições femininas

No livro de 1981, o último publicado por Beauvoir em vida, ela relata os anos finais de Sartre, tecendo uma reflexão sobre velhice, morte, amor e luto. Tudo isso usando seu diário pessoal, recolhendo relatos sobre o filósofo e também usando entrevistas dadas pelo homem que foi seu companheiro durante 51 anos. Fernanda, que já encenou textos de Beauvoir antes, no monólogo “Viver sem tempos mortos”, que estreou em 2009 e se manteve em cartaz por ao menos dois anos, destaca a importância da autora:

Eu tinha 20 anos em 1949 quando Simone de Beauvoir apresentou ao mundo “O segundo sexo”. Aqueles dois volumes esclareceram e coordenaram, para mim, o “ser mulher”. É uma obra, para sempre, referencial. Passei a tê-la como leitura sadiamente constante, e “A cerimônia do adeus” é parte fundamental dessa imensa mulher.

Se nossa grande atriz leva aos palcos o último texto de Beauvoir, a obra inicial da francesa também está de volta. A Nova Fronteira trabalha na reedição de todo o catálogo da filósofa, projeto que se inicia agora com os lançamentos de “A convidada” e “O sangue dos outros”, os primeiros romances de Beauvoir, originalmente publicados em 1943 e 1945. Em seguida, virão “A mulher independente”, um extrato de “O segundo sexo”, em que ela aborda os caminhos para a libertação feminina, e “A velhice”, ensaio de 1970, em que Beauvoir faz uma revisão histórica da última fase da vida humana e propõe uma mudança radical na forma de encará-la.

A antropóloga Mirian Goldenberg, uma das maiores estudiosas da obra de Beauvoir no Brasil, assina o prefácio de “A convidada”, espécie de romance autobiográfico em que a filósofa coloca em cena o triângulo amoroso formado por um casal da intelectualidade parisiense e uma mulher mais jovem, situação que Beauvoir viveu com Sartre e Olga Kosakiewicz, sua aluna em uma escola secundária de Rouen.

—Em “A convidada”, ela fala de seus dramas. Ao mesmo tempo em que luta por liberdade, tem ciúme e inveja da mulher mais jovem. Ela queria ser única na vida do Sartre, dizia que eles eram um “nós inquebrantável” — explica Goldenberg. — Beauvoir mostra contradições com as quais nós sofremos até hoje, esse conflito entre a luta por autonomia e o desejo de sermos amadas, admiradas, únicas.

‘Amor necessário’

A relação com Sartre é central em “A cerimônia do adeus” e em “A convidada”. É interessante notar que enquanto discutimos, hoje, relações fluidas, casamentos abertos e a não monogamia, ela já experimentava, nos anos 1940, formas não tradicionais de relacionamento, buscando libertar-se da moral burguesa e católica que oprime mulheres ao mesmo tempo em que reconhecia em si manifestações da feminilidade. Tudo exposto na escrita autobiográfica que forma a maior parte de sua obra e teorizado em “O segundo sexo”, no qual Beauvoir questiona: “Como encontrar a independência no seio da dependência?” — questionamento feito ainda hoje, sobretudo por mulheres cisgênero heterossexuais cansadas da falta de compreensão de seus parceiros, da vida sexual pouco aventurosa do casamento e do peso do trabalho de cuidado.

Beauvoir dizia que Sartre era o “amor necessário”, os outros eram “amores contingentes”. Ao lado dele, ela encontrou cumplicidade para crescer como mulher e filósofa. Eram, nas palavras dela, a “fraternidade absoluta”.

Outra reedição de Simone Beauvoir, o romance “O sangue dos outros” acompanha um jovem casal na Paris sob ocupação nazista. Juntos, ela, sonhadora e individualista, ele, disposto a juntar-se à Resistência, questionam o amor e as consequências das decisões individuais diante da coletividade.

Beauvoir e Sartre permaneceram na capital francesa durante boa parte da ocupação, e alguns biógrafos afirmam que ela não hesitou em buscar resenhas positivas para “A convidada” e “O sangue dos outros” em jornais pró-nazistas, mesmo que tenha sido demitida da Sorbonne, onde ensinava Filosofia, pelos aliados de Hitler, como lembra a historiadora Mary del Priore, autora do prefácio da nova edição de “O sangue dos outros”:

— Beauvoir não explora os horrores da Guerra ou da Ocupação, a perseguição aos judeus, inclusive a uma ex-amante do casal, Bianca Biennefeld, ou o papel da Resistência. É como se a Paris ocupada não existisse — explica Del Priore. — Mais tarde, em “A força da idade”, Beauvoir vai explicar que ela e Sartre só se preocupavam com metafísica e a condição humana, e dirá que foi uma “espectadora” da Guerra que deixou “outros pagarem por sua impotência”.

Caminhos de libertação

É justamente ao expor suas contradições e o individualismo existencialista que Beauvoir fascina: sua definição afiada da condição feminina pede complementação para que faça sentido junto aos movimentos de mulheres contemporâneos. O marxismo de Angela Davis, a interseccionalidade proposta por Kimberlé Crenshaw e o pensamento decolonial de latino-americanas como Lélia González e María Lugones questionam as ausências na obra de Beauvoir — mesmo que ela tenha afirmado, em “O segundo sexo”, que “a mulher burguesa faz questão de seus grilhões porque faz questão de seus privilégios de classe” e que “burguesas são solidárias dos burgueses e não das mulheres proletárias; brancas dos homens brancos e não das mulheres negras”.

— A obra de Beauvoir continua atual por seu pioneirismo, mas não vivemos mais o mesmo feminismo. Além de focar na tese de que feminilidade e masculinidade são o resultado de construções sociais e culturais, o movimento mira a crise climática e o capitalismo, denuncia o colonialismo, o racismo e todos os preconceitos — analisa Del Priore.

Então, enfim, o que Simone de Beauvoir tem a nos dizer em 2024?

— O que ela escreveu é importante na vida concreta das mulheres, sobretudo quando diz que é falta de autonomia nos aprisionarmos nos valores da dominação masculina. Ela ensina que o caminho da libertação é lento e cheio de obstáculos, por isso temos que buscá-los para todas, e isso começa dentro de nós mesmas — encerra Mirian Goldenberg.

‘O sangue dos outros’. Autora: Simone de Beauvoir. Tradutora: Heloysa Dantas. Editora: Nova Fronteira. Páginas: 224. Preço: R$ 69,90.

‘A convidada'. Autora: Simone de Beauvoir. Tradutor: Vitor Ramos. Editora: Nova Fronteira. Páginas: 424. Preço: R$ 99,90.

Livros de Simone de Beauvoir ganham reedição — Foto: Reprodução
Livros de Simone de Beauvoir ganham reedição — Foto: Reprodução
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