Livros
PUBLICIDADE

Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Ao alcançar a página 189 de “Salvar o fogo”, novo livro de Itamar Vieira Junior, que chega às livrarias na segunda-feira, os leitores de “Torto arado” talvez se surpreendam ao topar com uma velha conhecida: Bibiana, uma das narradoras do romance de estreia do escritor baiano. “Ligaram para o orelhão na frente da escola à procura de uma tal Mariinha”, diz Bibiana, que logo se dá conta de que procuravam Maria Cabocla, que aparece na segunda parte de “Torto arado”. Vítima da violência do marido, ela é socorrida por Belonísia, que a “amou em segredo” e também dá as caras em “Salvar o fogo”. De Tóquio, no Japão, o autor conta ao GLOBO que desde a escrita de “Torto arado” já planejava o retorno de Maria Cabocla em “Salvar o fogo”, segundo volume de uma trilogia protagonizada por quem vive da terra.

No romance anterior, os moradores de Água Negra, na Chapada Diamantina, não recebiam salário para arar a terra, como se ainda vigorasse a escravidão. “Salvar o fogo”, por sua vez, é ambientado na Tapera, uma aldeia do Recôncavo Baiano, onde descendentes de indígenas e africanos vivem em terras usurpadas por um mosteiro católico e são forçados a pagar imposto aos monges. Ainda jovem, Maria Cabocla deixou a Tapera com o marido e foi perambulando de fazenda em fazenda em busca de terra para trabalhar.

Vieira Junior também perambulou um bocado desde que se despediu de Água Negra. Culpa de “Torto arado”, que vendeu mais de 700 mil exemplares no Brasil, vai virar série da HBO Max nas mãos de Heitor Dhalia e foi traduzido para mais de 20 idiomas. O escritor viajou para apresentar o romance na Colômbia, na Alemanha, na Áustria, na Espanha e em Portugal (a edição lusa é anterior à brasileira). Neste feriado de Tiradentes, volta do Japão, onde estava desde a Páscoa. Em maio, segue para a Argentina.

Turbilhão

No começo, o sucesso extraordinário de “Torto arado” atrapalhou a escrita do novo romance. Não bastasse a angústia da pandemia, eram muitas as exigências impostas ao novo autor de best-seller brasileiro. Lá pela página 40, travou.

— Eu, que já sou um pouco atrapalhado, fui envolvido naquele turbilhão e me assustei um pouco. Só consegui retomar a escrita depois da primeira dose da vacina — conta Vieira Junior, que é geógrafo e servidor concursado do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

“Salvar o fogo” nasceu com vocação para best-seller. Mais de 37 mil leitores compraram o livro na pré-venda. Uma editora portuguesa e outra grega já se comprometeram a publicá-lo. Nos próximos dois meses, haverá nove eventos de lançamento no país.

O novo romance retoma temas do anterior: o direito à terra, a suspeita da religião institucionalizada, o elogio da espiritualidade popular, a crítica à História contada da perspectiva dos vencedores e o protagonismo feminino.

— Cresci cercado por mulheres fortes: mãe, tias, avós. Perto delas, os homens eram personagens pálidos. Apesar do machismo, eram elas que dominavam — recorda o baiano. — Mais tarde, viajando pelo campo, também encontrei muitas mulheres ocupando o lugar de protagonista. É paradoxal: como mulheres em condições tão vulneráveis ainda conseguem ser lideranças?

As diversas tramas de “Salvar o fogo” são amarradas por uma prosa melodiosa que divide as informações com o leitor aos poucos e constrói reviravoltas que tornam o livro difícil de largar. O romance tem quatro narradores: Moisés, o caçula da família Silva, cujo nascimento é descrito no prólogo; Luzia, a irmã que o criou; Maria Cabocla, outra irmã; e um narrador onisciente que apresenta o desfecho da história.

É Luzia, porém, quem merece o título de protagonista. Analfabeta, ela assume os cuidados da casa (e de Moisés) após a morte da mãe. O pai cuida da roça. Os irmãos fugiram da pobreza da Tapera. Moisés foi o único que estudou, na escola do mosteiro, onde descobriu a crueldade dos religiosos. Luzia lavava as batinas dos monges, mas também conhecia o mal que a “teologia do medo” pregada pela Igreja podia causar. Desde menina, ela era capaz “invocar o fogo” e por isso levava a culpa por incêndios ocorridos na região. Também “sonhava com mortos, compreendia a língua dos animais, sentia em cada fibra as oscilações do mundo natural”. Acusada de feitiçaria pelos religiosos que tentavam extirpar da Tapera toda “superstição”, tornou-se alvo do ódio dos moradores da aldeia, que ainda zombavam dela por carregar uma corcova nas costas.

Se em Água Negra, o jarê, religião afro-brasileira, fortalecia os laços de solidariedade entre os trabalhadores, na Tapera o cristianismo oficial jogava uns contra os outros. Luzia e a irmã, porém, resistem a abandonar algumas crenças de seus antepassados indígenas e africanos. Maria Cabocla carrega na bolsa um galho de arruda e uma figa de guiné, plantas usadas em cerimônias religiosas de matriz africana. Vieira Junior leva consigo um terço que ganhou da avó como um “amuleto”.

— Gostaria de ser mais espiritualizado, mas não tenho prática religiosa. Fui criado como católico, mas na Bahia, o que faz toda a diferença. Atrás da minha casa, havia um terreiro de candomblé. A convivência entre religiosidades distintas faz parte da minha formação — conta. — Essas práticas religiosas ancestrais são formas de existir que resistem ao tempo, pois vêm de um mundo anterior à colonização.

Diferentemente de “Torto arado”, no qual os oprimidos fazem vingança com as próprias mãos, “Salvar o fogo” busca possibilidades de reparação histórica sobretudo na “vingança dos tupinambás”, que orientava os rituais de canibalismo. Os tupinambás de fato devoravam seus inimigos, mas antes “transformavam o outro num humano — um semelhante — para depois o roer com a voracidade do que consideravam ser justo”.

Mais do que reparação, a literatura de Itamar Vieira Junior quer reescrever a História, devolvendo o protagonismo aos subalternizados. Em “Torto arado”, Santa Rita Pescadeira, entidade do jarê, reconta a História do Brasil desde a colonização. Em “Salvar o fogo”, Luzia tem visões místicas: contempla toda a violência à qual seus antepassados foram submetidos e, com esses “fios da história”, vai urdindo “um cobertor para estender sobre a Tapera”.

— Como diz Santa Rita Pescadeira, “o passado nunca nos abandona”. Ter consciência disso é entender que podemos projetar um futuro diferente — diz o escritor.— A História foi escrita pelos vencedores, mas a literatura nos permite adentrar as subjetividades dos que foram silenciados.

Vieira Junior agora terá mais tempo para se dedicar a contar a História dos vencidos. Mês passado, ele tirou uma licença não remunerada do Incra por três anos. Vai “viver de literatura”. Nas primeiras semanas, ele admite que “deu um banzo”, com saudade dos colegas e da rotina.

— Meu trabalho no Incra era útil e fazia diferença na vida de algumas pessoas. Mas percebi que a minha literatura faz diferença na vida de um público maior — afirma.

O derradeiro volume da trilogia da terra já está na cabeça do autor. Alguns personagens dos livros anteriores podem retornar, mas ele não dá mais detalhes.

— Sou supersticioso — diz o baiano, antes de partir para uma palestra na Universidade de Tóquio.

Capa de "Salvar o fogo", novo romance de Itamar Vieira Junior — Foto: Reprodução
Capa de "Salvar o fogo", novo romance de Itamar Vieira Junior — Foto: Reprodução

Serviço:

"Salvar o fogo"

Autor: Itamar Vieira Junior. Editora: Todavia. Páginas: 320. Preço: R$ 76,90.

Mais recente Próxima Obra erótica de Hilda Hilst inspira restauro da Casa do Sol, refúgio da escritora
Mais do Globo

Lucinha é denunciada por fazer parte da milícia de Zinho, na Zona Oeste do Rio

Junior da Lucinha, filho de deputada acusada de integrar grupo criminoso, participa de evento com Lula em área de milícia

Os dois ex-executivos, Anna Saicali e Miguel Gutierrez, estão no exterior. Anna entregará passaporte à PF, enquanto Miguel terá que se apresentar a cada 15 dias às autoridades policiais da Espanha

Americanas: Veja os próximos passos para os principais suspeitos da fraude

Miriam Todd contou seus segredos em um programa de TV: manter-se ativa é um deles

Com 100 anos, mulher que trabalha seis dias por semana revela seu segredo de longevidade: a alimentação

Piloto britânico deu a vitória para a Mercedes depois de 19 meses; Oscar Piastri e Carlos Sainz completaram o pódio.

Fórmula 1: George Russell vence GP da Áustria após batida de Verstappen no fim

Agora, Faustino Oro quer se tornar o grande mestre mais novo; ele tem um ano e meio para bater recorde

Argentino de dez anos se torna o mestre internacional mais jovem da história do xadrez

Aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o tratamento de diabetes tipo 2, o medicamento é comumente utilizado para a perda de peso

Queda de tufos de cabelo e diarreia que duram dias: usuários relatam novos efeitos colaterais do Ozempic

Filha de Silvio Santos provoca burburinho ao dar 'like' em publicação envolvendo nome da mais nova apresentadora contratada pela TV Globo

Patrícia Abravanel curte post e reforça rumores sobre 'rixa' entre Eliana e Virgínia Fonseca; entenda

População vê responsabilidade do poder público em mortes e destruição causadas pelas cheias, indica pesquisa Datafolha

Para 75% dos gaúchos, tragédia das enchentes poderia ter sido evitada

Hungria assumirá a presidência semestral da União Europeia esta semana

Orbán anuncia que pretende formar novo grupo parlamentar europeu com partido austríaco de extrema-direita