Seis décadas atrás, o apagamento da obra de Adalgisa Nery (1905-1980) já era motivo de perplexidade até mesmo entre os medalhões da nossa literatura. No depoimento da poeta carioca para o Museu da Imagem do Som, gravado em 1967, um de seus entrevistadores, Carlos Drummond de Andrade, questionava essa injustiça: “No Brasil, o que eu noto é a pouca frequência de seus versos nas antologias modernas”, observou o mineiro. “Por que (...) não dão bastante atenção à sua obra?” Nem a própria Adalgisa, que morreria ainda mais esquecida 13 anos depois, soube dar uma resposta concreta a Drummond. Modestamente, disse apenas que não conseguia transmitir tudo que sentia em seus versos e que gostaria de fazer “muito melhor” do que já havia feito.
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Só agora seus versos voltam a circular com “Do fim ao princípio - Poesia completa”, volume de 560 páginas em que a editora José Olympio reúne seus sete livros de poesia — todos fora de catálogo há 50 anos. A publicação terá início com sua última obra (“Erosão”, de 1973) e vai regredindo até a sua estreia literária, “Poemas” (1937). É o retorno em cena de uma poesia que não procurava ser apreendida, mas que permaneceu coesa em sua exploração de temas como angústia, transcendência e erotismo.
— Adalgisa não se enquadra em uma receita — diz o poeta e pesquisador Ramon Nunes Mello, organizador da coleção. — Não se preocupava em estar na vanguarda nem de participar de um movimento. Sua perspectiva era mais pessoal, queria investigar a relação do corpo no poema, a relação com o sagrado.
Antes de publicar poemas, Adalgisa já era uma figura conhecida, sendo retratada em vários quadros por seu primeiro marido, o pintor e poeta Ismael Nery (1900-1934), um dos pioneiros do modernismo. Ela o conheceu quando eram vizinhos e ela, recém-expulsa de um colégio de freiras, tinha 15 anos; casou-se aos 16.
Musa de pintores e poetas
Rainha dos bailes de carnaval e ícone fashion quando esse termo ainda nem existia, Adalgisa foi retratada também por Portinari, pelos mexicano Diego Rivera e José Orozco e fascinou toda uma geração de autores consagrados. Manuel Bandeira definiu seu surgimento na cena literária como “o acontecimento poético mais notável”. Murilo Mendes viu em seus versos uma “sensualidade grave e triste”. Jorge de Lima comparou sua obra a uma “aventura espiritual”. E Gilberto Freyre a transformou em advérbio: “adalgisicamente intensa no modo de ser poeta”.
O fato de Adalgisa ter chegado sem pedir licença em ambientes esmagadoramente masculinos fazia parte desse apelo (além de escritora, foi jornalista e teve três mandatos de deputada estadual). Não por acaso, Drummond a definiu em duas palavras: primeiro “bela”, depois “valente”.
Em crônica publicada após a morte da poeta, o mineiro lembra o frenesi que ela causava na Livraria José Olympio, ligada à editora que hoje republica a autora e ponto de encontro das grandes mentes do Rio na Era Vargas. “Uma deusa penetrara na livraria para nos perturbar com seu rastro de luz (...) Acho que todos nós a amávamos, mesmo sem saber que se tratava de amor”.
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Após a morte de Ismael Nery, que a introduziu na cena intelectual e artística da época, ela casou-se com o jornalista e advogado Lourival Fontes, chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda de Getúlio Vargas.
Foram anos de badalação. Entre 1943 e 1945, Adalgisa acompanhou o marido em funções diplomáticas em Nova York e depois no México, onde Fontes foi embaixador. Lá, a poeta se aproximou de um círculo de pintores — além dos já citados Orozco e Rivera, sua mulher Frida Kahlo, David Siqueiros e Rufino Tamayo. Em 1952, voltou ao país para receber a Ordem da Águia Asteca, nunca antes concedida a uma mulher. Também é dessa época sua publicação na França, onde uma coletânea de poemas foi traduzida pelo editor e poeta Pierre Seghers.
Ainda em vida, porém, a poesia de Adalgisa foi aos poucos caindo no esquecimento. Ramon Nunes Mello não vê uma única resposta ao fenômeno. Mas a sua trajetória política é, sem dúvida, um ponto a ser considerado.
A relação do segundo cônjuge com o fascismo e, mais tarde, a amizade dela com o jornalista e apresentador Flavio Cavalcanti, considerado alinhado à ditadura militar, foram vistas com certa perplexidade no meio artístico. Além disso, o tom nacionalista e virulento de seus artigos na imprensa lhe rendeu inúmeras inimizades.
— Ela era uma mulher de contradições — diz Mello. — Foi enquadrada como comunista e cassada na ditadura, considerava-se da esquerda católica e ao mesmo tempo tinha essa relação próxima com figuras como Cavalcanti. Todos esses episódios contribuíram. Mas sempre fica a pergunta: se fosse um homem teria o mesmo destino? E se fosse Murilo Mendes? E se fosse Drummond?
Poesia como ‘transcendência’
Responsável pelo espólio e neta da autora, Nathalie Nery acredita que o casamento com Fontes pesou no ostracismo de Adalgisa.
— No casamento com o Ismael ela havia entrado em contato com a intelectualidade e convivia com pessoas progressistas. O segundo casamento veio como uma contradição. O fato de ela ter tido depois uma carreira política mais à esquerda, sendo cassada pela ditadura, não suplantou essa imagem. Era uma mulher com uma ambiguidade fundamental e, para além das questões políticas, as pessoas não suportam as contradições. É mais fácil desenhar uma personalidade de maneira mais fechada — diz a neta de Adalgisa, que vai publicar sua correspondência com autores como Drummond e Murilo Mendes.
Além dos livros de poemas, Adalgisa publicou dois romances, “A imaginária” e “Neblina”, já relançados em 2015 e 2016.
Voltando no tempo, “Do fim ao princípio - Poesia completa” começa pelo último livro de Adalgisa, o intenso “Erosão”, escrito na casa de repouso de idosos onde havia se exilado. Já nos versos iniciais, a poeta escancara a sua busca pela comunhão com o absoluto: “E não encontrar a chave do Universo/ Que abre a porta do insondável/ Na mão do senhor”. Na sequência virão, seguindo a ordem inversa de publicação original, “Mundos oscilantes”, “As fronteiras da quarta dimensão”, “Cantos de angústia”, “Ar do deserto”, “A mulher ausente” e “Poemas”.
A inversão nos revela gradualmente a origem de uma obra encarada pela autora como revelação divina. Adalgisa via a poesia, especialmente a sua, como “dom, gratuidade, transcendência, vocação”, alinhando-se à palpitação mística de Jorge de Lima e Murilo Mendes. Também se apropria de elementos filosóficos de Ismael Nery, cuja busca por unidade foi batizada por Mendes como “essencialismo”. Adalgisa foi mais moderna do que modernista, acredita Mello. Assim como Gilka Machado e outras mulheres poetas de seu tempo, acabou não se encaixando em uma certa visão dominante do modernismo, que só recentemente começou a ser expandida.
— Com os poemas de volta em circulação após 50 anos, acredito ser possível compreender onde Adalgisa se insere no universo modernista brasileiro — defende Ramon.
“Do fim ao princípio - Poesia completa”. Autora: Adalgisa Nery. Editora: José Olympio. Páginas: 560. Preço: R$ 189,90.