José Eduardo Agualusa
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José Eduardo Agualusa

Jornalista, escritor e editor.

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José Eduardo Agualusa

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Num dos seus contos mais conhecidos, “O tema do traidor e do herói”, incluído na antologia “Ficções”, Jorge Luis Borges narra o drama de um herói assassinado por um traidor. No final, descobrimos que o herói era, afinal, um traidor.

O herói de uns costuma ser o vilão de outros. Não há heróis unânimes. Borges, contudo, não discute isto. O escritor argentino prefere refletir sobre a construção e a falsificação da História.

A tragédia de Julian Assange, que nesta semana conheceu um abrupto epílogo, recorda muito o conto de Borges — ao contrário. Assange, que as autoridades americanas insistem em considerar um traidor, talvez venha a ser festejado como um herói, daqui a alguns anos, pela maioria da população americana e europeia, bem como pelas instituições que as representam.

Julian Assange ganhou os palcos do mundo ao fundar, em 2006, a WikiLeaks, organização transnacional vocacionada para a denúncia de atentados aos direitos humanos, corrupção e outros temas.

Muitos dos documentos divulgados pela organização, entre os quais testemunhos de atrocidades cometidas pelo exército americano no Iraque e no Afeganistão, foram obtidos de forma ilegal. Em 2010, a divulgação desses documentos deu origem a um imenso escândalo.

Pouco depois, Assange foi acusado pela justiça sueca de dois crimes de natureza sexual. Mais tarde, ficou a saber-se que uma das vítimas, uma artista de origem cubana, trabalhara para uma ONG financiada pela CIA.

Como parte do acordo que possibilitou a sua libertação, Assange reconheceu, diante de uma juíza americana, nas Ilhas Marianas, ter infringido a Lei da Espionagem. Acrescentou que esta entra em contradição com a Primeira Emenda.

Entra — obviamente. O que deveria ser discutido, o que importa mesmo discutir, é se a ética, a moral, a justiça não deveriam estar sempre acima dos interesses momentâneos do Estado, ou de quem, em certo momento, tem responsabilidades na gestão da coisa pública.

Se o Estado, ou melhor, alguém em seu nome, comete um crime, quem denuncia esse crime deve ser considerado um traidor, ou um herói?

Dizer que, ao denunciar aqueles crimes, Assange favoreceu os inimigos do Ocidente, e Vladimir Putin em primeiro lugar, parece-me completamente absurdo. Putin quer destruir as democracias ocidentais a partir de dentro. Quem oculta crimes do Estado (no caso, gravíssimos) participa no processo de corrupção moral da democracia. Estão do lado do ditador russo. Esses, sim, são os verdadeiros traidores.

Caso a minha pequena profecia não se realize, ou seja, se daqui a alguns anos Julian Assange não for recordado como um herói, em todos os países do chamado mundo ocidental, é porque, muito provavelmente, a democracia falhou. No pior dos casos, significa que Putin triunfou em toda a linha.

A inacreditável redenção de Donald Trump é o melhor alerta para a fragilidade da democracia americana — e das democracias, regra geral.

O debate entre Trump e Biden, quinta-feira, confirmou a debilidade física e mental do atual presidente americano. Trump está agora ainda mais próximo da grande desforra. Poderá então reescrever a História, determinando quem será visto como herói e quem será visto como traidor. É disto que fala o conto de Borges.

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