RIO — Brígida, uma cidade minúscula no Sul do Brasil, é cortada por um silêncio inquietante, eco de fantasmas insepultos que ainda assombram o pensamento de seus moradores, por mais que se tente ignorá-los. É nesse vilarejo fictício que se passa “Desalma”, drama sobrenatural que estreia nesta quinta-feira no Globoplay. Através de bruxas e tradições eslavas pouco conhecidas da maior parte do país, a história retrata um dos grandes dilemas da humanidade: a dificuldade de se aceitar a morte .
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A frieza do cenário — “Desalma” foi gravada em Antônio Prado e São Francisco de Paula, na Serra Gaúcha, e em Teresópolis, no Rio — ajuda a compor a atmosfera de tensão. Entretanto, para o diretor artístico da série, Carlos Manga Jr. (“Se eu fechar os olhos agora”, indicada ao Emmy em 2019), o objetivo da obra não é causar medo, mas, sim, refletir sobre os dilemas emocionais do ser humano:
— “Desalma” é um subgênero do terror. O grande desafio é trazer sensações próximas ao espectador, sem que a história seja um simples escapismo. O sobrenatural só vem à tona por causa de um drama humano, que é a nossa incapacidade de aceitar perdas.
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Com dez episódios e uma segunda temporada confirmada, a série gira em torno de três mulheres. À primeira vista, Haia, vivida por Cássia Kis, é a típica bruxa dos contos de fadas: mora no bosque, tem longos cabelos grisalhos e provoca arrepios por onde passa devido ao ar de mistério que emana. Mas a personagem é mais que isso: trata-se de uma mãe atormentada há 30 anos pelo assassinato da filha, Halyna (Anna Melo), que recorre aos rituais de seus antepassados ucranianos para tentar trazer a jovem de volta.
Giovana, interpretada por Maria Ribeiro, é quase o oposto: uma mulher contemporânea e cética que abandona a vida cosmopolita para morar em Brígida, terra de seu marido Roman (Nikolas Antunes), morto num misterioso incidente. Lá, ela é recepcionada por Ignes (Cláudia Abreu) , prima de Roman e, no passado, amiga de Halyna.
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Em tratamento psiquiátrico e, por causa disso, alvo de descrédito da própria família, Ignes se angustia com a mudança no comportamento do filho pré-adolescente, Anatoli (João Pedro Azevedo), que passa a agir de modo cada vez mais estranho à medida em que a cidade se organiza para retomar a tradição da Ivana Kupala, celebração pagã da noite mais escura do ano, banida desde que Halyna foi assassinada durante os festejos.
Para Cláudia Abreu, a personagem é uma oportunidade de se falar sobre a saúde mental de vítimas de traumas na televisão.
— Ignes é uma panela de pressão, que viveu um grande trauma e nunca mais se recuperou. Embora isso não seja o carro-chefe da história, é importante falar sobre essas pessoas que têm uma dor muito profunda e precisam se tratar, mas são, muitas vezes, desacreditadas — afirma a atriz.
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Para dar conta dos sentimentos que os personagens não conseguem (ou não podem) verbalizar, o elenco de "Desalma" passou por um intenso treinamento, com o objetivo de tornar as atuações mais contidas.
— Existe muita dor, muito sofrimento, mas são emoções trancadas. Para isso, foi preciso um grande trabalho, porque nós, latinos, somos mais abertos. A gente grita o que sente. Até a vocalização das atrizes precisou mudar, ir para um tom mais grave, para expressar a angústia de ter que lidar com esse processo sem saber como — relata Manga.
Tradições ucranianas inspiraram trama
Escrita por Ana Paula Maia , a ficção se baseia em tradições e crenças ainda praticadas por descendentes de ucranianos que vivem no sul do Brasil. Para mergulhar nesse universo cultural pouco conhecido no resto do país, a equipe participou até de um workshop com o embaixador da Ucrânia. A pesquisa também incluiu visitas a vilarejos do interior que receberam imigrantes do Leste Europeu no século passado.
— Quando me mudei para o Paraná, há mais de cinco anos, me deparei com elementos muito ricos. As pessoas participam de festas folclóricas e se vestem e dançam como mil anos atrás — conta Ana Paula.
Prevista inicialmente para abril deste ano, a estreia de “Desalma” foi adiada duas vezes por conta da pandemia. Antes, porém, a série foi exibida na Berlinale, em fevereiro, onde encontrou uma calorosa recepção da plateia estrangeira. Para Manga, o reconhecimento internacional atesta a qualidade do audiovisual brasileiro diante das dificuldades que o setor vem enfrentando no país.
— Um alemão aplaudir uma obra brasileira prova que a gente está num bom caminho. É o mercado do mundo carimbando a qualidade do nosso audiovisual, que vai achar uma forma de continuar crescendo. Não tem como conter uma maré — afirma.