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Celina

Ela se jogou pela janela para escapar da violência doméstica. Mas a Justiça chinesa não quis dar o divórcio do marido agressor

Foram dois anos lutando pela separação em um país em que casais são aconselhados a ficarem juntos para manter a harmonia da família e da sociedade. Sistema de Justiça só se mobilizou depois que vítima postou vídeo de ataques em rede social
Liu na rua depois de saltar de uma janela para fugir da violência do marido. A violência doméstica só recentemente como a ser vista como um problema na China Foto: NYT
Liu na rua depois de saltar de uma janela para fugir da violência do marido. A violência doméstica só recentemente como a ser vista como um problema na China Foto: NYT

O marido e a mulher estavam sozinhos na loja dela, mas as câmeras de segurança filmaram tudo: ele a empurrando, batendo nela e a arrastando pelo cabelo. Em uma filmagem do ano passado, que continua circulando nas redes, ele pode ser visto a puxando para outro cômodo. Minutos depois, a mulher despenca do segundo andar para a rua, no Centro da cidade de Shangqiu. A mulher, Liu Zengyan, disse depois que se jogar era a única maneira de escapar.

Hospitalizada depois da agressão, com fraturas na cintura, no peito e na cavidade ocular e com os membros inferiores temporariamente paralisados, Liu disse que estava determinada a deixar de vez o marido.

Mas uma corte de Justiça disse não.

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O caso de Liu desencadeou um debate sobre dois dos maiores desafios para mulheres na China: a prevalência da violência doméstica e a dificuldade de conseguir justiça em um sistema organizado contra elas.

Uma pesquisa conduzida pela Federação das Mulheres All-China, em 2011, mostrou que cerca de uma em cada quatro mulheres sofreu abuso físico ou verbal ou teve sua liberdade restringida por seus parceiros. Mas ativistas, citando entrevistas com mulheres vítimas de abusos, estimam que os números são muito maiores, especialmente depois que milhões ficaram em casa durante o lockdown imposto para controlar o novo coronavírus.

Embora a China tenha passado uma lei contra a violência doméstica em 2016, as penas são mínimas. O estupro marital ainda é legal, e as mulheres dizem que as medidas restritivas são raramente cumpridas.

Mesmo o divórcio é difícil. A partir de 2012, o governo imporá um período de 30 dias para que os casais se entendam. Legisladores alarmados com o crescente número de divórcios na China defendem que a nova lei vai evitar que os casais se separem precipitadamente, mas defensores dos direitos das mulheres dizem que isso apenas deixará as pessoas presas em casamentos abusivos por mais tempo.

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Para Liu, de 24 anos, os problemas começaram cerca de um ano depois de seu casamento, realizado em em 2017, com seu namorado de escola, Dou Jiahao, de 23 anos, em Shangqiu, cidade com mais de 7 milhões de habitantes. Durante o namoro, ele a tratava muito bem, disse Liu em uma entrevista. Mas, em abril de 2018, Dou perdeu mais de US$ 7.200 no jogo e bateu nela quando voltou para casa.

"Na primeira vez, eu não chamei a polícia porque eu não classificava esse comportamento como violência doméstica. Nessa época, a expressão 'violência doméstica' ainda não estava nas cabeças das pessoas".

Ela deixou Dou por cerca de um mês mas, de acordo com Liu, ele pediu desculpas e implorou para que voltasse. Liu disse que decidiu ficar com o marido por causa do filho, que hoje tem 3 anos.

Em julho de 2019, Liu reclamou com a sogra que Dou tinha ficado fora a noite toda jogando. Depois de uma reprimenda da mãe, Dou socou Liu.

Depois disso, Liu pesquisou na internet sobre os traços dos agressores. O marido tinha feito com ela tudo o que Liu encontrara na pesquisa.

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Mesmo não achando que tinha provas suficientes para ir à polícia, Liu decidiu terminar o casamento. Mas antes que fizesse isso, ela apanhou pela terceira vez.

Em agosto de 2019, Dou ficou com raiva depois de ter sido chamado a atenção pela mãe em frente a seus amigos, quando jogava. A sogra mandou uma mensagem para Liu: "Tranque a porta e fuja".

Liu foi para a casa de sua mãe naquela noite. Mas, seis dias depois, retornou a sua loja, pensando que o marido estava fora da cidade. Ele, porém, entrou na loja, jogou Liu no chão, bateu nela, tirou seu telefone celular e disse que a mataria.

Liu Zengyan no hospital, em agosto de 2019, um dia depois de ser atacada pelo marido. Ela teve que se jogar do segundo andar para salvar sua vida Foto: LIU ZENGYAN / NYT
Liu Zengyan no hospital, em agosto de 2019, um dia depois de ser atacada pelo marido. Ela teve que se jogar do segundo andar para salvar sua vida Foto: LIU ZENGYAN / NYT

A única maneira de parar a violência foi se jogar da janela, descalça. Imagens de vídeo das câmeras de segurança mostraram Dou saindo da loja e olhando com curiosidade para a janela no segundo andar enquanto passantes ajudavam Liu.

"Você pode ver que ele quase se tornou um psicopata", disse Liu, que está em uma cadeira de rodas enquanto se recupera. "Ele me batia para preencher uma desejo de violência."

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Dou, que está sob custódia da polícia, não pode ser contactado. Liu diz que os pais de seu marido mudaram os números de telefones, e ela não consegue mais contactá-los. Seu advogado afirma não ter detalhes sobre o advogado de Dou.

Foi apenas em anos recentes que a violência doméstica passou a ser vista como uma problema significativo na China, onde as leis são quase sempre feitas e aplicadas por homens e as famílias são desencorajadas a mostrar seus problemas em público. Alguns casos levantaram o tema, e uma cidade no Leste da China recentemente permitiu que as pessoas possam checar se seus parceiros têm um histórico de abuso antes de se casarem.

Mas as vítimas costumam encontrar resistência no sistema de Justiça, que pode as desencorajar a buscar ajuda. Embora a legislação chinesa especifique que a violência doméstica é argumento suficiente para um divórcio, muitas cortes encorajam os casais a tentarem uma reconciliação em nome da harmonia social e da família.

Imagem da câmera de segurança mostra Dou Zengyan atacando a mulher, Liu, na loja dela, em Shangqiu. O vídeo chocou os chineses e fez com que a Justiça concedesse o divórcio pedido por Liu. Foto: HANDOUT / NYT
Imagem da câmera de segurança mostra Dou Zengyan atacando a mulher, Liu, na loja dela, em Shangqiu. O vídeo chocou os chineses e fez com que a Justiça concedesse o divórcio pedido por Liu. Foto: HANDOUT / NYT

De maneira similar, a lei de violência doméstica tornou mais fácil obter uma medida restritiva, mas os juízes costumam pedir evidências da violência física, descartando abusos verbais e emocionais. Entre março de 2016, quando a lei passou a valer, a dezembro de 2018, as cortes chinesas receberam apenas 5.860 pedidos de medidas restritivas e aprovaram menos de dois terços delas, de acordo com a Equality, uma organização pelos direitos das mulheres, em Pequim.

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Na raiz do problema, de acordo com ativistas, está a noção entre policiais e na Justiça de que o divórcio é ruim e que o casamento é a pedra fundadora da sociedade.

"O divórcio é visto como um fracasso pessoal, e não como uma cura para a vida de uma pessoa", disse Feng Yuan, da Equality.

Depois do terceiro ataque, parentes de Liu tentaram convencê-la a manter o casamento, com promessas de um carro e um apartamento. Ela recusou, e eles pararam de pagar suas despesas médicas.

Liu também encontrou pouca simpatia quando denunciou o marido à polícia. Os oficiais culparam a queda por seus ferimentos, e um conselho forense "descobriu" que Dou era responsável "apenas" pela fratura em sua cavidade ocular esquerda, descrevendo-a como um "ferimento leve", de acordo com uma cópia do relatório a que o New York Times teve acesso. A polícia não retornou as ligações da reportagem.

Uma segunda avaliação, em novembro de 2019, concluiu que Dou tinha causado  em Liu "um ferimento menor de nível um", elevando a denúncia a um caso criminal. Ele foi preso em março e acusado de ter causado dano intencional.

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Em junho, Liu entrou com o pedido de divórcio, mostrando o vídeo do ataque na loja como prova. A corte negou seu pedido, dizendo que Dou não concordava com o divórcio e que eles deveriam procurar mediação. Também foi dito a Liu que ela não poderia se divorciar enquanto o caso contra o marido ainda não estivesse resolvido.

"Nunca me ocorreu que a Justiça não me garantiria diretamente o divórcio logo na primeira audiência", diz Liu.

Em uma tentativa de pressionar a Justiça, Liu postou o vídeo do ataque no WeChat, a mídia social na China. Milhares de usuários de internet na China passaram a defendê-la, e uma hashtag sobre o caso foi vista mais de 1 bilhão de vezes no microblog Weibo. Em seguida, vieram as intervistas para a imprensa.

Logo depois, um juiz ligou para Liu e disse que a mediação não era necessária e que a corte daria um veredito em breve. Em 28 de julho, três semanas depois de ter postado o vídeo, ela conseguiu o divórcio.

"Estou muito feliz", disse Liu, que está se preparando para reabrir a loja, depois de uma reforma. "Eu finalmente consegui o que queria".