Depois de ver as reações ao projeto que equipara o aborto acima da 22ª semana de gestão ao homicídio crescerem, o governo federal passou a se posicionar de maneira mais firme contra o texto, que teve a tramitação em regime de urgência aprovada nesta semana na Câmara. Nesta sexta-feira, os ministros Alexandre Padilha (Relações Institucionais), Marina Silva (Meio Ambiente), Cida Gonçalves (Mulheres) e a primeira-dama Janja da Silva criticaram a proposta.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, porém, ainda não manifestou publicamente a sua posição em relação ao projeto de autoria do deputado evangélico Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). Na quinta-feira, na Suíça, o mandatário foi questionado sobre o assunto e disse que precisaria voltar ao Brasil para “tomar pé da situação” antes de comentar.
Na votação de quarta-feira, o governo e o PT lavaram as mãos. O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), chegou a afirmar que a proposta “não é matéria de interesse do governo”. Os partidos da base aderiram à votação simbólica, em que o voto individual de cada deputado não é registrado, e assim permitiram que o texto não passe pelas comissões da Casa e seja apreciado diretamente no plenário.
Em linha com as manifestações dos integrantes do governo, nesta sexta-feira, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, foi às redes sociais criticar a proposta e a aprovação do regime de urgência .
“Pessoalmente sou contra o aborto, mas defendo o que está previsto na nossa legislação. O projeto de lei, que teve sua urgência aprovada de forma atabalhoada na quarta feira, mexe com a legislação em vigor. Além de aplicar uma pena maior para a vítima de estupro que faz aborto do que para o estuprador, impede que uma menina ou mulher estuprada possa fazer aborto após 22 semanas de gravidez. É importante saber que 61% dos estupros são contra meninas de até 13 anos, que muitas vezes por medo, vergonha ou desconhecimento a gravidez só é descoberta quando está mais avançada. É desumano obrigar uma criança a ser mãe de outra criança, ainda mais quando a gravidez é resultado de violência”, postou.
Já Padilha disse que o governo vai passar a atuar contra o projeto:
— Não contem com o governo para mudar a legislação de aborto no país, ainda mais num projeto que estabelece que uma mulher estuprada vai ter uma pena duas vezes mais que o estuprador. (...) Vamos trabalhar para que um projeto como esse não seja votado.
O debate digital em torno do projeto de lei foi dominado por perfis críticos à medida. É o que aponta um levantamento da Arquimedes, consultoria especializada na análise das plataformas digitais, a pedido do GLOBO. A análise mapeou 2,3 milhões de publicações na plataforma X (antigo Twitter) entre quarta e as 16h desta sexta-feira. O resultado mostra que 88% das contas que comentaram o tema se opõem ao texto.
Também nesta sexta-feira, a ministra Marina Silva, que é evangélica, classificou a prposta com “altamente desrespeitosa e desumana com as mulheres”.
— Eu, pessoalmente, sou contra o aborto, mas eu acho que é uma atitude altamente desrespeitosa e desumana com as mulheres achar que o estuprador deve ter uma pena menor do que a mulher que foi estuprada e que não teve condição de ter acesso de forma dentro do tempo para fazer uso da lei que lhe assegura o direito ao aborto legal — afirmou Marina.
Janja, que acompanha Lula na viagem à Europa, também foi às redes sociais nesta sexta-feira para criticar o projeto. “O PL 1904/24 quer mudar o Código Penal brasileiro para equiparar o aborto após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, quando a gestação for fruto de estupro, caso em que o aborto é permitido pela lei brasileira. Isso quer dizer que uma mulher estuprada pode ser condenada a uma pena superior à de seu estuprador: a pena máxima para estupro é de até 10 anos, enquanto a de homicídio simples é de até 20 anos”, escreveu a primeira-dama.
Antes das manifestações desta sexta-feira, as ministras Cida Gonçalves (Mulheres), Anielle Franco (Igualdade Racial), Sonia Guajajara (Povos Indígenas) e os ministros Silvio Almeida (Diretos Humanos) e Paulo Teixeira (Desenvolvimento Agrário) já haviam se posicionado nas redes sociais contra a proposta.
Nesta sexta-feira, ao GLOBO, Cida Gonçalves voltou a criticar o projeto:
— Nós não podemos, enquanto sociedade, permitir um retrocesso como este. Não se trata de um debate político ou religioso, estamos falando da garantia da vida e do respeito à dignidade de meninas e mulheres — afirmou a ministra das Mulheres.