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Por — Rio de Janeiro

Há um mês, mais de 100 associações de saúde mental e de militância antimanicomial — que formam a delegação da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental — escreveram uma carta-manifesto ao presidente Lula. O motivo é a cobrança de mudanças na política de saúde mental da atual gestão, que mantém o financiamento a comunidades terapêuticas, um modelo defendido por Jair Bolsonaro, mas criticado por psiquiatras, que apontam ineficácia do tratamento e violações de direitos. Atualmente, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), financia 14.948 vagas junto a 602 entidades do país.

A contratação pelo governo federal de vagas em comunidades terapêuticas — normalmente espaços distantes dos centros urbanos e que se baseiam na abstinência e "laborterapia" (trabalho forçado) como método de "cura" — começou em 2010, no âmbito do programa “Crack, é possível vencer”, do Ministério da Justiça. Durante os governos Michel Temer e, principalmente, de Jair Bolsonaro, essa política pública foi ampliada e, em 2020, 27 mil pessoas foram acolhidas nessas comunidades, num investimento de mais de R$130 milhões naquele ano.

A atual gestão, apesar de discursos contrários ao modelo de tratamento e de revogações, em especial do Ministério da Saúde, de portarias que fomentavam as comunidades terapêuticas, mantém a política. Em janeiro, após extinguir a Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, do Ministério da Cidadania, o governo Lula criou o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas - cujo nome foi alterado para Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas (Depad) em maio — vinculado ao MDS, com o objetivo de “redução da demanda de drogas” e uma verba orçamentária de R$ 273 milhões.

Disputas dentro do governo

Há um mês, o MDS publicou uma portaria em que prevê, como uma das metas, a ampliação do número de acolhimentos em Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas contratadas pelo Governo Federal até 2026. O fomento ao acolhimento também está previsto no Plano Plurianual (PPA), entregue por Lula em agosto, explicitando o embate político dentro do governo entre setores que defendem o investimento nos equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), e outros que abraçam o modelo das comunidades terapêuticas, cujo lobby está ligado pincipalmente à bancada evangélica, no Congresso.

— Hoje não posso apontar uma posição do governo. O que acontece é uma disputa de campos políticos. É paradoxal, porque temos conquistas importantes na luta antimanimocial dentro do Ministério da Saúde, mas o PPA mantém a previsão das comunidades terapêuticas — afirma a psiquiatra Ana Paula Guljor, coordenadora da subcomissão nacional sobre políticas de drogas e saúde mental do Conselho Nacional de Direitos Humanos.

Números das Comunidades Terapêuticas

  • 14.948: Vagas financiadas atualmente
  • 602: comunidades contratadas
  • R$273 milhões: Orçamento do Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas (Depad), criado pelo governo Lula
  • 27 mil atendimentos: número recorde, em 2020, durante governo Bolsonaro

Inspeção nacional identificou crimes e violações

A ausência de eficácia do tratamento e as violações de direitos no modelo de CTs foram atestadas por vistorias realizadas pelo Ministério Público Federal (MPF), Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e Conselho Federal de Psicologia (CFP) em 28 unidades, em 2017. Entre os problemas encontrados nas entidades espalhadas por 11 estados e Distrito Federal estavam internações forçadas e indocumentadas, instalações precárias, péssimas condições de higiene, suspeita de trabalhos forçados, intolerância religiosa, homofobia e até indícios de sequestro e cárcere privado com a anuência da família.

As inspeções revelaram um "contingente de usuários de drogas enviados a comunidades terapêuticas por determinação judicial" num tratamento que poderia ser considerado tortura, destacou o relatório, por causa dos castigos físicos, trabalho forçado, supressão de sono e alimentação e a privação da liberdade. Além disso, a força tarefa encontrou novos "perfis" de internos, como idosos e pessoas com transtornos mentais diversos. Após a inspeção, houve algumas ações pontuais, como abertura de inquéritos em âmbitos estaduais, mas não houve ações sistêmicas.

— Os relatos eram absolutamente coincidentes na série de práticas graves — lembra Deborah Duprat, então procuradora federal dos Direitos do Cidadão na época do trabalho. — Comunidades terapêuticas são instituições de caráter asilar, ou seja, que isolam o indivíduo do resto do mundo. Essa é uma ideia totalmente contrária à lei antimanicomial e à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, porque são sujeitos que têm direito à participação na vida coletiva.

Todas CTs inspecionadas eram instituições religiosas e possuíam o caráter confessional no tratamento, lembra Duprat. Um trecho do relatório destaca, por exemplo, que em uma comunidade terapêutica de Lagoa Santa (MG) internas eram obrigadas a copiar, por inúmeras vezes, o Salmo 119 da Bíblia, como uma sanção por "mau comportamento". Em 14 das 28 instituições visitadas, não havia "respeito à diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero", apontou o relatório, que complementou que a "expressão das sexualidades" era associada ao "pecado".

Duprat esteve pessoalmente em duas unidades do Mato Grosso, onde constatou que não havia documentações, laudos médicos ou qualquer registro de manifestação dos internos sobre o desejo de internação.

— Estavam ali exercendo trabalho escravo, sem remuneração, em condições insalubres. Todo trabalho na comunidade é feito pelos próprios internos. Os donos sustentavam que essa seria uma terapia ocupacional, mas não existia nenhum psicólogo, terapeuta ocupacional ou profissional de saúde. Geralmente só ia um auxiliar de enfermagem uma vez por semana. Não havia prescrição de medicamento, era um caos total — explica Duprat, que lembra também da internação de uma mulher trans em uma instituição masculina.

A ex-procuradora também apontou a ilegalidade na internação de adolescentes, todos enviados às comunidades vistoriadas por decisão judicial, algo que só é permitido em casos de crimes com violência, vedado a casos de uso de drogas.

— Era o sistema de justiça fazendo limpeza social — explica.

Ex-interno denuncia crimes durante internações

Em 2011, após anos de uso de álcool, maconha e cocaína, Eduardo Real pediu ajuda à família para tratar do seu vício. Sem respostas do serviço público de Osasco (SP), seus familiares se aproximaram de um pastor evangélico e um vereador da região, que indicaram a internação em uma comunidade terapêutica em Cotia (SP). Acreditando que ficaria numa unidade hospitalar, ele foi medicado e levado à comunidade, numa chácara isolada, onde morou por sete meses dentro de um galpão ao lado de 80 internos. Lá, fazia faxina e capinava o gramado, testemunhou castigos físicos e o único "tratamento" eram os cultos religiosos. Nos nove anos seguintes, ele, que hoje é militante da luta antimanicomial, passou por outras 13 internações, acumulando episódios de violência, assédios e promessas ineficazes.

— A gente acordava às 5 da manhã com música alta, evangélica, e ia para o culto, não havia psicólogo, terapia ou medicação. Os autodenominados pastores, que eram internos mais antigos, diziam orar por mim para "me libertar do espírito da homossexualidade". E na sala de oração aconteciam castigos físicos, principalmente contra quem tentava fugir — afirma Real, que diz não ter registrado ocorrências por medo. - Quando voltei para casa, não queria que me vissem usando cocaína porque poderiam me internar de novo. Então comecei a usar nas ruas e conheci o crack, o que piorou tudo. Fiquei nos anos seguintes num ciclo entre situação de rua e internações.

Somente em 2020 Real conseguiu ser atendido no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) especializado em tratamento de álcool e drogas, chamado AD, de Osasco, e está abstêmio desde então. Ele lamenta, porém, a falta de estrutura para atendimentos desse tipo na cidade, e se diz decepcionado com a atual gestão do governo federal, que mantém o fomento às comunidades terapêuticas.

Desde 2017, o Observatório das Adições organiza reuniões com pessoas em situação de rua e dependentes químicos. O encontro, originalmente mensal, hoje acontece virtualmente toda segunda-feira. Em um desses eventos, Eduardo Real narrou a sua passagem por comunidades terapêuticas e, segundo Paulo Silveira, diretor do Observatório, os relatos de assédios e crimes são frequentes.

— O cerne da questão é que existem pessoas sem capacidade de lidar com questões da sua vida, e aí precisam de recursos outros, sejam drogas legais ou ilegais. A chamada adição. Precisamos de um tratamento que resgate a autoestima e cidadania, mas o que tem no Brasil hoje é um modelo de fim da auto estima e obediência a um regime autoritário — afirma Silveira, sobre o modelo das CTs.

Ana Paula Guljor explica que as CTs ganharam tração em 2016, quando o Ministério da Saúde publicou portaria estipulando o tipo 83 - Polo de Prevenção de Doenças e Agravos de Promoção da Saúde - no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Cnes). Isso permitiu que as comunidades de cadastrassem no SUS e recebessem a Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social na Área de Educação (Cebas), o que garante isenção de impostos. Ainda assim, as CTs funcionam fora do âmbito da saúde, reguladas por outras pastas - antes os ministérios da Justiça e da Cidadania, e agora o de Desenvolvimento Social - o que afasta as possibilidades de fiscalização típica a equipamentos do SUS.

Em 2017, um outro relatório, da Controladoria Geral da União (CGU), avaliou a política de contratação pela então Secretaria Nacional de Política sobre Drogas, do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Segundo a CGU, o decreto do programa do "Crack, é possível vencer" e as metas do PPA da época eram os únicos balizadores do programa. Por isso, o relatório concluiu que havia " fragilidades na institucionalização da política" , "imprecisões quanto à legitimidade", "fragilidade na fiscalização" e " ausência de parâmetros para avaliar a qualidade dos serviços".

Para além dos mecanismos burocráticos, as CTs foram ganhando apoio popular com as promessas de cura contra a dependência química. Nos últimos anos, o deputado federal Osmar Terra foi um dos principais porta-vozes sobre o tema e enquanto ministro da Cidadania, na gestão de Jair Bolsonaro, defendeu o modelo que, segundo ele, conseguiria resultados melhores que o sistema de saúde tradicional por causa do isolamento da abstinência total. Ele alegava, ainda, que havia preconceito com evangélicos nas críticas contra o programa.

Guljor, que também preside a Associação Brasileira Saúde Mental (Abrasme) e já dirigiu a rede de Caps no Rio e o hospital psiquiátrico de Jurujuba, em Niterói, defende que um dos principais problemas do modelo das CTs é, justamente, cortar as relações sociais do paciente. Ela conta que esse conceito surgiu na Europa, na década de 60, como uma ideia de gestão democratizada em comunidades, com relações horizontais, e houve até a absorção de alguns desses preceitos pela reforma antimanicomial. Mas a lógica do isolamento resultou em tratamentos ineficazes.

— As comunidades atuais colocam as pessoas em um dispositivo fechado, por um período longo de tempo, e só trabalham a direção clínica de disciplina. Quando se coloca a pessoa numa estrutura que a aparta da sociedade, primeiro ela não vai saber lidar com as questões da vida e do cotidiano, e gera muito frequentemente a ruptura dos laços familiares — explica Gulfor, que também critica o preceito da laborterapia e da disciplina confessional. — Claro que espiritualidade pode ser importante, o problema é impor essa fé e ter essa fé como pressuposto de cura.

Governo federal responde

Procurado, o Ministério de Desenvolvimento Social explicou que o objetivo do Depat é atuar "de maneira intersetorial, interdisciplinar e transversal, a partir da visão holística do ser humano, oferecendo os serviços de acolhimento a pessoas com problemas decorrentes da dependência do álcool e de outras drogas, principalmente àquelas em maior vulnerabilidade". Sobre suposta divergência na gestão federal, a pasta respondeu que "busca trabalhar em alinhamento em conjunto com os demais Ministérios" e que segue o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Por fim, explicou que trabalha para ampliar as fiscalizações, que têm apoio da faculdade de Medicina da UFMG e que existe uma equipe designada para apurar denúncias "sendo repudiado todo e qualquer infração que viola os direitos e garantias dos acolhidos".

Já o Ministério da Saúde informou ter "como prioridade a expansão e qualificação dos serviços de saúde mental" e que o orçamento da Rede de Atenção Psicossocial foi ampliado em 27%, representando R$414 milhões a mais para os estados. Hoje existem 2.857 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) no país, 870 Serviços Residenciais Terapêuticos e o novo PAC prevê a abertura de mais 200 CAPS.

A prefeitura de Osasco respondeu que conta com 3 CAPS, Consultório de Rua, Pronto-Socorro com atendimento psiquiátrico 24 horas e 10 leitos de psiquiatria no Hospital Municipal, e que uma segunda unidade de CAPS AD será aberta na cidade.

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