Um dos argumentos mais usados por opositores da linguagem não binária é o de que trocar os pronomes masculinos e femininos por outros neutros causaria impacto à aprendizagem de crianças disléxicas, além de prejudicar a comunicação entre pessoas com deficiências auditivas ou visuais. No entanto, especialistas explicam que, conforme o debate sobre essa variação da linguagem avançou, foram elaboradas formas para reduzir potenciais prejuízos. Assim, o uso, por exemplo, de @ ou da letra X como marcadores de gênero, foi substituído por pronomes como “elu”, “delu”, “ile” e “dile”, além do final com a letra "e" nas palavras.
- Anatel vai bloquear o 'gatonet': entenda por que a TV Box é pirata
- Irritado com críticas: Diretor de balé na Alemanha ataca jornalista com fezes de cachorro
— Quando se colocam elementos gráficos disruptivos gráficos, como @, X, pode haver prejuízos. Mas o movimento trans já evoluiu. As pessoas que normalmente apontam problemas não são portadoras de deficiência, mas acabam minimizando a capacidade desse grupo de aprender algo novo. São variações que só requerem adaptação — explica Brune Medeiros, travesti e pesquisadora nas interfaces de Língua, Linguagem e Gênero pela UFRJ. — Ninguém quer impor que as pessoas aprendam uma nova língua, apenas apresentar novas variantes.
Na sexta-feira (10), o STF formou maioria para tornar inconstitucional a lei estadual de Rondônia, de 2021, que proibia o uso de linguagem neutra nas escolas. Na opinião dos ministros, a legislação extrapolava o poder dos estados em editar diretrizes gerais de ensino básico, o que é uma competência da União. A ação de inconstitucionalidade terá repercussão geral.
Tentativa de proibição se espalha no país
Nos últimos anos, a linguagem neutra e seu uso em escolas, universidades e repartições públicas foi alvo de projetos de leis para tentar suprimi-la, a maioria apresentada por deputados ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Um levantamento do GLOBO revelou que, desde 2019, ao menos 58 projetos sobre a proibição da linguagem foram protocolados em 20 estados. Nesta segunda-feira (13), o G1 mostrou que, além do caso de Rondônia, há leis semelhantes em vigor no Paraná, em Santa Catarina, em Porto Alegre e Manaus.
Defensores da proibição costumam usar argumentos como “aberração linguística” e “imposição de ideologia de gênero” para defender seu ponto de vista. Mas há também justificativas supostamente técnicas. Nas últimas semanas, grupos opositores à linguagem neutra compartilharam massivamente um vídeo de Gabi Bellucci, uma influenciadora política do Tik Tok, que defendia que os novos pronomes dificultariam a leitura labial por portadores de deficiência auditiva e impediria o funcionamento de softwares que auxiliam deficientes visuais na leitura de textos. As variações também seriam prejudiciais a pessoas disléxicas, pela dificuldade no aprendizado de novos termos.
— Hoje ninguém mais propõe @ ou X, ou alguma forma que não caiba na língua portuguesa, justamente por causa dos deficientes visuais e auditivos. O argumento era válido e a comunidade ouviu isso e repensou — defende Robert Moura, mestre em Linguística pela Universidade de São Carlos, pessoa trans não binária e que em seu mestrado investigou a construção do gênero neutro na língua portuguesa, na análise de textos científicos e populares.
Outro argumento usado no mesmo vídeo que ganhou as redes sociais é de que a linguagem neutra não seria pertinente por abranger somente uma parcela estatisticamente pequena da população, que se reconhece como não binária. Mas Anna Christina Bentes, linguista da Unicamp, lembra que é justamente o fato de esse uso ser estratégico que rechaça a necessidade de projetos de lei proibitivos.
— Esse argumento poderia ser usado se a neutralização da marcação de gênero fosse espalhada pelo o sistema linguístico. Mas por enquanto é um uso estratégico, que mostra solidariedade com grupos minoritários. Dá visibilidade a esses grupos, e diz que eles existem e precisam ser respeitados. Dificilmente vai ter impacto na aprendizagem de pessoas disléxicas ou que possuem deficiências.
Os pesquisadores ouvidos pelo GLOBO afirmam desconhecer qualquer experiência no país de uso oficial da linguagem neutra em escola ou universidade. O seu uso, explicam, se dá de maneira informal em salas de aula, a partir da curiosidade de alunos. Mas também já é pauta de palestras corporativas, para apresentar essas variações de forma inclusiva.
— Ninguém conhece um projeto que tenta impor a linguagem neutra — diz Brune Medeiros, que já deu palestras em empresas e escolas. — Alunos podem usar no dia a dia para se referir a colegas. Nas minhas palestras, apresento minha perspectiva como pessoa trans, para mostrar nossas questões e narrativas. Não acho que a União deve impor esse ensino, mas não pode proibir. Professores e alunos devem ter o direito de usar, se quiserem. Nenhum lado precisa de imposição, apenas de diálogo e abertura.
Aumento recente do interesse
Robert Moura detectou um aumento das pesquisas na internet sobre o tema a partir de meados de 2020, principalmente quando uma pessoa da comunidade não binária postou um vídeo na internet sobre a linguagem neutra, o que gerou muita repercussão.
Pesquisadores admitem que há uma vertente no campo da linguística que argumenta que a linguagem neutra significaria artificializar a língua portuguesa, pois o idioma já dispõe de pronomes neutros. Por isso, parte dos linguistas e dos próprios não binários defende que a melhor solução seria evitar o gênero masculino de forma totalizante, e, assim, usar termos mais abrangentes, como “boas vindas” e “boa tarde a todas as pessoas”, ao invés de “bem-vindos” e “bem vindes” e “boa tarde a todos” ou a “todes”.
— O debate é atual e há não binárias que preferem usar temos mais abrangentes. Mas quando a gente para para pensar no gênero da língua, ele ainda é majoritariamente masculino, e assim acaba apagando a existência de não binários. Quando pensamos na proposta, é para dar voz a essas pessoas que estão sendo apagadas. Não é deturpar a língua, porque são propostas que se adequam perfeitamente à língua portuguesa — disse Moura.
Bentes diz que a discussão acabou sendo tomada por um “pânico moral”, o que leva a projetos de leis descabidos. Ela explica que a linguagem tem usos variáveis, então leis não serão eficazes para proibir ou permitir determinadas variações.
— Ao invés de proibir, o melhor é explicar porque isso está acontecendo. De onde surge essa movimentação, quem está reivindicando, as razões. O papel do professor é tentar compreender o fenômeno junto a seus alunos — diz a linguista da Unicamp. — Do ponto de vista político, são guerras culturais. Se parte da sociedade nega a existência de grupos não binários, então tem que negar qualquer tipo de tentativa de neutralização da linguagem.