Malu Gaspar
PUBLICIDADE
Malu Gaspar

Análises e informações exclusivas sobre política e economia

Informações da coluna

A pedido do blog, a jornalista Kelly Mattos, âncora da Rádio Gaúcha e mãe de um menino de um ano e dois meses, conta como vive a tragédia das chuvas no Rio Grande do Sul, ao mesmo tempo que trabalha na cobertura da crise para prestar serviço e fornecer informações que ajudem os gaúchos a resistir à catástrofe que já atingiu 417 municipios, causou 100 mortes e deixou 66 mil desabrigados. Leia abaixo:

A jornalista e âncora da Rádio Gaúcha Kelly Matos — Foto: Reprodução/redes sociais
A jornalista e âncora da Rádio Gaúcha Kelly Matos — Foto: Reprodução/redes sociais

"Por mais que eu diga, que eu descreva, que as imagens cheguem a vocês pela televisão, acho que ainda assim não serei fiel a toda a dor que tomou conta da gente desde que a chuva começou a nos castigar.

Começou na semana passada, com uma quantidade absurda de água que fez rios transbordarem em cidades que já haviam sido brutalmente atingidas nas enchentes de setembro e novembro do ano passado.

Lembro dos funcionários de uma fábrica que produz calçados em Roca Sales, uma cidade a 200 quilômetros de Porto Alegre. Eles estavam tão gratos por termos feito uma mobilização na rádio pedindo ajuda que nos enviaram tênis e uma carta assinada por todos, um a um, falando sobre a união que colocou a fábrica de pé novamente.

Eu vesti esse tênis na semana passada pra lembrar que o povo gaúcho é forte e não se entrega. Pra que esse espírito de Roca Sales pudesse estar de novo comigo pra enfrentar o começo de uma nova tragédia. Mal sabia que viria algo muito pior pela frente.

Enquanto escrevo, o barulho dos helicópteros toma conta do espaço e do tempo. A todo minuto, aeronaves sobrevoam minha cidade, Porto Alegre, na direção da região de Eldorado do Sul, onde o prefeito Ernani (de Freitas) me disse, do último andar da prefeitura, porque a casa dele foi tapada pela água:

"Nosso município acabou".

As pessoas nos mandavam mensagens desesperadas, pedindo notícias dos seus familiares, porque não havia sequer comunicação com Eldorado. Eu não sabia o que dizer. Pediam notícias, pediam resgate. "Minha colega de trabalho está pedindo socorro", "minha irmã está sem dar notícias", "minha mãe não vai aguentar mais uma noite no telhado".

Eram dezenas, centenas.

Algumas pessoas ficaram dias sem se alimentar. O prefeito disse que 95% dos carros foram encobertos pela água. Água que alagou casas, supermercados, farmácias. O que restou estava sendo saqueado, me disse o prefeito. O filho de uma amiga foi trazido de lá resgatado pelo Exército. São barcos e helicópteros a todo momento salvando gente. E isso é só de Eldorado. Não tem abrigo lá. O prefeito de Porto Alegre disse que teremos que acolher nossos irmãos de Eldorado aqui, numa corrente de solidariedade.

Porto Alegre vive um cenário de guerra. Tem Exército na rua, comboios, helicópteros a todo instante. O barulho das aeronaves nos dá a certeza de que mais alguém será salvo. Então enche meu coração de esperança.

O maior problema no momento é que estamos sem água. Sim, parece um paradoxo. Mas choveu tanto que alagou ruas, bairros inteiros, e também encharcou as casas de tratamento e bombeamento de água. A energia precisou ser desligada nesses locais. Das seis estações, cinco pararam de funcionar.

No meu prédio, o racionamento começou no sábado.

Fui ao mercado em busca de água e simplesmente não havia mais garrafas, nem galões. Comprei água com gás para tomar banho e dar banho no meu bebê de um ano e dois meses. As pessoas varreram as prateleiras. Levaram todo o papel higiênico também. O mercado começou a limitar a quantidade de produtos por pessoa. Foi como na pandemia. Um cenário de desespero.

Na segunda-feira, quando o prefeito avisou que dois bairros importantes de Porto Alegre (Cidade Baixa e Menino Deus) começariam a ser alagados, houve um pânico generalizado. Pessoas começaram a fazer as malas, andar pelas calçadas, muitas pegaram seus pertences, foram para os carros, o trânsito ficou caótico. Sabe essas cenas de filme em que todo mundo quer escapar do tornado? Assim.

Desde ontem, terça-feira, quatro das seis estações foram religadas, o que nos deu esperança de que até sexta a água pudesse voltar às nossas casas. Mas nesta quarta-feira já começou a chover e estamos de novo com medo.

Há várias outras regiões onde a chuva destruiu tudo. Levou casa, escola, prédio público, não pediu licença. Impossível não se desesperar com o rastro de destruição. A prefeita de Sinimbu se emocionou contando que tudo tinha sido levado. Minha amiga mandou uma foto da casa dos parentes. Não sobrou nada. Eu me emocionei também.

Muçum, Roca Sales, Lajeado, Encantado... Todas cidades que tinham acabado de se levantar da tragédia do ano passado estão debaixo d'água. Municípios da Região Central, da Serra, do Vale do Caí, do Taquari, dos Sinos… A região metropolitana. Eu certamente não conseguirei mencionar tudo.

Quando a gente fala da maior tragédia, do maior desastre ambiental, da maior catástrofe, a gente não está exagerando. Estamos apenas tentando colocar o tamanho da nossa dor em palavras que parecem não ser suficientes.

Tenho colegas que estão sem casa, perderam absolutamente tudo. Colegas que estão sem energia, sem água. Gente que foi ao prédio da empresa tomar banho porque não há outra opção.

Como jornalista, também recebo muitos pedidos de ajuda.

Em um deles, que chegou na quinta-feira em um grupo de mães, me pediram para compartilhar a busca de uma família pela Carolina, mãe de uma menina de 5 anos que estava desaparecida. Óbvio que eu compartilhei. Depois que virei mãe, sinto essa dor de forma ainda mais profunda.

Carolina Silveira Lopes Pedruzzi, desaparecida entre Bento Gonçalves e Veranópolis, na Serra, estava na região para fotografar um batizado. Um momento tão especial! Ela estava perto do Rio das Antas e buscou abrigo em uma pousada. Eu rezei.

No sábado, chegou a notícia. Carol faleceu, vítima de um deslizamento, um desmoronamento. O corpo foi localizado e muitos se uniram para ajudar a trazer o corpo dela de volta. Eu queria poder abraçar o Robson, marido da Carol, e a filhinha.

A previsão para esta quarta é de chuva. Aliás, a água que nos inundou agora também está chegando em Pelotas, na zona sul do estado, e vários estão sendo retirados de casa. Nós nem sequer começamos a nos reerguer. Ainda estamos tentando salvar os que estão ilhados. Precisamos de ajuda. Olhem por nós. Não se esqueçam do Rio Grande do Sul.

Mais recente Próxima Governo Lula bloqueou recursos para prevenção de desastres em Santa Catarina