A Hora da Ciência
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A Hora da Ciência

Médicos e cientistas abordam diferentes aspectos da saúde.

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Portaria da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, publicada em 18 de agosto de 2021, exige que organizações parceiras que tenham convênio com o Sistema Único de Saúde (SUS) ofereçam as chamadas Práticas Integrativas e Complementares (PICs). A oferta é uma das métricas usadas para aferir a qualidade do serviço. Para atuar na saúde pública da maior cidade da América Latina, é preciso oferecer um mínimo de horas mensais (20 para atendimentos individuais, 40 para atividades coletivas) de placebos.

A prefeitura vem celebrando o aumento da oferta das PICs, que passou de aproximadamente 86 mil atendimentos em 2008 para mais de 760 mil em 2023. Usa-se assim a desculpa de que existiria uma demanda orgânica por bobagens disfarçadas de medicina, como se não houvesse um lobby pesado dos proponentes dessas práticas, e um uso populista delas para encobrir deficiências: se os tratamentos de base científica parecem frios ou desumanizados, é preciso corrigi-los, não delegar a face humana do sistema para terceiros. Nesse aspecto, as PICs funcionam mais ou menos como a política dos médicos descalços de Mao Tse Tung nas décadas de 1960-70 na China.

Para cumprir a promessa de prover cuidados médicos para toda a população, entretanto sem profissionais de verdade em número suficiente, ou tempo e meios para formá-los, Mao decretou a integração da medicina moderna com a medicina tradicional chinesa, “resolvendo” — ou melhor, escondendo — o problema com uma canetada. Mais detalhes podem ser encontrados no livro “Que bobagem!”, de autoria minha e de Carlos Orsi. Curiosamente, a explosão de atendimentos paulistanos de PICs aparece a partir de 2022, depois de ter sido promulgada a portaria, sugerindo que a demanda é empurrada pela oferta, não vice-versa.

Semana passada, esta colunista e o professor da FGV Paulo Almeida publicamos artigo nas páginas de opinião de O GLOBO, chamando atenção para o desperdício de recursos da prefeitura de São Paulo com promoção das PICs, inclusive com a veiculação de anúncios na imprensa. Apontamos que as PICs não têm comprovação cientifica de eficácia ou segurança e são, na sua maioria, baseadas em premissas que contrariam princípios básicos da química, física e biologia. Além disso, nunca passaram por avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec).

Ao incluir oferta de PICs como métrica de qualidade para credenciamento de instituições parcerias, a liderança política da capital paulista equipara a oferta de placebos a indicadores sérios como cancelamento de cirurgias e número de infecções hospitalares. Para quem não tem familiaridade com as PICs, a própria portaria traz uma lista. Em seu artigo 4º, encontram-se pérolas como acupuntura sistêmica, nova craniopuntura de Yamamoto e auriculoterapia, tratamento homeopático, aromaterapia, bioenergética, constelação familiar, cromoterapia, imposição de mãos (reiki), terapia de florais, medicina antroposófica, tratamento ayurvédico, meditação naturopatia, quiropraxia e muito mais.

A Prefeitura de São Paulo parece investida em oferecer, promover, e além disso obrigar a implementação de bobagens no SUS, todas pagas com dinheiro do contribuinte. Ao tratar a distribuição de passes energéticos e de vidrinhos de floral como indicadores de qualidade para prestadores de serviços em saúde, a administração deixa claro que ou a gestão atual não entende nada de evidências políticas públicas em medicina e saúde, ou que prefere vender ilusões em forma de tratamento para atender a lobbies e buscar aprovação e votos. Nenhuma das alternativas é boa notícia para a população.

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