'No SUS, é medicina baseada em guerra': médicos driblam falta de recursos

A equipe do hospital municipal de Santa Cruz (RN) usou uma embalagem plástica de bolo como máscara de oxigênio, para ajudar um bebê de três meses com diagnóstico de bronquiolite. O caso ocorreu no Hospital Municipal Aluízio Bezerra, na quinta-feira (13).

Como o hospital municipal não é referência em UTI pediátrica, o município solicitou a transferência do bebê para uma unidade de saúde equipada para atendê-lo. Entretanto, o bebê piorou durante a espera e foi necessário fazer a máscara de oxigênio improvisada.

O paciente apresentava grave desconforto respiratório. Se demorasse, poderia evoluir rapidamente com parada respiratória. O improviso foi essencial para estabilizar o pequeno. Ganhamos tempo até conseguir um leito de UTI. Ellenn Dantas, diretora clínica e médica plantonista do Hospital Municipal Aluízio Bezerra, responsável pelo procedimento improvisado

Dantas afirma que adaptações do tipo são constantes e feitas por seus colegas também no dia a dia da profissão no SUS. "Sempre brinco que nos bancos da faculdade aprendemos medicina baseada em evidência, e nos hospitais do SUS e regionais, aprendemos medicina baseada em guerra. Ou nos adaptamos à realidade do 'não temos' ou cruzamos os braços. Prefiro me reinventar todos os dias e tentar o melhor sempre", diz.

Ouvida pelo UOL sobre o caso, Rita Ferreira, secretária municipal de saúde de Santa Cruz, confirma que o improviso é uma prática bem conhecida. "Muitas vezes, isso ocorre no serviço público. Nesse caso, o referido episódio só veio mais uma vez realçar a nossa luta e o nosso grito para que os responsáveis assumam as suas responsabilidades e competências", diz.

De acordo com Ferreira, não faltou material no serviço, mas sim um tipo de material específico. "E nossa equipe, mesmo assim, deu conta de improvisar, porque o que importava era a vida daquele bebê", diz.

Broca para furar crânio e sonda de urina em neurocirurgia

Improvisar na rede pública não é novidade. Entre 2006 e 2010, anos de residência médica de Wuilker Knoner Campos, hoje doutor em neurociências pela UFSC e presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, as improvisações em neurocirurgias em um hospital da rede pública eram rotineiras.

Recorrentemente faltava o material para fazer a abertura do crânio, chamado de craniotomo. Então, a solução era embalar uma furadeira convencional em um saco plástico estéril, conectar na broca cirúrgica e fazer a perfuração do crânio, para drenar um hematoma ou fazer uma cirurgia de emergência. Wuilker Knoner Campos, doutor em neurociências pela UFSC e presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia

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O neurocirurgião explica que era preciso fazer vários furos no crânio, para abrir a área onde era preciso intervir. O procedimento fazia com que se perdesse mais área óssea, sendo necessário usar uma espécie de preenchimento em massa ósseo sintética, geralmente fixada em cirurgia complementar.

"O grande problema de ficar adaptando material, é que eles são feitos para outros fins, e não para uso hospitalar. O maior risco é a infecção hospitalar ou injetar alguma substância que esteja contida nesses itens", diz Campos.

"Às vezes também não tinha o passador da serra, então era usada uma sonda de urina esterilizada para ajudar a passar a serra pelo crânio", continua o neurocirurgião.

O médico afirma que essas improvisações geralmente eram usadas em cirurgias decorrentes de trauma, onde o tempo é um fator determinante para vida e para ter maior chance de amenizar sequelas no paciente. "Na emergência neurológica, como um todo, não temos tempo. Tem que operar rápido", diz.

Falta de sabonetes a desfibriladores

José Hiran Gallo, presidente do Conselho Federal de Medicina, afirma considerar o Sistema Único de Saúde a maior política social implementada pelo Estado brasileiro. "Porém, ao longo das décadas, os sucessivos Governos têm falhado na gestão desse projeto. O escopo legal e teórico ideal do sistema sofre com as dificuldades práticas que se materializam na falta de insumos, equipamentos e medicamentos", diz Gallo.

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"Os conselhos de medicina fiscalizam regularmente esses serviços para verificar as condições de trabalho dos médicos e de atendimento da população", continua.

Gallo diz que fiscais dos conselhos regionais de medicina visitam unidades de saúde e os relatórios dão uma ideia do que se encontra na rede pública.

"No momento, estamos elaborando um trabalho mais extenso, que cobrirá de 2018 a 2023. Os dados do levantamento que cobriu de 2015 a 2017 mostraram que de 2.936 postos de saúde visitados, um total de 768 apresentavam mais de 50 itens em desconformidade com o estabelecido pelas normas sanitárias", afirma.

O que falta no SUS?

O levantamento feito pelo CFM entre 2015 e 2017 visitou 2.936 postos de saúde e mostrou que:

431 não tinham sala de expurgo ou esterilização;

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1.926 estavam sem oftalmoscópio;

1.303 não tinham negatoscópio;

1.051 não tinham otoscópio;

565 não contavam com aparelhos para medir pressão;

637 unidades não tinham estetoscópio;

269 não tinham termômetro;

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814 não tinham um desfibrilador e deveriam oferecer tratamento emergencial;

758 não tinham cânulas ou tubos endotraqueais;

728 não tinham aspirador de secreção;

662 não contavam com medicamentos para atendimento de parada cardiorrespiratória e anafilaxia;

264 não tinham sabonete líquido.

O outro lado e os investimentos na saúde

Em nota ao UOL, o Ministério da Saúde preferiu não comentar casos pontuais de falta de equipamentos, mas se posicionou informando que "apoia os estados, municípios e instituições nas melhorias das Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) do SUS por meio de convênios para questões estruturais, equipamentos, formação e capacitação para profissionais, projetos para desenvolvimento".

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Ainda em nota, o ministério apontou que para a implantação ou ampliação de novos leitos no Brasil, cabe ao gestor de cada território avaliar as necessidades da região e fazer as solicitações por meio do Sistema de Apoio à Implementação de Políticas Públicas em Saúde, o SAIPS.

De acordo com informações do CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde), o Brasil tem 5.174 leitos de UTI Neonatal habilitados e disponíveis para assistência aos cidadãos.

Em 2023, o Governo Federal investiu R$ 1.040.392.350,00 nesses leitos. Além disso, repassou recursos para a criação de 159 novos leitos de UTI neonatal, com investimento no valor de R$ 32.160.150.

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