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ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
De acordo com os dados do Sistema Único de Saúde, 38 meninas menores de 14 anos tornam-se mães todos os dias no Brasil. Segundo o ginecologista Olímpio Moraes, da Universidade de Pernambuco, cerca de 80% dessas meninas não sabem sequer o que é gravidez. Como são crianças, a gravidez só aparece lá pelo quarto ou quinto mês . Como, na maioria dos casos, são violentadas por alguém da família, há o manto do medo e da ameaça que explica o silêncio da sua condição. Como na maioria dos casos, são pobres ou muito pobres, não fazem consultas periódicas ao médico e os sintomas da gravidez, como as náuseas, são tratados com remédios caseiros. A interrupção da menstruação também não chama a atenção, porque são crianças. E por serem crianças , a gravidez gera um risco de morte de 2 a 5 vezes maior do que em uma pessoa adulta.
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Dos mais de 5500 municípios do Brasil, pouco mais de 100 têm serviços médicos que prestam atendimento para a realização do aborto legal. Na maior parte das vezes, porém, os médicos alegam “objeção de consciência” e se recusam a atender as crianças grávidas pela violência de homens que, muitas vezes, também são religiosos e têm objeção de consciência. O estuprador e o médico então condenam a criança ou a morrer no parto , ou sofrer um trauma muitas vezes irreversível com um aborto clandestino ou a ser mãe com 10, 11 anos de idade.
As pessoas mais velhas e mais instruídas sabem o que é gravidez e sabem o que é estupro. Diante de um infortúnio, sabem que devem procurar um médico o mais rápido possível. Crianças pobres e com pouca ou nenhuma instrução, não sabem de nada disso. E ninguém ensina para elas. Os mesmos cidadãos que batem no peito com suas “objeções de consciência”e sua citações bíblicas, são, na sua maioria, contrários que as escolas tenham aulas de orientação sexual, porque afirmam que não se deve molestar as crianças com esses assuntos de adultos. No entanto, nesse momento, mais de 14 mil crianças entre 10 e 14 anos estão grávidas porque foram molestadas por algum homem que ignorou que esse é um assunto de adultos.
Segundo dados do 17 anuário brasileiro de segurança pública, em 2022 o Brasil registrou o maior número de estupros de sua história. No país então governado pelo auto intitulado “imbroxável”, ocorreram quase 75 mil notificações, sendo que 56.820 eram meninas menores de 14 anos e 10% dessas, crianças menores de 4 anos. Foram 205 casos de estupro por dia. E em 68,3% desses casos, a violência sexual ocorreu dentro de casa. Foi o pai, o irmão, o tio, o primo, o padrastro, o enteado, o vizinho, o amigo da família, homens muitas vezes contrários às políticas de esclarecimento sexual nas escolas , homens muitas vezes tementes a Deus e que consideram que a vida deve ser protegida desde a concepção e que o aborto não deve ser tolerado. Mas a violência contra essas crianças ( mais de 5 mil delas com menos de 4 anos!) não parece fazer parte do repertório de objeções de consciência desses senhores.
Agora, como se todo esse horror não fosse suficiente, o deputado e pastor Sóstenes Cavalcante e outros 32 deputados e deputadas – entre eles o filho de “imbroxável” – defendem condenar as vítimas de violência sexual que praticarem aborto (legal !) depois da 22 semanas de gravidez a uma pena equivalente ao homicídio.
É evidente que o objetivo desse projeto é inviabilizar o atendimento médico a essas vítimas. Como a maioria delas é menor de idade, elas são inimputáveis. Mas a pena também se aplica ao médico responsável. Aí está o busílis. Sem mais o já escasso e precário atendimento médico, as crianças violentadas e grávidas, sem saber sequer o que é uma coisa ou outra, ficarão à mercê de outra situação da qual nem desconfiam que poderiam ser tão cedo: mães.
Já os homens que defendem a vida, que são tementes a Deus, que tem objeção de consciência e que silenciam diante do horror do abuso sexual dentro de casa, fruto de uma sociedade machista e patriarcal que vê a mulher como objeto e como serviço de seus desejos, estes comemorarão a eventual aprovação desse projeto. E muitos, provavelmente, rezarão em louvor e agradecimento: Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois Vós entre as mulheres, bendito é o fruto em Vosso ventre, Jesus.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador. Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR (Universidade Federal do Paraná).