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Falta de consenso tem sido o principal obstáculo para o avanço das propostas educacionais
Por – Renato Bulcão de Moraes*
Para analisarmos a ODS 4, precisamos retroceder ao ponto inicial da concepção da aquisição de conhecimento proposta por Aristóteles. Cerca de 300 a 400 anos antes de Cristo, Aristóteles já havia percebido que uma das formas, possivelmente a mais fundamental, de adquirir conhecimento é por meio dos cinco sentidos. É algo simples de compreender, logicamente sólido, que enfatiza a audição, visão, tato, olfato e paladar na percepção do mundo.
Aristóteles acreditava que poderíamos alcançar o conhecimento desenvolvendo nossos sentidos, pois é por meio deles que conseguimos organizar e direcionar nossos pensamentos sobre o objeto e, ao refletir sobre ele, começamos a obter conhecimento. O conhecimento é, então, o objetivo supremo para cada um de nós.
Assim sendo, se essas são as formas pelas quais podemos conhecer o mundo exterior para além de nós mesmos, não há impedimento para que isso se torne a base de nossa educação para a convivência. De forma mais sucinta, Aristóteles propõe que, a partir dos cinco sentidos, desenvolvamos alguma sensação em relação ao mundo e, a partir dessa sensação, elaboremos sentimentos. Esse tipo de pensamento é inteiramente lógico, não é por acaso que Aristóteles também formulou a primeira proposta de lógica, que permaneceu por muito tempo sem concorrência.
Somente com o surgimento do racionalismo cartesiano no século XVII é que tivemos um pequeno avanço em relação ao entendimento racional. E, dois séculos depois, finalmente temos a influência de Kant com seu projeto de unir racionalismo e idealismo, permitindo-nos alcançar um novo tipo de pensamento lógico, não apenas a lógica em si, mas o pensamento lógico que se relaciona com a realidade.
Do pensamento lógico surge, por exemplo, a própria concepção do pensamento crítico e, consequentemente, da formação do aluno crítico ou do cidadão crítico. Contudo, a crítica não se resume, como muitas vezes é retratada na cultura popular, a uma mera reclamação impulsiva do que não nos agrada ou que não compreendemos. A crítica é, em sua essência, uma forma de pensar profundamente fundamentada em seus próprios limites.
Kant propôs que a crítica seja, em essência, estruturada com base em imperativos categóricos, os quais, em última análise, buscam reintroduzir o pensamento de Confúcio no centro ou nos limites das discussões: “Não faça aos outros aquilo que não queres que façam a ti mesmo.” Essa é a premissa dos três imperativos categóricos de Kant. Em outras palavras, o pensamento crítico deve ser capaz de perceber que, se fosse o próprio pensamento fosse alvo de uma análise crítica, algo estaria equivocado e, portanto, a crítica necessitaria ser revista.
Essa abordagem é crucial, pois é a partir de Kant que surgem todos os idealismos modernos e, consequentemente, todas as ideologias contemporâneas. Falamos aqui tanto de Hegel quanto de Schopenhauer, Nietzsche, Marx e até mesmo Freud. O pensamento de Kant foi tão impactante para o século XIX que é praticamente inconcebível, como no positivismo de Auguste Comte, imaginar que uma ideologia poderia se manter de pé sem a incorporação de diversos conceitos provenientes da crítica da razão pura e da razão prática.
Todas as ideologias têm uma diferença fundamental em relação à religião. A religião, em sua essência, parte do pressuposto de que o sentir é superior a tudo o mais. Assim, sinto a presença de Deus. Sinto a presença do bem. Sinto a presença do mal. Sinto a presença do outro. Sinto… Sinto meu anjo da guarda me protegendo.
E assim por diante. De acordo com a visão original perceptiva de Aristóteles, todas essas sensações decorrentes do sentir são racionais e válidas. Elas, em princípio, conduzem a sentimentos, os quais são categorizados e valorizados como bons ou maus sentimentos. Com base nesse recorte, que engloba o lado pessoal, o lado social, bons sentimentos e maus sentimentos, posso então me voltar para conhecer de forma mais rápida, prática e, de certa forma, racional, a realidade do mundo.
A maioria das pessoas ainda é educada para agir dessa forma, pois a ideia fundamental de Aristóteles não estava vinculada a uma religião específica. Na verdade, não estava vinculada a nenhuma religião em particular. No entanto, ele revelou a base, que na academia chamamos de base epistemológica ou fundamental, de todas as religiões existentes. Isso porque a maioria das religiões presentes em nosso planeta hoje é pelo menos tão antiga quanto o pensamento aristotélico, se não mais antiga ou mais recente. Por outro lado, as ideologias que surgiram mais de 2 mil anos após Aristóteles perceber esse funcionamento básico da religião ou da percepção de conhecimento que atribuímos à religião, fizeram com que as ideias kantianas se organizassem em diferentes proposições ideológicas.
Temos o positivismo de Auguste Comte, que, em muitos aspectos, acabou se revelando uma forma de fascismo, especialmente quando se desdobrou na Eugenia. Também temos o marxismo, que a partir da adoção de outro princípio válido, embora não exclusivamente válido, a força econômica do capital, ou de forma mais básica, a necessidade de energia para qualquer empreendimento humano, fez com que as pessoas adotassem ideias de forma racional, e não mais sentimental.
Mesmo que essas ideias tenham moldado o século XX, como o capitalismo, o socialismo, o comunismo, elas nunca foram consenso absoluto. Fica claro que a religião também não alcançou consenso absoluto, como podemos ver pelas seitas presentes em todas as religiões, sejam judaicas, muçulmanas, cristãs, pois até mesmo as religiões não são unânimes. Da mesma forma, as ideologias não são unânimes. Portanto, ao analisarmos a ODS 4, que aborda excelência na educação e estabelece metas, muitas delas para 2030, percebemos uma série de objetivos que exigiriam uma coesão e aceitação universal para serem adotados efetivamente pelas populações globais.
A falta de consenso tem sido o principal obstáculo para o avanço das propostas educacionais, e isso é bastante evidente. A educação, em sua essência, implica na disseminação de uma cultura específica em um determinado território para um grupo de pessoas, que podem ser da mesma etnia ou de etnias diversas.
Nenhuma cultura é uniforme. Todas são, essencialmente, uma coleção de verdades sentimentais, conforme proposto por Aristóteles, e não existe uma cultura puramente racional, exceto em áreas muito específicas como física, matemática e química, talvez. O que existe são culturas baseadas em sentimentos, elementos que adotamos, muitas vezes sem compreender completamente por que, mas que nos ajudam a nos mantermos unidos dentro do que chamamos modernamente de Estado-nação.
Esses Estados-nação podem inclinar-se para a esquerda ou para a direita, persistir em uma ideia ou abandoná-la, dependendo da capacidade dos seus cidadãos de perceberem sentimentalmente essas propostas. Um exemplo simples encontramos em Manaus, localizada no coração da Amazônia, onde vivem cerca de 4 milhões de pessoas, a maioria das quais migraram para lá nos últimos 50 anos.
A população nativa de Manaus, que era de menos de 500 mil pessoas, foi superada em número pela quantidade de migrantes que chegaram à cidade. Enquanto os habitantes originais, os manauaras, estavam confortáveis sendo um povo fluvial, com sua conexão direta do Porto de Manaus ao Porto de Lisboa, por exemplo, e aos portos de Salvador e Rio de Janeiro, os novos imigrantes, em sua maioria vindos do Nordeste, sentiram e ainda sentem um grande incômodo pelo fato de a cidade não ter uma ligação terrestre com o restante do país. É como se os havaianos precisassem de uma ponte que ligasse as ilhas à costa oeste dos Estados Unidos para se sentirem plenamente americanos.
Por conta disso, há mais de uma década, eles insistem na construção de uma estrada que atravessará a floresta amazônica de ponta a ponta. No entanto, o restante do Brasil, que não reside em Manaus e não migrou para lá, enxerga claramente que a construção dessa estrada resultará na interrupção da preservação da floresta. Além disso, ela causará degradação ao longo de toda a sua extensão, reduzindo significativamente a área de floresta e possibilitando o avanço da agricultura e pecuária ilegais, ou de qualquer outra atividade que venha a ser estabelecida ao longo do trajeto.
A construção dessa estrada também resultará em uma migração indesejada de pessoas, diminuindo assim os chamados “rios suspensos”, que são as grandes quantidades de água que fluem para tornar o Centro-Oeste e o Sul do Brasil em áreas férteis independentes da Amazônia. Trago esse exemplo porque é muito simples e prático de entender em termos de sentimentos.
Não podemos determinar com imparcialidade se o Mato Grosso perderia sua vocação agropecuária, se o Paraná e Santa Catarina perderiam sua vocação agrícola devido à construção dessa estrada, e se isso seria benéfico para toda a população brasileira. É um dilema multifacetado, não há uma verdade absoluta em termos de ganhos e perdas em todos os momentos. No entanto, há um consenso internacionalizado que sugere que a estrada não deve ser construída e que a floresta Amazônica deve permanecer intocada.
Examinando a ODS-4
Dito isso, faço uma análise da ODS 4, resumindo alguns de seus pontos, pois muitas vezes eles se repetem e, portanto, respostas mais simples podem abranger vários aspectos de suas propostas.
A primeira proposta da ODS 4 é a educação de qualidade, entendida como garantir a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, além de promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. É uma afirmação com a qual todos concordamos em princípio. No entanto, surge uma questão, influenciada pela visão marxista da vida: o que é a relação custo-benefício? Como de fato asseguraremos essa educação inclusiva? Quem deve ser incluído? Que tipo de equidade promoveremos em territórios tão diversos, com geografias tão distintas? E como promover a aprendizagem contínua para todos, considerando que isso implica algum tipo de requalificação profissional para novas funções laborais?
Ao analisarmos com mais atenção, percebemos que essa proposta nos leva a questionar se há uma meta oculta por trás da racionalidade ideológica, algo que a quantidade de propostas apenas superficialmente abordadas parece estar impedindo de ser alcançado. Porém, na meta 4.1, o Brasil estabelece a meta de garantir até 2030 que todas as crianças completem o ensino fundamental e médio com qualidade, na idade apropriada, oferecendo isso gratuitamente na rede pública e garantindo resultados de aprendizagem satisfatórios e relevantes.
Mas no Brasil a questão da rede privada ou pública ainda está em aberto, gerando incertezas. Em segundo lugar, também não há uma proposta clara para resolver. Os conselhos estaduais de educação ficam com a responsabilidade de decidir sobre o papel da educação privada. Temos diversos colégios privados de qualidade, mas como medimos essa qualidade? Pelo PISA, por órgãos internacionais, por terceiros, pela comparação direta com a produção do PIB? Como avaliamos o aumento de qualidade nas escolas privadas?
Por outro lado, na escola pública, a proposta se assemelha mais à ideia de Michel Foucault de ter armazéns de crianças na forma de creches diurnas para abrigar crianças enquanto seus pais trabalham. Isso reforça a ideia de que a educação é responsabilidade do Estado. Na educação pública, há uma padronização cultural imposta aos pais.
As metas do indicador 4.11, que visam alcançar um nível mínimo de proficiência em leitura e matemática por gênero, ignoram as diferenças no desenvolvimento entre meninas e meninos. Além disso, meninas e meninos em diferentes regiões geográficas e com variações culturais diversas também obtêm resultados distintos.
Portanto, não há um acompanhamento efetivo que não seja por meio de avaliações nacionais centralizadas, as quais, embora possam reduzir o custo dessas avaliações, escondem uma série de disparidades de gênero e regionais, algo crucial devido às diversas variações culturais que ficam obscurecidas sob essas metas.
O acesso ao desenvolvimento integral na primeira infância, incluindo cuidados e educação infantil de qualidade, apresenta várias abordagens distintas. Em São Paulo, por exemplo, a maioria das creches atualmente é administrada por organizações sociais, frequentemente ligadas a instituições religiosas, e supera em cerca de seis vezes o número de creches oficiais da Prefeitura do Estado. São Paulo é uma das cidades que melhor cumpre a meta de garantir o desenvolvimento integral na primeira infância, mas através de um modelo híbrido que não sabemos se pode ser reproduzido em outras localidades do País, sem mencionar se é desejável replicá-lo.
Será que devemos permitir que uma congregação religiosa no interior do Amazonas seja responsável pela educação infantil das futuras crianças do Ensino Fundamental? Será que devemos permitir que essa congregação religiosa tenha uma influência predominante na preparação dos alunos para o Ensino Fundamental em uma cidade de 2 milhões de habitantes? Talvez sim. No entanto, se isso ocorrer, os defensores das escolas militarizadas deveriam ter percebido que é justamente na creche que se inicia a formação do futuro aluno militarizado ou da escola militar, para que, desde o Ensino Fundamental, ele possa assimilar a cultura proposta.
E é importante frisar que culturas são sentidas, não são compreendidas. Ninguém compreende uma feijoada, um churrasco, ou uma moqueca. Você sente o sabor dessas iguarias. Ninguém compreende o samba, o carimbó. Você ouve e reage a essas manifestações culturais. Portanto, essa confusão em achar que coisas que precisam ser sentidas também conseguem ser entendidas é o que impede o progresso efetivo da meta 4.2.
Na meta 4.3, há uma preocupação em garantir igualdade de acesso à educação técnica, profissional e superior de qualidade para todos, com preços acessíveis, incluindo universidades. A valorização da universidade já está clara, assim como a valorização do ensino privado. O Brasil se comprometeu a promover a equidade de gênero, raça, renda, território e outros até 2030. No entanto, pensar que uma escola no Rio de Janeiro será igual a uma escola em Cuiabá é buscar uma centralização cultural, econômica e governamental que não faz sentido algum. Cuiabá e Rio de Janeiro são cidades com características distintas e distâncias consideráveis, seria o mesmo que sugerir que Copenhague, na Dinamarca, e Lisboa, em Portugal, deveriam ter o mesmo modelo de educação.
Essa ideia de construir um império a partir de uma homogeneidade cultural brasileira parece pertencer ao tempo do império. Na era republicana, devemos permitir e valorizar a diversidade, pois é essa diversidade que possibilita a inclusão de gênero, raça, renda, território e outros, de acordo com as necessidades e capacidades específicas de cada grupo humano. Não podemos simplesmente importar soluções do Rio de Janeiro sem adaptação para cidades como Cuiabá, São Paulo e Palmas, Porto Alegre e Natal, ou qualquer outra região do País. A meta no Brasil foi ajustada para refletir as características brasileiras, o que confirma a necessidade de abordagens adaptadas e não universais.
Não faz sentido que uma meta global seja aplicada de maneira única e exclusiva a um país, cultura e território específicos. Essas metas podem esboçar desejos ideais para a formação de uma nova ideologia, mas devem refletir a diversidade e as necessidades reais de grupos sociais diversos dentro de um projeto político unificado.
A meta 4.4 visa garantir que jovens e adultos adquiram habilidades relevantes, incluindo competências técnicas e profissionais para empregos, trabalho digno e empreendedorismo. Estamos imersos em uma era de contínuo avanço que remonta antes da Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939 e concluída em 1945, e que tem se reinventado ao longo de quase um século. Nos últimos 100 anos, criamos e desenvolvemos mais tecnologias, produtos e serviços inovadores do que nos mil anos anteriores. Não apenas inventamos, mas também disseminamos e introduzimos mudanças profundas.
Antes, hábitos regionais e restritos a certas castas agora são acessíveis a todos, graças aos mecanismos de crédito que democratizam o acesso à internet, telefones celulares, viagens aéreas, cruzeiros, automóveis, serviços de saúde e educação. Essa revolução, onde o crédito impulsiona a adoção de novos hábitos em favor das inovações tecnológicas, é uma exclusividade do século 21 e está transformando a sociedade de maneiras perceptíveis até nas coisas mais simples.
Vemos pessoas na África, Ásia e América Latina usando bonés de beisebol, um esporte exclusivo dos Estados Unidos, camisetas com mensagens ou propagandas e, frequentemente, chinelos, muitas vezes os havaianos. Esse “uniforme global” é observado na Indonésia, Malásia, Gana, Cidade do Cabo, Nairóbi, Lima, São Paulo, Bogotá, Cidade do México, Los Angeles, San Diego, Austin e tantos outros. Isso evidencia que, por meio de sistemas de crédito adaptados às necessidades regionais e culturais de cada país, há uma adoção de hábitos uniformizados globalmente, sem afetar profundamente as culturas locais.
Essa interação ideológica, junto com a convivência religiosa e cultural, não é devidamente considerada pelos planejadores educacionais. O mesmo fenômeno ocorre com o uso de telefones celulares, onde a presença de antenas modifica a forma de vida, seja através das redes sociais, de aplicativos específicos ou do aumento da participação popular na democracia.
Embora muitas pessoas critiquem que os telefones celulares e as redes sociais estão promovendo uma baixa qualidade educacional, é evidente e coletivo que, na verdade, o que as pessoas estão expressando publicamente são seus sentimentos moldados pela educação que receberam. Seja essa educação oriunda de aspectos exclusivamente culturais, seja de viés ideológico-cultural. Quando assuntos públicos são debatidos nas redes sociais, independentemente da plataforma utilizada entre as milhares disponíveis, e vemos as opiniões diferentes sobre o tema sendo expressas de forma popular, estamos presenciando uma disseminação de ação entre a população, o que pode ser considerado até democrático, em comparação ao que tínhamos antes.
O grande desafio para aqueles que antes detinham o poder e prezavam por uma comunicação exclusivamente de cima para baixo, ou seja, das classes dominantes para as dominadas, é lidar com o questionamento desse ponto de vista considerado culto ou especializado.
De forma prática, observamos que as pessoas têm suas próprias opiniões, moldadas principalmente por sensações e sentimentos, e não apenas pela racionalidade imposta pelas ideologias. No contexto da inclusão de grupos como pessoas com necessidades especiais, populações itinerantes, comunidades indígenas e tradicionais, surge a incerteza sobre se essas pessoas desejam de fato uma integração para se tornarem brasileiros urbanos.
Talvez prefiram manter suas identidades como povos originários, itinerantes, tradicionais, ou até mesmo quilombolas, adotando apenas tecnologias modernas como celulares e computadores. No entanto, podem não desejar adotar vestimentas ou linguagem específicas, embora não se incomodem em substituir objetos tradicionais por materiais modernos, facilitando suas vidas. Surge então a questão: é correto ensinar o uso inadequado de materiais como o plástico para essas pessoas que ainda não tiveram uma educação racional adequada? O cerne do problema reside na definição de “educação adequada” para aqueles que optam pela praticidade dos objetos descartáveis em plástico em detrimento de métodos tradicionais e sustentáveis.
Pedir comida por entrega e descartar todas as embalagens pelo aplicativo é um hábito saudável ou sustentável para o planeta? Quantos de nós adotamos e mantivemos esses hábitos, especialmente durante e após a pandemia?
A meta 4.6 das Nações Unidas busca que todos os jovens e uma parcela significativa dos adultos, homens e mulheres, sejam alfabetizados e tenham conhecimentos básicos de matemática. Isso é louvável, porém o que define o conhecimento básico de matemática? Em sua essência, engloba as quatro operações matemáticas. Além disso, há um nível intermediário geralmente alcançado durante o ensino fundamental II e um conhecimento mais aprofundado durante o ensino médio.
O conhecimento adquirido no fundamental II, por exemplo, se torna útil quando um pedreiro compreende como medir 50 kg de cimento em relação a 30 litros de água, não apenas empiricamente, mas de forma racionalizada e culturalmente aplicável. Isso não apenas economiza tempo, mas também aprimora suas habilidades. O mesmo princípio se aplica a um motorista de caminhão. Se ele precisa frear um veículo de 20 toneladas, viajando a 120 km/h, em direção a um carro familiar de 2 toneladas, a 90 km/h, qual a sua capacidade de calcular o atrito e evitar um acidente grave?
Efetivamente, quer o motorista esteja embriagado ou não, ele muitas vezes não consegue realizar esse cálculo crucial. Isso é tão relevante que, em alguns países, como na construção das autoestradas espanholas, foram incorporadas faixas especiais de segurança para indicar onde os caminhões deveriam estar, deixando espaço para os automóveis à frente. Isso porque se presumia que, uma vez atingida a velocidade máxima do caminhão, com uma estimativa média de peso por veículo de transporte, o motorista não seria capaz de calcular mentalmente a distância necessária de segurança em metros em relação ao veículo à frente. Por essa razão, era imprescindível marcar no asfalto a distância exata para evitar que problemas como falhas nos freios ou mecânicos se tornassem tragédias.
Esse tipo de falta de percepção não está restrito às estradas; vemos isso também nas cozinhas, com chefs que não dominam medidas precisas, assim como na vida cotidiana, com desafios em perceber dimensões como altura, largura, profundidade, peso, e assim por diante. Esses são aspectos que deveriam ser mais bem abordados pela educação para que as pessoas possam ter uma percepção mais precisa da realidade ao seu redor.
Certamente, é comum assumirmos que certas classes sociais já possuem esse conhecimento de forma intrínseca. No entanto, ao mesmo tempo em que não fornecemos exemplos consistentes para aqueles que não fazem parte das classes dominantes ou das elites, cobramos que eles sigam essas regras, especialmente ao aplicar provas que constantemente se referem a questões que as elites conhecem e resolvem em seu ambiente familiar, decorrentes da influência de sua ideologia de classe.
Por fim, na meta 4.8, nos deparamos com a proposta do desenvolvimento sustentável e de estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de gênero e a promoção de uma cultura de paz e não violência. No entanto, devemos lembrar que a cultura da violência geralmente está associada à escassez.
Historicamente, essa cultura da violência foi estimulada por países colonizadores e, dentro desses países, pelas elites que tendem a favorecer a exclusão. As elites que, por outro lado, realmente adotam a inclusão, são aquelas que abraçam a ideia do crescimento de nichos de crédito, pois obtêm lucros significativos dessa abordagem, em contraste com a exportação forçada e unilateral de mercadorias, como ocorreu no antigo Tratado de Methuen, assinado por Portugal em 1703, em que a Inglaterra priorizava a importação de vinho de Portugal em troca da obrigatoriedade de Portugal importar todo o material de ferro e tecido da Inglaterra.
Esse é talvez um dos primeiros e mais notáveis tratados colonizadores que ocorreu dentro do próprio continente europeu. Essa troca desigual e assimétrica ainda é promovida ou tentada pelas alas conservadoras tradicionais.
No que diz respeito ao desenvolvimento sustentável, ainda há duas vertentes que não alcançaram consenso. Uma delas é o que eu chamaria de desenvolvimento sustentável primário, ou “raiz”, amplamente reconhecido no Brasil devido à atuação dos preservacionistas no Acre, com suas castanheiras e seringueiras. Nesse modelo, a floresta permanece intocada, enquanto os trabalhadores colhem os produtos de forma sustentável, sem derrubar árvores, gerando uma quantidade limitada de produtos exportáveis a um preço atrativo, o que, teoricamente, melhora a qualidade de vida dessas comunidades.
Entretanto, essa abordagem apresenta desafios. Um deles é a limitação do número de pessoas envolvidas em atividades produtivas, o que resulta em desigualdade de gênero, já que os homens, devido à sua força física, tendem a dominar esses postos de trabalho. Além disso, há um limite no desenvolvimento econômico da comunidade como um todo, o que dificulta a oferta de serviços públicos de qualidade, especialmente saúde e educação. Isso se deve à dispersão dessas comunidades em vastas áreas, com baixa densidade populacional por quilômetro quadrado.
Por outro lado, há quem apoie o desenvolvimento sustentável, especialmente em áreas onde a atividade humana já alcançou um nível excessivo. Estamos tratando, por exemplo, da geração de resíduos urbanos em excesso, das emissões exacerbadas de gases, seja por aeronaves, automóveis ou trens. Estamos também falando do uso desenfreado da água, com populações que ultrapassam a capacidade hídrica do território.
Isso evidencia que existem problemas e metas distintas, por quê? Porque o mundo se encontra em estágios diversos de desenvolvimento. As disparidades entre desenvolvimento pré-rural, pré-agrícola, agrícola e urbano são tão marcantes que, em lugares onde essas transições se misturam, como na Holanda, vemos fazendeiros urbanos culpando populações urbanas, das quais eles próprios fazem parte, por problemas nos quais não se consideram exclusivamente responsáveis pelo comportamento geral da nação. Não se trata de determinar culpa, mas é evidente que a coexistência entre aglomerações urbanas e uma base agrícola sólida é crucial.
Na Meta 4A, as Nações Unidas abordam a questão das crianças e indivíduos vulneráveis às deficiências, buscando criar ambientes de aprendizagem seguros, não violentos e inclusivos. Ainda não conseguimos dominar a complexidade da vida urbana. Essas metas ultrapassam os limites do possível. Claro, seria maravilhoso viver no Paraíso dos Anjos, mas a realidade é outra. Somos humanos, uma espécie animal assim como leões, primatas, zebras, jacarés, hipopótamos e cobras. A aspiração de sermos anjos é inspiradora no contexto religioso. No entanto, transformar isso em ideologia, como a ONU tenta fazer, nos confronta com a realidade do que realmente somos. Essa realidade é parte do que o filósofo Paulo Arantes descreve como as promessas vãs da esquerda. São narrativas encantadoras, mas impossíveis de serem concretizadas, o que negaria nossa natureza ansiosa e nossa essência humana.
No Brasil, para alcançar essa meta, estamos buscando o básico. Escolas bem estruturadas fisicamente, ambientes seguros e sem violência para aprendizado, abordagens pedagógicas adequadas, equipamentos de informática apropriados e hábitos essenciais, como ensinar as crianças a higiene das mãos.
Certamente, quando falamos em ensinar as crianças a lavar as mãos, estamos abordando também o uso adequado do banheiro. Por falar nisso, quantas salas de aula no Brasil contam com pias para as crianças lavarem as mãos sem dificuldades durante o dia letivo?
A Meta 4B é uma iniciativa que, inicialmente, busca desenvolver os países africanos, refletindo uma atitude paternalista de que precisamos cuidar dos africanos. Não, não é nossa responsabilidade cuidar dos africanos. Eles são indivíduos dignos, com culturas ricas e ancestrais, que necessitam adaptar suas tradições antigas para os tempos modernos, sem a obrigação de seguir modelos de liderança ocidentais ou chineses. Eles devem buscar, a partir da diversidade do mundo, desenvolver suas culturas com autonomia, de modo a se inserirem de forma mais satisfatória no contexto contemporâneo do século 21 em seus países. Isso é o que devemos incentivar. Os africanos têm a capacidade de resolver seus próprios desafios. Não cabe a nós, europeus, ocidentais, sul-americanos ou asiáticos, impor soluções aos problemas dos africanos. Podemos oferecer ajuda conforme solicitado, mas não devemos impor nossa vontade sobre eles. Aliás, os últimos a tentarem isso foram justamente os chineses, que perceberam rapidamente os limites dessa abordagem. E esses limites são bastante evidentes.
Na Meta 4C, as Nações Unidas propõem aumentar o número de professores qualificados, inclusive por meio da cooperação internacional. No entanto, é importante ressaltar que as culturas não podem ser internacionalizadas. O único aspecto cultural que está se tornando cada vez mais globalizado é a cultura do crédito. Mesmo assim, essa cultura do crédito é regionalizada, com métodos de pagamento e financiamento variados em diferentes partes do mundo. Por exemplo, os meios de pagamento que são comuns em países africanos podem não existir na Europa, e vice-versa. Isso demonstra a complexidade e a necessidade de abordagens diferenciadas para diferentes contextos.
Portanto, não podemos esperar encontrar uma solução única que resolva todos os problemas, a menos que estejamos dispostos a transformar o mundo em uma entidade única e centralizada, o que contradiz os princípios democráticos defendidos pelas Nações Unidas até o momento. É evidente que existem pressões de certos grupos que favorecem a centralização. Cada vez que alguém defende a centralização, seja de orientação política de direita ou esquerda, estamos lidando com ideologias que buscam exercer poder sobre os países do mundo por meio das Nações Unidas, através de uma abordagem de cima para baixo.
No Brasil, temos uma situação bastante peculiar quando se trata da Meta 4C, que visa ter professores de maior qualidade. É fundamental compreender que não podemos desvalorizar o papel do professor em relação a outras profissões, como a do policial militar, que requer um nível de formação inferior. É claro como água que os professores devem ter salários mais altos do que os militares, isso é uma questão óbvia.
Além disso, precisamos de mais professores. Precisamos de profissionais que não apenas ensinem os alunos, mas que também sirvam como ponte entre o conhecimento fornecido pela educação e a vivência proporcionada pela cultura. Os professores não devem impor uma determinada ideologia aos alunos; eles devem simplesmente mostrar em que ambiente cultural os alunos estão inseridos.
Esse ambiente cultural requer compreensão de diversas disciplinas, como Geografia, História, Matemática, Língua Portuguesa (ou a língua do país), Química, Física e outras matérias presentes no currículo escolar. Não adianta ser extremamente especializado em uma matéria específica. É necessário promover a transposição entre disciplinas, o que chamamos de transversalidade, ou ensino transversal entre culturas. Isso permite que o aluno compreenda a importância de questões como agricultura, exploração mineral, uso de recursos hídricos, pavimentação de ruas em uma cidade e canalização de rios.
É fundamental estabelecer conexões entre o conhecimento das disciplinas básicas para que o aluno compreenda verdadeiramente a cultura de sua região. É aí que a transversalidade se torna eficaz. Não adianta esperar que o aluno compreenda primeiro a realidade do Rio de Janeiro, de São Paulo ou de Brasília, por exemplo, e depois compreenda a realidade de sua própria cidade. Isso apenas perpetua uma matriz de subcolonização, onde o aluno constantemente acredita que sua terra é inferior em termos de riqueza natural e cultural em comparação com outras regiões.
*Renato Bulcão é formado em Filosofia pela USP, onde foi professor e pesquisador por 14 anos. Tem Mestrado em Comunicação pela USP e Doutorado em Educação e História da Cultura pelo Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Foi pioneiro em sistemas de comunicação para EAD e, em 2009, transferiu-se para o ensino privado com atuação na UNIP, onde ajudou a formar cerca de 40% dos atuais professores do Ensino Básico do Estado de São Paulo; e na Yduqs, para onde foi transferido com a aquisição da Adtalem, onde atuava como Coordenador de EAD da Wyden. Nesse sentido, cuidou do processo de ensino-aprendizagem de
cerca de 15 mil alunos no total, a metade em licenciaturas.
**As opiniões expressas no artigo não necessariamente expressam a posição de NEO MONDO.