Imagem: Freepik
A lição de Hobbes
Por Daniel Medeiros*
Thomas Hobbes atravessou sua longa vida em meio a uma Inglaterra conflagrada. Com inimigos por todos os lados, viveu no exílio e, muitas vezes, recluso. Não deixou, porém, de pensar sobre as razões de toda aquela violência que impedia uma existência na qual pensar o amanhã fosse uma possibilidade plausível, corriqueira. Hobbes culpou os desejos humanos por esse estado de coisas, particularmente o desejo que os homens nutrem pelo poder.
Apontou também seu dedo acusador para a Liberdade inerente aos homens, que se traduz na vontade irrefreável de fazer o que lhes dá na veneta, sem oposição ou resistência. O resultado é o que se via na Inglaterra do século XVII: ninguém se entendia e todo mundo se matava, sem dó nem piedade.
Hobbes via o mundo à sua volta pelo filtro do indivíduo sem sociedade. Via milhares e milhares de seres singulares vivendo uns ao lado dos outros, dotados apenas de seus desejos ( o que Freud depois vai chamar de pulsões) e de seu sentido de liberdade sem limites. E, a partir do que via, Hobbes previu uma catástrofe ainda maior do que aquela que já ocorria em seu país natal. Para ele, os homens não sobreviverão se dependerem somente de si próprios, se forem deixados ao seu próprio escrutínio, e a razão dessa profecia funesta é simples: é impossível evitar a presença dos outros homens em sua radical igualdade (Nem Robison Crusoé pode evitar a chegada de Sexta feira!).
E o resultado dessa presença será um permanente estado de guerra de todos contra todos. Diante desse cenário, como desenvolver indústria, agricultura, comércio, como planejar o futuro dos filhos, como poupar para investir, como relaxar e deixar-se no descanso das férias merecidas? Tudo impossível, inviável, caso não exista uma forma de controlar esse ímpeto de vontade permanente e essa ideia de que tudo pode ser possuído, tomado, conquistado, essa liberdade sem peias, essa cegueira da existência de um outro que deseja o mesmo que você e que também não está vendo nada pela frente.
Quase quatro séculos depois, vivemos em um mundo que olha para os índices de violência global e não sabe o que fazer. Crianças, jovens, mulheres, pessoas vulneráveis de todos os espectros sofrem o isolamento pela presença ameaçadora dos outros e não parece haver mecanismo eficaz para protegê-las. Pior: os mecanismos que deviam proteger se corrompem e aumentam o temor geral. Não sabemos se é melhor esperar a polícia chegar ou suplicar pela boa vontade do ladrão. A frase de Hobbes ecoa em nossos ouvidos como se fosse proferida no programa de rádio da semana passada: “o homem é lobo do próprio homem”. O que fazer com todo esse medo?
O medo, ensina o pensador inglês, faz a Razão despertar. E é a Razão o fio de Ariadne, a chave para sair do labirinto. Uma Razão aplicada, que seja capaz de transformar um indivíduo em um cidadão. Cidadão é quem aprende que a vida em comum é inevitável e concorda que é preciso buscar formas de autoreprimir os desejos e vencer a Natureza que há em cada um de nós. Como Hobbes ensinou em seu Leviatã. Como Freud lembrou em seu Mal Estar da Civilização. Combater a violência no mundo é, antes de tudo, combater a vontade de ser violento dentro de nós. E isso é possível com a compreensão de que o Outro estará diante de nós quer queiramos ou não, e que tudo o que desejamos não é possível possuir e, por isso, não teremos toda a Felicidade que imaginamos, mas somente algumas alegrias nos interstícios de uma vida de constantes concessões e compromissos.
Os países que compreenderam essa dura lição construíram sólidas instituições democráticas, que não garantem tudo (até porque não prometem tudo), mas que, ao longo do tempo, foram ampliando os direitos e os espaços de exercício da individualidade primordial dos homens. Os que não compreenderam (como nós) criaram guetos de liberdade protegidos por altos muros e por carros blindados e seguranças armados e por discursos em defesa da morte e da punição dos que põem em risco sua ilusão de indivíduos.
Promover uma sociedade pacífica e inclusiva implica aprender a lição de Hobbes: ou todos se beneficiam de algo da liberdade, o que é o máximo possível em meio a tanta gente diferente e repleta de desejos, ou não há chance para ninguém. Os que escapam provisoriamente, vivem a ilusão da segurança, até o momento em que o GPS erra o caminho da festa, entra na rua sem proteção para eles e os colocam diante dos lobos vorazes.
Ou construímos uma sociedade com instituições que amparem todos e punam todos com a mesma régua, ou viveremos na ilusão de eleger quem prometer mais mortes e mais violência como garantia da liberdade aos “homens de bem”. Até que, de morte em morte, de horror em horror, voltemos ao princípio, onde não haverá mais um amanhã plausível. Só o medo.
E não se poderá dizer que não foi por falta de aviso.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador. Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR (Universidade Federal do Paraná).
**As opiniões expressas no artigo não necessariamente expressam a posição de NEO MONDO.