A não-resposta é a ameaça mais severa a gentileza – Imagem: Freepik
ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
Outro dia fiz uma pergunta a um jovem e ele me disse, de bate pronto: não quero falar sobre isso agora. Engoli em seco, não de raiva ou de indignação pela falta de educação demonstrada, mas por um misto de susto e medo pelo destino do diálogo no mundo que ali se revelava. Repassei rapidamente todas as vezes da minha infância e juventude nas quais um adulto me fez uma pergunta e imaginei-me dando essa resposta. Corei de vergonha ao pensar nessa hipótese absurda. Mesmo agora, adulto há tanto tempo, recebo, principalmente de alunos, perguntas postadas no domingo de tarde, de noite, em qualquer horário, e imagino sempre a urgência da pergunta e não a falta de cuidado com o meu período de descanso merecido. E respondo, mesmo que brevemente. A não-resposta é a ameaça mais severa ao já tão combalido campo do diálogo, fonte da troca de experiências, campo de semeadura da solidariedade, gentileza e da cooperação. Sem o esforço por atender a uma expectativa alheia, mesmo que superficialmente, o que podemos esperar desse Outro com o qual convivemos diariamente?
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Vivemos a era dos ódios oportunistas. As redes sociais são o palco preferido desse exercício de encontrar algo – uma palavra, uma frase mal dita, um gesto fora do lugar – e então expo-la para todos, seguido de um comentário agressivo. O resultado ou é a troca interminável de insultos ou o silêncio, que hoje tem o nome de “cancelamento”. Erva daninha e deserto, espalhando-se velozmente, para que nenhum diálogo proveitoso frutifique. A violência tem esse dom. Walter Benjamin, o filósofo alemão, em um texto chamado “O narrador”, destaca o silêncio dos soldados que voltavam da guerra e como esse silêncio apagava as experiências vividas, na medida em que as experiências que não são relatadas para ouvidos atentos não se transformam em histórias, em narrativas a serem contadas nas rodas ao redor da fogueira, nas mesas de jantar, nos bares e nos encontros fortuitos na rua e na praça, gerando sabedoria e contribuindo para os modos de viver. Sobra o silêncio ou sobra a difamação, que é uma forma pervertida de diálogo, no qual os pólos deixam de se atraírem pelo som da palavra mas viram sereias ardilosas esperando tudo se acabar em rochedos.
Vivo da palavra, dita e escrita. Ao longo das quase quatro décadas de magistério nas quais passaram por mim milhares e milhares de jovens, quase todos da mesma idade, busquei contar histórias, não para ser entendido, mas para observar o efeito da palavra neles. Uso a palavra como um convite para dançar. E posso testemunhar como o deserto vem avançando nesses últimos anos. Antes, as salas eram ruidosas e alegres, hoje são tristes e distantes. Antes, eu sabia que era ouvido pelas risadas que explodiam diante de um chiste que eu contava, de um segurar um segundo a palavra que completava a frase capciosa e esse segundo era compreendido como um passo particular da dança e eles sabiam qual era o próximo floreio e divertíamo-nos juntos. Colho até hoje a alegria desses tempos quando encontro ex-alunos, agora homens e mulheres formados, e eles me contam, cheios de alegria que seus filhos – ensimesmados e sempre desconfiando de tudo – são meus alunos e então pedem que eu conte essa ou aquela história para eles. Mas eu não posso mais conta-las , porque eles encontrariam nelas uma palavra, um gesto, um tom que reprovariam e que reclamariam , negando o diálogo no silêncio constrangedor da não resposta.
Chico Buarque, na célebre canção “todo o sentimento” fala de um “tempo da delicadeza”. Esse tempo, de reencantamento pela presença do outro, pelas histórias contadas, pela escuta atenta, pela disposição em atender ao pedido da conversa, é uma obrigação difícil mas necessária para a nossa geração. Pra que tudo não acabe em deserto.