Serra do Amolar, Pantanal – Imagem: Francine Leal
ARTIGO
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Por – Francine Leal*, especial para Neo Mondo
Em abril-2024, o Comitê Gestor do Fundo Nacional de Repartição de Benefícios CG-FNRB oficialmente retomou os trabalhos em sua 12ª Reunião, reunindo representantes governamentais e da sociedade civil para discutir questões cruciais relacionadas à repartição de benefícios (RB) decorrentes do acesso ao patrimônio genético (PG) e ao conhecimento tradicional associado (CTA) no Brasil. A GSS Carbono e Bioinovação acompanhou as discussões o que me levou a fazer reflexões sobre os dados apresentados e a importância desse tema.
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Vale lembrar que o compartilhamento de benefícios justo e equitativo é um dos três objetivos principais da Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB, firmada no Rio de Janeiro durante a ECO-92. A CDB é o principal tratado internacional concebido para proteger a diversidade biológica para as gerações presentes e futuras, estabelecendo três objetivos fundamentais: a conservação da biodiversidade, a garantia de seu uso sustentável e a promoção da justa e equitativa repartição de benefícios pelo uso dos recursos genéticos. Buscando pôr em prática esses objetivos, a CDB reconheceu que cada país tem soberania sobre o patrimônio genético existente em seu território e, dessa forma, tem liberdade para definir as normas que regularão o seu acesso e consequente repartição de benefícios, quando for o caso. Por ser um país conhecido pela sua megabiodiversidade, é compreensível que tenha sido o Brasil um dos primeiros a implementar uma lei que regulamentasse o acesso e repartição de benefícios referente à exploração do patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado.
Após a revogação da Medida Provisória 2.186/2000 que regulamentou o tema durante 15 anos, a Lei 13.123/2015 veio como promessa de desburocratização do sistema regido pela antiga norma, com mecanismos operacionais declaratórios por meio do SisGen – Sistema de Gestão do Patrimônio Genético, Conhecimento e Tradicional Associado. Por meio dele, os usuários podem realizar cadastros quando estiverem desenvolvendo atividades de acesso ou remessa de patrimônio genético brasileiro (PG) ou conhecimentos tradicionais associados ao PG (CTA). Além disso, o SisGen pode ser usado para a notificação de produtos acabados e materiais reprodutivos, e para a gestão das repartições de benefícios. Anualmente, os Usuários que tenham desenvolvido produtos oriundo de acesso e que o PG seja um dos elementos principais de agregação de valor, bem como no caso de desenvolvimento de materiais reprodutivos nas atividades agrícolas devem reportar os valores referente a receita líquida obtida com a exploração econômica destes, para que seja calculado o valor a ser destinado como repartição de benefícios estabelecido pela CDB.
No Brasil, existem duas modalidades para o cumprimento desta obrigação, a primeira delas é a chamada “monetária”, em que o Usuário deve destinar ao FNRB o equivalente a:
- 1% da receita líquida (RL) no caso de acesso ao PG (patrimônio genético) ou CTA-ONI (conhecimento tradicional de origem não identificável);
- 0,5% da receita líquida no caso de acesso a CTA-OI (conhecimento tradicional de origem identificável)
A segunda modalidade é definida pela Lei 13.123/2015 como “não monetária”, o que costumamos chamar de “Projeto de Repartição de Benefícios”, que só pode ser aplicado após o Projeto ser aprovado pelo Departamento do Patrimônio Genético – DPG, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Neste caso, a aplicação de valores se dá da seguinte forma:
- 0,75% da receita líquida (RL) em projetos destinados a conservação e uso sustentável da biodiversidade, salvaguarda de conhecimentos tradicionais associados, capacitação de recursos humanos relacionados aos temas acima, e outros;
- 1% da receita líquida em projetos relacionados a destinação de produtos em programas de interesse social, licenciamento livre de ônus e transferência tecnológica;
No caso de acesso a conhecimento tradicional associado de origem identificável, a destinação dos valores serão em ambas as modalidades, uma vez que obrigatoriamente 0,5% da RL ao FNRB para atender a todos os co-detentores do conhecimento que gerou o desenvolvimento de um produto pelo Usuário, e um adicional a ser livremente negociado e acordado entre o provedor deste conhecimento e o Usuário.
A Lei de acesso e repartição de benefícios no Brasil que entrou em vigor em 2015, ainda engatinha no que se refere a aplicação desses recursos aos seus beneficiários. São várias as razões que levam às dificuldades de operacionalização da norma, em especial a falta de recursos humanos nos departamentos e órgãos responsáveis pela sua gestão.
Com os números apresentados pelos representantes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), instituição responsável pela gerência do Fundo, durante a 12ª Reunião do CG-FNRB, podemos estabelecer uma fotografia de como a aplicação dos recursos de repartição de benefícios tem se dado no Brasil.
Indicadores Gerais da Repartição de Benefícios no Brasil
O valor corresponde, atualmente, às arrecadações até o ano fiscal de 2022 – ou seja, dos valores depositados até 2023 com rendimentos – é de R$7.438.596,49. Desse total, aproximadamente 1,2 mi (21% do total) decorrem dos rendimentos do Fundo, que é remunerado na taxa SELIC, assim como o Fundo do Clima.
Valores arrecadados pelo FNRB desde a abertura da conta:
- 2020 – R$ 2.610.675,14
- 2021 – R$ 1.250.964,25
- 2022 – R$ 1.230.288,06
- 2023 – R$ 1.192.391,06
- 2024 – R$ 1.600.00,00 (aproximadamente)
Destacamos que apenas 65 empresas fizeram depósitos no fundo desde 2020, quando ele foi operacionalizado. Desses depósitos, aproximadamente 60% são decorrentes de RB por acesso ao PG, e 30% decorrentes de acesso ao CTA de origem identificável (quando é apontada uma comunidade ou povo tradicional detentor do conhecimento). Os outros 10% são divididos entre RB por acesso ao PG ex situ e CTA de origem não identificável.
Arrecadação referentes ao reporte de receita líquida de 2023
Todos os anos, empresas que fazem acesso ao PG e/ou CTA e desenvolvem produtos cujo elemento principal de agregação de valor é obtido por meio deste acesso, devem reportar as receitas líquidas obtidas no ano fiscal anterior até março. Nesse contexto, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) apresentou as previsões de arrecadação do fundo para 2024, que corresponde ao pagamento das RBs do ano fiscal de 2023, reportadas até março último no SisGen.
No reporte de 2023, que teve seu prazo final para declaração em 31 de março de 2024, 47 empresas declararam os valores correspondentes a 1% ou 0,5% da sua receita líquida, gerando um montante de R$1,6 mil. Interessante observar que, uma única empresa foi responsável por declarar um valor equivalente a 43% do total previsto de arrecadação pelo FNRB. Outro ponto interessante, é que apenas 12 empresas apresentaram valores superiores a R$20 mil, sendo que o mesmo número de empresas reportaram valores de receita líquida inferior a R$1.5 mil, totalizando menos de dez mil reais. A maioria das empresas (24) reportaram valores nesse intervalo, entre R$1,5 e R$20 mil, totalizando cerca de R$200 mil. Ainda, quando analisadas as Unidades Federativas com maior volume de RB, São Paulo se sobressai com 62,8% das arrecadações, seguido por GO e RJ, com aproximadamente 11% de arrecadação, respectivamente. Outros estados mencionados, mas com baixas quantidades de RB foram Minas Gerais, Paraná, Espírito Santo e Amazonas, nessa ordem de relevância de contribuição.
Seguindo uma tendência semelhante à dos últimos anos, a maior parte dos reportes para RB são referentes à acesso ao PG e CTA de origem identificável, que somados totalizam 94,8% do total arrecadado. Analisando essas informações e contrapondo com as informações internas de empresas assessoradas pela GSS, podemos interpretar que o valor atribuído à empresa com maior participação de arrecadação, se deve ao acesso ao conhecimento tradicional associado de origem identificável.
Outro ponto bastante interessante está no fato de que a arrecadação do FNRB referente ao desenvolvimento de material reprodutivo para atividades agrícolas é de apenas R$34.4 mil, relativos a apenas 2 notificações, dos R$1.6 mi referentes ao desenvolvimento de produtos acabados relacionados a 533 produtos. Ou seja, ainda são raros os produtos decorrentes das atividades agrícolas derivados do acesso ao patrimônio genético brasileiro.
Destinação do recurso – Instrumentos de repartição de benefícios do FNRB
Na 36° RO do CGEN, foram anunciados dois instrumentos de RB para o Fundo: o Prêmio em Reconhecimento das Organizações Guardiãs da Sociobiodiversidade e o Enraíza-Bio.
O MMA prevê que R$900 mil serão divididos para 20 organizações de base selecionadas dentre as inscritas para receber o Prêmio, além disso, a Fundação Banco do Brasil se comprometeu a aportar R$250 mil, premiando outras 5 organizações. Para a viabilização da primeira edição da premiação, serão destinados R$100 mil e o MMA contará com o apoio do BNDES, para funções de divulgação e marketing.
O outro instrumento de RB previsto é o Enraíza-Bio, cujo objetivo é identificar organizações incipientes ou em desenvolvimento que, com assessorias diversas, podem ser potencializadas. Para viabilizar o Enraíza, o MMA propõe a criação do cadastro de organizações guardiãs (cadastro de beneficiários), que permitirá a criação de uma base de dados de projetos e organizações passíveis de receberem benefícios do FNRB.
Apesar da previsão dos dois instrumentos, não foi especificado um cronograma de implementação dessas iniciativas, portanto, o Fundo ainda não iniciou a destinação dos recursos aos beneficiários.
Repartição de benefícios não monetária – Projetos
Não foi divulgado pelo MMA o valor de repartição de benefícios relacionado à modalidade não monetária. Porém, conforme dados da VBIO – Vitrine da Biodiversidade Brasileira, a instituição é responsável pela gestão de aproximadamente R$11.2 milhões em Projetos não monetários, divididos entre os 6 biomas/ecossistemas brasileiros, Amazônia, Caatinga, Pantanal, Cerrado, Mata Atlântica e Bioma Marinho, sendo que deste valor, R$3.9 milhões já foi destinado às comunidades tradicionais e cerca de R$ 7 milhões distribuídos em outros projetos ainda aguardam aprovação do DPG – Departamento do Patrimônio Genético e assinatura da Secretária de Bioeconomia do MMA.
Durante a reunião do comitê Gestor do Fundo, o Diretor do DPG anunciou uma força-tarefa e alocação de recursos humanos adicionais para que esses e outros ARBs – Acordos de Repartição de Benefícios Não-Monetários sejam analisados e assinados nos próximos meses.
Ao todo, são 19 projetos em execução pela VBIO, sendo que destes, 16 foram implementados com recursos provenientes de repartição de benefícios e 3 deles com recursos de instituições que apoiam voluntariamente iniciativas ESG dentro das suas políticas corporativas.
Os valores de repartição de benefícios geridos pela VBIO apoiam 28 projetos propostos pelas próprias comunidades e selecionados pelas empresas para o cumprimento das suas obrigações relacionadas à Lei 13.123/2015.
Os projetos são monitorados pelos ODS – Objetivos do desenvolvimento sustentável da ONU, conforme preconiza o Pacto Global, e apresentam números relevantes de impacto social e ambiental. São mais de 250 comunidades representadas em todo território brasileiro, totalizando 4.6 mil famílias beneficiadas, 12 mil hectares conservados, e pelo menos 40 espécies nativas protegidas.
Recentemente tive a oportunidade de visitar dois dos Projetos já aprovados pelo MMA para a finalidade de repartição de benefícios, um no Pantanal e outro no Cerrado Mato Grossense, com atividades voltadas para o extrativismo sustentável do Cumbaru – castanha de baru – que vem ganhando espaço no mercado de alimentos. Ambos me marcaram muito pela sua importância e força das mulheres que lideram ambos os projetos.
O Projeto “Aguapé” tem como objetivo assegurar o extrativismo sustentável e difundir o conhecimento tradicional associado ao uso da fibra do aguapé para a produção de artesanatos, como forma de trazer qualidade de vida para as mulheres pantaneiras.
A Comunidade Tradicional da Barra de São Lourenço está localizada a 216 km ao norte de Corumbá, no estado do Mato Grosso do Sul. A comunidade tem suas raízes provenientes de diferentes grupos étnicos locais, como os índios da etnia Guató e antigos escravos. A pesca turística, especialmente a coleta de iscas-vivas, tornou-se uma das principais fontes de renda na região. Muitos moradores se dedicam à pesca artesanal e prestam serviços para os barcos de turismo pesqueiro. Para complementar, eles também cultivam alimentos de subsistência, adaptando-se ao ciclo das cheias e secas do sub-Pantanal do Paraguai.
O aguapé (Eichhornia crassipes) é uma espécie de planta aquática, manejada há séculos pelas comunidades tradicionais e com ampla variedade de usos. No Pantanal-sul-matogrossense, é praticado o artesanato com a fibra do aguapé, que é coletado nas baías e canais. A sua utilização é um conhecimento tradicional indígena praticado pelo Povo Guató, que habita a região. Ao todo, 19 mulheres foram diretamente beneficiadas, aumentando em 80% o valor da renda das suas famílias. Parece um pequeno número, mas o impacto nas suas famílias e o reflexo deles é enorme. Costumo ser repetitiva, mas não canso de falar sobre a relação entre biodiversidade e diminuição da violência contra a mulher. Há uma relação intrínseca e direta. Que nos conecta e constrói essa rede de apoio enorme, que ultrapassa condições econômicas, municípios, estados, cultura e qualquer outro status social.
Para além desses benefícios, o Projeto contribui para o alcance direto de pelo menos 6 dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, como o ODS 3 de saúde e bem estar, o 5, voltado para a igualdade de gênero, o 8 sobre o trabalho decente e crescimento econômico, o 11 que visa o fortalecimento de comunidades sustentáveis, o 12 para consumo e produção sustentável e o 15 diretamente relacionado à vida terrestre e a importância da biodiversidade.
Antes de se dedicarem ao artesanato com a fibra do aguapé, muitas mulheres da comunidade trabalhavam na coleta de iscas vivas, comercializadas aos turistas da região. No entanto, esta é uma atividade considerada de risco, pois as mulheres precisam entrar na água para capturar os animais presos nos aguapés, dentre os quais encontram-se alguns animais peçonhentos. Além disso, a exposição frequente à água aumenta as chances de infecções ginecológicas entre as mulheres. Lideradas pela Dona Catarina, guardiã desse conhecimento ancestral e responsável por transmitir o conhecimento das técnicas de elaboração das peças artesanais às mulheres locais), enxergou na difusão do conhecimento tradicional associado ao uso da fibra de aguapé, uma alternativa mais segura para que as artesãs pantaneiras obtivessem sua renda. Com isso, foi criada a Associação das Mulheres Artesãs da Comunidade Tradicional de Barra do São Lourenço (Associação Renascer).
Para chegar até o local onde vivem, é necessário enfrentar o trajeto completo da Transpantaneira, mais de 4 horas de estrada de chão e mais 6 horas de barco pelo Rio Cuiabá até chegar na interseção com o Rio Paraguai, próximo ao Parque Nacional do Pantanal Mato-Grossense e o Parque Estadual Encontro das Águas. Uma paisagem única para avistar a Serra do Amolar, região onde vivem as mulheres da Associação Renascer.
Foram 5 dias para ver e vivenciar o resultado de 6 anos de espera. Mais do que isso, foram dias escutando repetidas vezes a importância e alegria de realizar sonhos. Sonhos de mulheres resilientes, batalhadoras, que carregam marcas de violência, luta e muita dor, mas que continuam fortes e acreditando que podem fazer diferente. São descendentes indígenas, ribeirinhas e quilombolas que representam tantos dos nossos povos tradicionais e que habitam esse rico bioma que é o Pantanal.
Algumas das famílias ainda vivem sem energia solar, crianças que têm aulas por períodos curtos ao longo do ano, que se afastam das suas famílias e ficam alojadas em uma escola quando há disponibilidade de professores. Tivemos a honra de sermos recebidos e hospedados pela própria comunidade, oportunidade de vivenciar o dia a dia deles, tal como seus hábitos e costumes. Realidade completamente diferente da nossa que vivemos nos grandes centros urbanos. O empoderamento feminino foi o foco principal dos projetos escolhidos pela empresa Avon Cosméticos como parte da sua repartição de benefícios.
A visita para conhecer de perto e a lembrança do que vivenciei refletem apenas um pouco do olhar e da força de mulheres que lutam com dor e alegria por dias melhores.
Um combustível para continuar o percurso.
*Francine Leal, CEO na GSS Carbono e Bioinovação | Fundadora da VBIO.
Francine é uma líder altamente qualificada nos temas de Sustentabilidade Corporativa, Biodiversidade e Mudanças Climáticas, acumulando mais de duas décadas de experiência dedicada a influenciar o cenário global. Sua formação acadêmica inclui uma graduação em Direito, complementada por uma Especialização em Direito Ambiental e um Doutorado em Portugal em Biologia.
Na qualidade de CEO da GSS, Francine não apenas lidera com excelência o time de Biodiversidade, mas também é a mentora visionária por trás da Plataforma VBIO.
Reconhecida no Brasil na construção do sistema regulatório para o uso sustentável da biodiversidade, ela desempenha um papel crucial no CGen – Conselho de Gestão do Patrimônio Genético e no Protocolo de Nagoia, além de contribuir ativamente em Conferências Internacionais sobre mudanças climáticas (COP).