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    Sigmund Freud analisa Gustav Mahler

    CRAIG BROWN

    20/07/2014 03h12

    Leiden, Holanda
    Agosto de 1910

    Gustav Mahler marcou tr�s encontros com Sigmund Freud, e nas tr�s vezes decidiu cancelar. Freud deixou claro que, se o compositor voltasse a desmarcar a consulta, n�o teria outra oportunidade.

    A mulher de Mahler, Alma, vem insistindo. O casamento dos dois, sempre cambaleante, agora est� mesmo em crise. Gustav tem cinquenta anos e � quase duas d�cadas mais velho que Alma. Quando se casaram, h� oito anos, poucos amigos acharam que fosse durar. "Ela � uma beldade c�lebre, acostumada a uma vida social glamourosa, e ele � desapegado das coisas mundanas e adora ficar sozinho", observou um amigo de Mahler, o maestro Bruno Walter.

    Alma � greg�ria e sedutora.1 Gustav � introvertido e asc�tico. Quando ficam noivos, Alma demonstra interesse em seguir a carreira de compositora, mas Gustav a pro�be. "Voc� deve se entregar incondicionalmente, moldar a sua vida futura, em todos os detalhes, inteiramente de acordo com as minhas necessidades [...]. O papel de compositor � o meu - o seu � o da companheira amorosa."

    Em julho de 1910, Mahler abre uma carta erroneamente endere�ada a ele, escrita na verdade para Alma.2 O remetente � o jovem amante da mulher de Mahler, Walter Gropius, afirmando que n�o consegue viver sem ela e instando-a a largar o marido. Mahler p�e Alma contra a parede e ela atribui a culpa ao pr�prio Gustav: "Passei anos ansiando por seu amor, e ele, absorto em sua fan�tica concentra��o por sua pr�pria vida, simplesmente me ignorava".

    Mahler promete que vai se emendar; Alma concorda em ficar. Se antes Gustav a tratava com indiferen�a, agora desenvolveu um ci�me passional, nas palavras de Alma, "de tudo e de todos [...]. Muitas vezes eu acordava no meio da noite e ele estava de p�, ao lado da cama, no escuro". Mas ela n�o se livra de Gropius e mais uma vez � for�ada a escolher. Decide ficar com Mahler, sob uma condi��o: que ele procure Freud.

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    Mahler desconfia da psican�lise h� muito tempo. Tr�s anos atr�s, quando um amigo mencionou o nome de Sigmund Freud, o maestro vociferou que a psican�lise n�o lhe interessava: "Freud tenta curar ou solucionar tudo a partir de um certo aspecto". O amigo observou que "ele aparentemente relutou, na presen�a da mulher, em usar os termos apropriados".

    No final de agosto, Mahler finalmente marca a consulta. Freud interrompe as f�rias no litoral e pega um trem at� Leiden.

    Os dois fazem uma longa caminhada pela cidade, conversando durante quatro horas.3 Para os passantes, deve parecer uma dupla bizarra: Freud tem mais de um metro e oitenta de altura, e Mahler pouco mais de um e sessenta; o compositor tem um modo de andar incomum: passos largos e irregulares, interrompidos por uma estranha batida do p�.4

    Depois de ouvir os problemas conjugais de Mahler, Freud diz que a diferen�a de idade do casal, que o maestro tanto teme, � precisamente o que o atrai em Alma. "Voc� amava tanto a sua m�e que a procura em todas as mulheres. Ela era carinhosa e enfermi�a, e, inconscientemente, voc� deseja que a sua mulher seja igual."

    Quando Gustav relata a Alma essas conclus�es, ela julga que Freud acertou na mosca. "Ele est� certo em ambos os casos. A m�e de Mahler se chamava Marie. O primeiro impulso dele foi mudar o meu nome para Marie, apesar da sua dificuldade em pronunciar o r. E, quando ele me conheceu melhor, quis que o meu rosto fosse mais 'pesaroso' - palavra dele pr�prio. Quando ele disse � minha m�e que era uma pena ter havido t�o pouca tristeza na minha vida, ela respondeu: 'N�o se preocupe - isso ainda vir�'." Alma tamb�m concorda com o diagn�stico que Freud faz da fixa��o dela pr�pria pelo pai. "Sempre procurei um homem pequeno, fraco, que tivesse sabedoria e superioridade espiritual, pois era isso o que eu amava no meu pai."

    Freud tamb�m fica impressionado com Mahler; jamais conheceu algu�m que compreenda t�o r�pido a psican�lise.

    "Mahler disse que agora entendia por que raz�o sua m�sica sempre tinha sido impedida de alcan�ar o ponto mais alto nas passagens mais nobres, inspiradas por emo��es profundas, sempre arruinadas pela intromiss�o de alguma melodia trivial. Seu pai, aparentemente uma pessoa brutal, tratava muito mal a mulher, e quando crian�a Gustav testemunhou uma cena especialmente dolorosa entre o casal. Foi algo insuport�vel para ele, que saiu correndo de casa. Naquele momento, por�m, encontrou na rua um realejo tocando a popular cantiga vienense 'Ach, du Lieber Augustin'. Na opini�o de Mahler, a conjun��o de alta trag�dia e divers�o ligeira ficou desde ent�o transfixada em sua mente, e um estado de esp�rito traz inevitavelmente o outro."5

    � claro que � isso o que as pessoas admiram em sua m�sica, � o que a torna inovadora e moderna. Mas, para os artistas, pode ser dif�cil diferenciar as suas pr�prias for�as e fraquezas, j� que ambas coexistem muito proximamente.

    Depois da sess�o peripat�tica com Freud, Mahler entra num estado de j�bilo. "Sentindo-me animado. Discuss�o interessante", ele telegrafa a Alma, e, mais tarde, "Vivendo como se tudo fosse novo". No trem, de volta para casa, escreve versos sobre o encontro:

    As sombras da noite se dissiparam gra�as a uma palavra potente.
    Acabou o incessante latejar dos tormentos.
    Agora unidos, mesclados num s� acorde, finalmente,
    Meus t�midos pensamentos e tempestuosos sentimentos.

    Ap�s retornar, Mahler olhou novamente as composi��es de Alma e come�ou a toc�-las no piano. "O que eu fiz? Essas can��es s�o boas, s�o excelentes [...]. N�o vou descansar at� que voc� comece a trabalhar de novo. Deus, como fui tacanho naqueles dias!"

    Mahler dedica � mulher sua "Oitava Sinfonia", que ele rege em 12 de setembro de 1910; e tamb�m publica cinco "lieder" de Alma, que estreiam em Viena e Nova York.

    Nove meses depois, em 18 de maio de 1911, Mahler morre de endocardite bacteriana.6 Meses depois, Freud se d� conta de que jamais enviou a nota da consulta, e ent�o providencia uma, datada de "Viena, 24 de outubro de 1911", anexa dois selos e despacha para a vi�va de Mahler, "por servi�os prestados".

    NOTAS:

    1. Ela teve relacionamentos amorosos com Gustav Klimt, Max Burckhard, Alexander Zemlinsky e Oskar Kokoschka, entre outros. Casou-se com Gustav Mahler em 1902, com Walter Gropius em 1915 e com Franz Werfel em 1929.

    2. "Na ocasi�o Gustav acreditou - e passou o resto da vida convencido disso - que o arquiteto tinha endere�ado propositalmente a carta para ele, como uma maneira de lhe pedir a minha m�o em casamento", escreveria Alma anos mais tarde.

    3. Os psicanalistas contempor�neos parecem acreditar que uma consulta t�o breve n�o pode ser classificada propriamente como psican�lise. Ainda assim, em muitos sentidos parece ter sido mais produtiva e mais construtiva do que muitos tratamentos que duram a vida inteira.

    4. Na festa de casamento de Mahler, sua sobrinha Eleanor foi flagrada imitando o modo de andar do compositor, e por causa disso foi mandada para casa, em desgra�a.

    5. "O uso do trivial lugar-comum [...] como meio de express�o prenuncia a principal tend�ncia da arte do s�culo xx", escreveu Donald Mitchell em seu ensaio "Mahler e Freud" (1958). O pr�prio Freud n�o era capaz de julgar m�sica: era surdo para notas musicais e melodias.

    6. Alma viveria por mais 53 anos. Morreu em 1964.

    *

    Este texto � um cap�tulo do livro "Um por Um", de Craig Brown, lan�ado pela editora Tr�s Estrelas. [trad. Renato Marques; R$ 59,90 (536 p�gs.)]

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