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    Xadrez com John Cage

    JOCY DE OLIVEIRA

    15/06/2014 03h08

    Rio de Janeiro, 1985

    Em 1985, John Cage (1912-92) esteve pela �ltima vez no Brasil, convidado pela Bienal de S�o Paulo e por mim, para assistir no Rio de Janeiro � estreia mundial de sua pe�a para piano "ASLSP" –que tive a honra de executar.

    Antes de viajar para o Rio, Cage havia estado em S�o Paulo. Ele nos contaria depois o fiasco da empreitada para conseguir um hotel com fog�o e comida macrobi�tica –al�m de suas primeiras impress�es no destino.

    "Ao chegar a S�o Paulo, levaram-me a um concerto sem p� nem cabe�a de um homem barbudo, com longos cabelos brancos, tocando uma m�sica que do�a nos ouvidos de t�o forte, e ap�s esse desastre ainda me arrastaram para comer uma comida preta chamada feijoada!" -mais tarde descobri que o barbudo era o compositor e m�sico popular Hermeto Pascoal.

    Chegando ao Rio de Janeiro, ele passou v�rios dias em nosso s�tio em Guaratiba e, sendo macrobi�tico, costumava ensinar � cozinheira suas receitas especiais –ainda exigindo que us�ssemos somente panelas de ferro.

    N�s est�vamos habituados a uma dieta integral e org�nica e, al�m disso, n�o abdic�vamos de um peixe fresco, pescado pela manh�, comprado diretamente do pescador, o que � delicioso. Cage passou a incrementar sua comida macrobi�tica com o peixe.

    Em nossa casa, o colch�o em que ele dormia –assentado nas antigas camas estilo dona Maria– era de crina de cavalo. Assim, semanas depois, ao voltar para Nova York, ele me ligou e disse sem pre�mbulos: "Comprei o colch�o".

    Ele havia feito uma verdadeira pesquisa por toda a cidade para conseguir outro colch�o de crina, que aparentemente era excelente para sua artrite, assim como para a do core�grafo Merce Cunningham (1919-2009), seu companheiro.

    Para a vinda de Cage, organizei na Sala Cec�lia Meireles, na capital fluminense, um grande concerto de suas obras, com a participa��o de outros m�sicos brasileiros tocando em dez pianos espalhados pelo teatro -al�m do principal motivo de sua vinda, a estreia de "ASLSP" ("As Slow as Possible"), para piano solo, a meu cargo.

    Eu continuava a estudar a pe�a em casa, enquanto ele ia fazer caminhadas e catar conchinhas em frente ao s�tio, na praia da Restinga da Marambaia.

    Al�m disso, passava os dias jogando xadrez com meu companheiro, Fredrik, que um dia perguntou a Cage quem tinha sido seu professor no jogo. Ele respondeu: "Bobby". Quem? –perguntou de volta Fredrik. "Ora, Bob Fischer" –campe�o mundial de xadrez. Parece que Cage jogava como vivia e compunha –sempre deixando margem ao acaso.

    Acervo pessoal
    Jocy de Oliveira (esq.) e Luciana Villas-Boas observam partida entre John Cage (ao centro) e Fredrik Kirsebom
    Jocy de Oliveira (esq.) e Luciana Villas-Boas observam partida entre John Cage (ao centro) e Fredrik Kirsebom

    O concerto me deu enorme trabalho, mas ele continuava a jogar xadrez sem se abalar com nada.

    "As Slow as Possible" � uma pe�a para piano que pode durar alguns minutos ou anos, como diz o t�tulo –"o mais lento poss�vel"... O t�tulo tamb�m se refere a "Soft morning, city! Lsp!" (mansa manh�, urbe minha! Lbs!, na tradu��o brasileira de Donaldo Sch�ler), a primeira exclama��o no �ltimo par�grafo do livro "Finnegans Wake", de James Joyce.

    Quando Cage deixou o Rio, j� no aeroporto, ao despedir-se de mim, disse: "Eu nunca tinha ouvido essa pe�a... Acho que muitas de minhas pe�as v�o morrer comigo, mas creio que essa � uma das que sobreviver�o". Ser� que ele se desviava do ef�mero e come�ava a refletir sobre o perene? Isso me leva a pensar em resgatar nossas hist�rias para que se entrelacem e te�am nossa mem�ria.

    JOCY DE OLIVEIRA, 78, � compositora e pianista. Lan�a o livro "Di�logo com Cartas" (Sesi-SP), sua correspond�ncia in�dita com grandes m�sicos do s�culo 20, em 29/7, no Oi Futuro Flamengo, no Rio.

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