• Ilustr�ssima

    Saturday, 03-Aug-2024 04:44:25 -03

    Jogos e joias na obra de Chico Buarque

    CARLOS RENN�

    01/06/2014 03h14

    RESUMO Ao longo de sua carreira como compositor-letrista, Chico Buarque fez uso constante do recurso po�tico da alitera��o, tanto em seus sambas de conte�do social quanto nas can��es sensuais. Mas seus jogos de palavras v�o al�m, e se assemelham ora a dribles do futebol-arte, ora a can��es de trovadores da Idade M�dia.

    *

    Chico Buarque sempre foi um grande cultor das alitera��es. Desde o in�cio do seu longo percurso de compositor-letrista fora de s�rie, ele se notabilizou pela mestria no emprego delas, como comprova um de seus primeiros sambas de conte�do social e grande express�o, "Pedro Pedreiro" (1965).

    A luxuriosa "N�o Existe Pecado ao Sul do Equador", parceria com Ruy Guerra de um pouco mais tarde (1972), cl�ssico que integra outra vertente importante da obra de Chico, a das can��es sensuais, ricas em sugest�es sexuais, tamb�m � balizada por palavras aliterantes.

    Embora com o tempo as alitera��es tenham se tornado menos frequentes em sua obra, nem por isso Chico deixou de pratic�-las com assiduidade. Na verdade, economizou esteticamente o seu uso.

    Assim, por exemplo, "Iracema Voou" (1998) apresenta, sobre a suavidade das frases mel�dicas, duas passagens assinaladas respectivamente por delicados eles (levemente entremeados de p�s) e "ch"s. Ambos muito apropriados para colaborar para a transmiss�o do sentimento de ternura, investida de alguma ironia, para com a personagem do t�tulo: "Leva roupa de l�/ E anda l�pida/ [...] Lava ch�o numa casa de ch�".

    V�deo

    Desde que o linguista e cr�tico Roman Jakobson, ao lado de outros nomes do formalismo russo, se dedicou sistematicamente ao estudo dos efeitos sonoros na poesia, as alitera��es e outros jogos de palavras e sons se constituem como recursos definidores da especificidade da linguagem po�tica.

    Se isso vale para toda poesia, � ainda mais v�lido quando se trata da melopeia, a modalidade em que a sele��o vocabular se orienta pela propriedade musical dos termos, em que eventos sonoros como paronom�sias, rimas inclusas, desempenham papel fundamental.

    Normalmente, no entanto, tem-se uma concep��o bastante limitada da qualidade est�tica das alitera��es. Para a maioria, elas s�o indistintamente vistas t�o s� como uma prolifera��o ornamental de fonemas com sons id�nticos ou parecidos. Na obra de Chico, por�m, h� uma abund�ncia de demonstra��es do emprego art�stico superior desse procedimento.

    As alitera��es podem vir com anagramas, como em "A Rita" (1965): "[Levou seu retrato,] seu trapo, seu prato". Ou na citada "Iracema Voou" (de um per�odo em que as alitera��es, como as rimas, j� se rarefaziam e se refinavam): "N�o domina o idioma ingl�s" (imperfeito, sim, mas bom).

    V�deo

    Ou ent�o se constituir de palavras de um mesmo campo sem�ntico, estabelecendo o que poderia ser visto como alitera��es de som e de sentido. Veja-se este verso, de "Mambembe" (1972): "Mendigo, malandro, moleque, mulambo, bem ou mal". Ou estes, de "Ana de Amsterdam" (1972/3): "Sou Ana do dique e das docas"; "Da cama, da cana, [...] bacana (sacana)". De "Jorge Maravilha" (1974), "[Ela gosta do tango, do dengo,] do mengo domingo...". Ou, de "Feijoada Completa" (1977), este: "Uca, a��car, cumbuca de gelo, lim�o". Perfeitos, n�o?

    Mas o grau de complexidade e originalidade na aplica��o desse recurso n�o fica por a�, havendo ocasi�es em que os sons dos trechos aliterantes chegam a remeter ao significado deles, promovendo um isomorfismo de especial valor.

    V�deo

    "O povar�u son�mbulo/ Ambulando/ Que nem muamba/ Nas ondas do mar": nessa passagem de "Carioca" (de 1998) podemos "ver" (tendo como refer�ncia as latas de maconha que tinham sido descobertas boiando nas �guas do Rio, os versos, al�m do mais, s�o de uma for�a imag�tica a toda prova) as pessoas, de manh�zinha, a perambular ante nossos olhos ainda n�o plenamente despertos.

    E o que dizer das linhas de "Morena de Angola" (1980)? Quase toda ela chiante, a letra, literalmente, efetivamente, chocalha do come�o ao fim, tal e qual a musa sensual e militante que ela canta e "que leva o chocalho amarrado na canela", deixando o poeta indeciso se "ela mexe o chocalho ou o chocalho � que mexe com ela".

    V�deo

    Chico trata a palavra cantada como o craque de futebol trata a bola; com o mesmo carinho, a mesma classe. E nesse tratamento explora as imensas possibilidades sonoro-criativas da nossa l�ngua, o portugu�s brasileiro.

    RIMA

    Um art�fice da palavra do quilate de Chico Buarque n�o apresentaria uma concep��o comum de rima. Nesse sentido, alguns exemplos s�o bastante ilustrativos, constituindo pequenas joias a descobrir em sua obra.

    Livro
    O Voo das Palavras Cantadas
    Carlos Renn�
    O Voo das Palavras Cantadas
    Comprar

    Observe-se o que sucede na j� referida "Iracema Voou", can��o que refletiu a onda da mudan�a de brasileiros, na segunda metade da d�cada de 90, para o exterior, mais precisamente para os Estados Unidos. Muito a prop�sito, Chico escolheu para a sua imigrante o nome, anagrama de Am�rica, da personagem do romance rom�ntico de Jos� de Alencar.

    A letra, toda ela composta com rimas imediatamente identific�veis, finaliza, contudo, com uma que, a princ�pio, se hesitaria em classificar como tal: "Me liga a cobrar/ - � Iracema da Am�rica". Por�m, no plano da can��o, da palavra cuja raz�o de ser � ser cantada e ouvida, os voc�bulos rimam porque o final da frase musical sobre o qual se justap�e o termo "Am�rica" imp�e uma acentua��o n�o s� sobre a antepen�ltima s�laba do top�nimo, "m�", mas tamb�m sobre a �ltima, "ca". Na pr�tica, o que se canta � "Am�ric�".

    Tal tipo de rima, entre ox�tona e parox�tona, n�o � usual em can��es em portugu�s, mas em ingl�s � -tanto em letras de m�sica quanto em poemas. N�o � interessante que, numa can��o popular tematizando a vida que uma cearense est� levando na maior na��o do mundo em que se fala o ingl�s, a �ltima rima, e justamente a �ltima, seja de uma esp�cie incomum no nosso idioma e comum em can��es e poemas daquele?

    Vejamos agora uma outra can��o do repert�rio de Chico, relacionada com outro territ�rio e a outra l�ngua: Cuba; o espanhol.

    Loa ao pa�s da revolu��o conduzida por Fidel Castro pelo ideal de justi�a social que inspirava, "Maravilha" (1977), baseada em rimas completas, consoantes, apresenta excepcionalmente no final uma rima toante, incompleta: "primavera/ terra". Ou seja, fecha com uma rima t�pica da poesia em l�ngua espanhola, encontr�vel em centenas de can��es cubanas, em que a toante � rima convencional, muito antes que no nosso portugu�s; antes de Jo�o Cabral, das letras do tropicalismo (Capinan, Caetano) e do rock dos anos 80.

    (Um detalhe a mais: em espanhol, as palavras "primavera" e "tierra" formam uma rima consoante, como as demais da letra.)

    TROVADOR

    Esquemas r�micos como os adotados por Chico em "Paratodos" (1993) e "A Rosa" (1979) fazem pensar em poemas trovadorescos, da Idade M�dia (os quais, ali�s, eram todos cantados, raz�o pela qual recebiam o nome de can��es). Nenhum exemplo, no entanto, se compara, em sofistica��o, ao sistema empregado em "O Futebol" (1989). A singularidade dessa can��o, at� onde sei n�o tem, pela radicalidade da aplica��o, paralelo no campo das letras de m�sica popular, s� encontrando refer�ncia, de novo, na erudi��o dos trovadores medievais.

    V�deo

    Sem contar o quarteto final, que faz as vezes de coda, a can��o se divide em tr�s estrofes de 14 versos, nas quais os 8 primeiros t�m rimas cruzadas (ABABCDCD) e os 6 seguintes parecem n�o rimar.

    De fato, metade destes n�o rimam dentro da estrofe, mas sim entre uma e outra, na mesma posi��o (o som do final do nono verso de uma estrofe ecoando no final do novo verso das estrofes seguintes, e por a� vai). Tais rimas, chamadas separadas ou isoladas, para as quais se exige uma per�cia maior, foram postas em pr�tica pioneiramente por Arnaut Daniel, poeta proven�al que Dante Alighieri considerou o melhor dos trovadores.

    � �bvio que a percep��o dessas rimas, pela dist�ncia em que se acham seus termos um do outro, n�o se faz normalmente de uma primeira ouvida, nem sequer de uma primeira lida, no papel. Mesmo assim n�o � f�cil fazer a descoberta de um detalhe a mais que o artista parece ter deixado, caprichosamente, para o final.

    Do 9� ao 14� verso, tr�s finais de versos rimam com outros interestroficamente; as exce��es ficam por conta do 10� (sempre conclu�do com um "nega" na fun��o de vocativo), do 12� (que termina sempre com um "gol") e do 14�. Entre este e o 10�, no entanto, estabelece-se uma rima, de mais dif�cil detec��o -mais exatamente entre a �ltima palavra do verso 14 e, quase ocultamente, a pen�ltima do verso 10 (que vem sempre seguida do termo "nega").

    Na primeira estrofe esse par � formado por "pinacoteca, [nega]" e "seca". Na segunda, entre "minha [nega]" e "linha". Na terceira, contudo, nos defrontamos, nos mesmos pontos, com as palavras "capenga, [nega]" e "ginga", o que, de cara, pode causar um estranhamento. Afinal, numa letra inteiramente feita de rimas perfeitas, uma imperfeita no final soaria como uma pe�a com defeito numa m�quina po�tica que at� ent�o se mostrou sem falha.

    Mas a� � que est�: dando-se entre "ginga" e "capenga", a pr�pria rima afirma-se e se assume, na sua concretude e materialidade mesma, capenga, manca, defeituosa. O que a justifica plenamente, em termos est�ticos. Um nome para isso -usado, ali�s, na cobertura futebol�stica- � preciosismo.

    S� que esta constitui apenas uma entre v�rias outras firulas po�ticas que, "para tirar efeito igual/ ao jogador,/ qual/ compositor" ("Qual", verso monossil�bico rimado: mais um drible!), Chico faz nessa letra. E todas elas justificadas, por se tratar afinal de uma can��o sobre o futebol brasileiro, mitologicamente considerado o futebol-arte, o "futebol-poesia", como Pasolini o classificou.

    Outra mais? Palavra-chave no texto -assim como no pr�prio esporte (como a can��o vem nos revelar), em que a bola � sempre passada de um jogador para o outro-, "para" aparece, seja como preposi��o, seja como antepositivo de verbo ou substantivo (parafusar, paralela, par�bola, paralisando), 13 vezes nas 3 estrofes, mais 8 vezes na coda ("Para Man� para Didi para Man�...") e uma na dedicat�ria ("Para Man�, Didi, Pag�o, Pel� e Canhoteiro", o ataque dos sonhos de Chico): ou seja, 22 vezes na soma, o mesmo n�mero total de jogadores de uma partida...

    O n�vel do desempenho t�cnico, bem como o grau de criatividade e fantasia po�ticas exibidas em "O Futebol", estende-se ainda � sele��o e organiza��o das pe�as vocabulares que se juntam na letra.

    Trata-se de um apanhado de termos e express�es provenientes da sem�ntica do jogo, da cr�nica esportiva inclusive: estufar o fil�, Rei (Pel�), efeito, firula, pintura, folha seca, jo�o (como Garrincha chamava seus marcadores), lateral, finta, contrap�, avan�ar, corredor, homem-gol, rasgando, costurando, linha, chap�u, gerais (que n�o existem mais nos est�dios, agora "arenas" em cujas arquibancadas mal se veem pretos e n�o se veem pobres), catimba, ginga...

    Nota
    Este texto � uma vers�o adaptada para a "Ilustr�ssima" de ensaio in�dito sobre Chico Buarque. O texto original estar� em "O Voo das Palavras Cantadas" (Dash, R$ 42, 320 p�gs.), colet�nea em que Carlos Renn� re�ne artigos sobre can��o. O livro ser� lan�ado em S�o Paulo no dia 11, �s 19h, na Livraria Cultura do shopping Iguatemi.

    CARLOS RENN�, 58, letrista e jornalista, � autor de vers�es brasileiras de can��es de Cole Porter, como "Fa�amos (Vamos Amar)", gravada por Chico Buarque e Elza Soares, e do livro "Cole Porter - Can��es, Vers�es" (Pauliceia).

    Fale com a Reda��o - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024