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    Segundo sexo no Brasil

    HELENA SOLBERG

    06/04/2014 03h01

    Rio de Janeiro, 1960

    Eu estudava na PUC e achava o mundo algo altamente excitante. Considerava-me uma existencialista, ou achava que era. Lia avidamente Camus, Sartre e Simone de Beauvoir. Assistia aos filmes da nouvelle vague e do neorrealismo italiano, sonhava fazer cinema e estava sempre atenta aos filmes dos diretores brasileiros que despontavam e que formariam o cinema novo. �ramos jovens e t�nhamos a intui��o de que o futuro nos traria um papel de import�ncia, para o qual dev�amos nos preparar. Mal sab�amos o que viria.

    Em 1958, com 19 anos, fui trabalhar em um jornal estudantil, "O Metropolitano", na �poca um suplemento do "Di�rio de Not�cias". Foi o meu primeiro emprego. Como rep�rter, eu tinha que correr atr�s dos assuntos do momento. Por ser mais ou menos versada em franc�s e ingl�s, cabia a mim entrevistar visitantes estrangeiros que aqui chegavam; e foi assim que conheci Simone de Beauvoir, al�m de figuras como Graham Greene e Aldous Huxley.

    A entrevista com Simone de Beauvoir foi marcada para depois de sua palestra na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio. Lembro-me de ficar surpresa com sua apar�ncia bastante conservadora comparada com a da musa do existencialismo, a ex�tica e sensual Juliette Gr�co. Na �poca Simone teria por volta de 60 anos. Usava os cabelos presos em um coque severo. Tinha pele muito clara e um rosto lavado, meio bret�o. Eu fui toda vestida de negro, em pleno ver�o carioca, usando um penteado � Juliette. Quando revejo minha foto com ela, na entrevista, imagino que um leitor desavisado poderia se perguntar quem era quem.

    Arquivo Pessoal
    Recorte do jornal "O Metropolitano", com foto de Solberg (esq.) e Beauvoir
    Recorte do jornal "O Metropolitano", com foto de Solberg (esq.) e Beauvoir

    O sal�o nobre estava lotado de estudantes curiosos que, por duas horas, ouviram respeitosamente a exposi��o sobre seu controvertido livro "O Segundo Sexo" (lan�ado anos antes na Fran�a e ent�o saindo no Brasil). Na �poca, l�-lo at� o fim me exigiu grande esfor�o e disciplina; s� vim a realmente apreci�-lo anos depois.

    O ponto mais controvertido de sua tese poderia ser resumido na frase que abre o segundo volume: "N�o se nasce mulher, torna-se mulher". Simone colocava assim a �nfase no processo de socializa��o do indiv�duo, mais do que no destino biol�gico. A mulher n�o poderia estar condenada a somente repetir a vida com o seu corpo, "o projeto do homem n�o � o de se repetir no tempo, mas sim de reinar sobre o momento e de forjar o futuro". Questionada se seria poss�vel comparar os preconceitos que condicionam a situa��o da mulher com os preconceitos raciais, respondeu que "ambos t�m em comum terem sido criados por uma ideologia 'a posteriori' para justificar essa situa��o".

    Depois fomos tomar um caf� juntas. Nervosa -e no af� juvenil de querer parecer informada-, n�o parava de expor meus conhecimentos sobre o existencialismo. Simone ouvia em sil�ncio. Finalmente, com um sorriso discreto, disse: "Fale-me um pouco de voc�". E de entrevistadora passei a ser entrevistada (uma t�cnica que aprendi ent�o e que me tem sido extremamente �til ao longo dos anos). O foco era minha forma��o burguesa, que a interessava para entender o pa�s que visitava.

    Intimidada, respondia da melhor maneira poss�vel, sentindo-me examinada por seu olhar agudo, que lia nas entrelinhas, nas hesita��es, nos sil�ncios. Durante muito tempo, temi que um dia publicassem suas impress�es do Brasil e que eu fosse denunciada como uma prova viva de que o segundo sexo no pa�s ainda tinha uma longa caminhada pela frente.

    Anos depois, em um di�rio, falando sobre a viagem, ela escreveu: "Durante dois meses, amei o Brasil. Amo-o ainda. Naquele momento, por�m, quase cheguei ao ponto de gritar contra a seca, a fome, contra toda aquela ang�stia, aquela mis�ria".

    Fiquei pensando em uma jovem e uma senhora conversando em um fim de tarde. A jovem n�o imaginava o que estava por vir. Para ela o futuro parecia promissor. A senhora viu mais longe e, em seu di�rio, antecipou uma tempestade que se aproximava. E pensar que 1964 mudaria nossas vidas!

    HELENA SOLBERG, 75, � cineasta e ter� retrospectiva no � Tudo Verdade, at� 14/4. O festival lan�a o livro "Helena Solberg - Do Cinema Novo ao Document�rio Contempor�neo".

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