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    Paralelismos e desencontros em "Anna Kari�nina"

    RUBENS FIGUEIREDO
    ilustra��o CLAUDIUS

    20/10/2013 03h27

    RESUMO A presen�a dos trens no romance de Tolst�i (1828-1910) aponta para uma trama subjacente � obra, a das pretens�es modernizadoras da R�ssia. Mas a imagem ferrovi�ria reflete tamb�m o princ�pio ordenador da trama, em que pares de personagens e situa��es se desdobram sem se encontrarem, como as paralelas dos trilhos.

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    O leitor dificilmente deixar� de notar o peso da presen�a dos trens em "Anna Kari�nina".

    � numa esta��o ferrovi�ria, por exemplo, que Anna conhece Vr�nski, seu futuro amante. Na ocasi�o, para horror da protagonista, um homem morre esmagado por um trem -ela pr�pria, como se sabe, se suicidar� jogando-se sob as rodas de um vag�o. As �ltimas cenas do romance tamb�m se passam numa esta��o, quando Vr�nski parte para a guerra como volunt�rio. Seu intuito � antes morrer do que alcan�ar um triunfo militar. E o trem � o ve�culo para obter o que deseja.

    Na mesma passagem, primeiro na esta��o e depois dentro de um vag�o, os personagens p�em � prova suas vis�es a respeito da guerra. S�o in�meras, no romance, escrito entre 1873 e 1877, as situa��es em que o trem � fator da a��o -elemento presente ou objeto de alus�es em conversas, pensamentos ou sonhos.

    As ferrovias eram novidade na R�ssia. Exprimiam um dos esfor�os mais salientes para modernizar uma sociedade que se via como atrasada, tolhida por tra�os pr�-capitalistas. As vias f�rreas eram encaradas n�o s� como um instrumento com fins pr�ticos �bvios num pa�s de territ�rio vast�ssimo mas tamb�m como um s�mbolo do empenho para equiparar a R�ssia aos pa�ses ricos.

    Por isso � importante ressaltar que Li�vin -um dos personagens mais importantes do livro- manifesta cr�ticas �s estradas de ferro.

    Sua atitude � ridicularizada por amigos, que mal lhe permitem expor suas obje��es e nem mesmo querem ouvi-lo. Nesse aspecto, veem em Li�vin um exc�ntrico ou um provinciano retr�grado. E Tolst�i se vale do personagem para apresentar muitas de suas d�vidas e questionamentos em rela��o ao que a R�ssia pretendia fazer de si mesma e ao projeto de integrar o pa�s ao capitalismo.

    MAU AGOURO

    � inevit�vel lembrar que o pr�prio Tolst�i viria a morrer justamente numa esta��o de trem. Mas nem � preciso chegar a tanto. Sem sair das p�ginas do romance, constatamos que a ferrovia est� associada ao destino infeliz ou tr�gico de personagens importantes do livro.

    Contra esse fundo, o conforto dos vag�es de luxo e a comodidade dos deslocamentos r�pidos, a despeito da sua imagem orgulhosa de progresso, cont�m uma nota de mau agouro.

    Se o trem concentra um dos principais temas subjacentes ao romance -a pol�mica em torno do projeto modernizador da R�ssia-, de outro lado oferece a figura visual constante de dois trilhos paralelos. Isso vem ao caso, pois as linhas paralelas representam um dos princ�pios mais importantes na estrutura��o do livro, a constante formal que baliza a a��o e ajuda o livro a manter coesas as numerosas e variadas linhas do enredo.

    O t�tulo nos rascunhos era "Dois Casais", ou "Dois Casamentos". Essa dupla de pares justapostos refor�a a imagem das linhas paralelas e traz � mente a imagem dos trilhos. Assim, o casamento integra-se ao tema de fundo do livro e confere uma forma concreta ao mais importante princ�pio estruturador do romance: o paralelismo.

    Claudius/Arte Folha
    Ilustra��o de Tolst�i
    Ilustra��o de Tolst�i

    Do que se diz aqui, algu�m que n�o leu "Anna Kari�nina" poderia pensar que se trata de um romance esquem�tico, escrito com r�gua e esquadro. N�o � nada disso, nem de longe. N�o que o forte da prosa de Tolst�i seja a sutileza ou a discri��o. N�o �. Seu �mpeto procura o concreto. Um dos principais m�ritos do livro, sua abrang�ncia, deve muito ao fato engenhoso de n�o se prender a um centro.

    A distribui��o da a��o em linhas paralelas, em geral formadas por casais, escapa do perigo de adquirir uma fei��o mec�nica porque tais linhas t�m rumos em grande parte independentes. N�o seguem uma dire��o �nica, est�vel; seu destino � tortuoso, incerto.

    O cr�tico russo Viktor Chkl�vski (1893-1984) estudou os procedimentos estil�sticos de Tolst�i e sublinhou o paralelismo. Chkl�vski cunhou o conceito de constru��o escalonada, procedimento que se apresenta quando a narrativa desdobra um objeto mediante reflexos e justaposi��es. Essa � a base do paralelismo em "Anna Kari�nina".

    Sen�o vejamos: a constante presen�a da ferrovia cont�m um reflexo das linhas paralelas em que se distribuem os casais e os personagens. De maneira mais espec�fica: o acidente ocorrido na chegada de Anna a S�o Petersburgo no in�cio do livro cont�m um reflexo da sua pr�pria morte sob as rodas de um trem, no final. E ainda: a frustrada tentativa de suic�dio de Vr�nski, o amante de Anna, surgir� como um reflexo antecipado do suic�dio de Anna.

    E mais ainda: o livro abre com a crise conjugal por que passa o irm�o de Anna. Ela chega � capital para preservar o casamento amea�ado. E consegue. Mas essa crise, vista em retrospecto, surge como um reflexo da crise conjugal da pr�pria Anna, que se desenvolver� nas partes seguintes.

    As duas crises conjugais refletem-se. A segunda, a de Anna, se apresenta mais grave do que a primeira, a do irm�o: ela se consuma na separa��o do casal oficial, ao contr�rio da primeira crise, resolvida com uma concilia��o formal. A mesma grada��o do mais fraco para o mais forte se verifica nas duas tentativas de suic�dio: a primeira -a de Vr�nski- se mostra mais fraca, contorn�vel; a segunda -de Anna- tem desfecho fatal.

    Olhando bem, at� nesse quadro de dois pares e de duas a��es que se refletem vemos formar-se outro paralelo: o da grada��o a que ambos os pares obedecem. O primeiro tem efeito mais fraco; o segundo � conclusivo. O primeiro poderia ser visto como um agouro, um mau sinal. Talvez uma variedade m�gica do paralelismo.

    Mas voltemos �s duas crises conjugais. Elas se refletem, embora tomem rumos distintos. A despeito do motivo comum (o adult�rio), s�o independentes, exceto na sua disposi��o no espa�o do romance, pois a� as duas crises conjugais est�o presas uma � outra. Ou seja, s� a constru��o do livro cria uma associa��o entre tais fatos. Os acontecimentos em si mesmos n�o sup�em tal associa��o.

    Outro efeito desses reflexos de a��es cronologicamente distantes � o enfraquecimento da no��o do tempo linear. Pois, se um objeto ou um fato se reflete em outro, do passado ou do futuro, ambos est�o presentes simultaneamente no pensamento: o tempo perde sua for�a de sequ�ncia, de concatena��o, e adquire outra forma -a da dura��o.

    DESDOBRAMENTO

    A t�cnica do desdobramento do material romanesco permite que Tolst�i expanda o romance at� alcan�ar as dimens�es incomuns que apresenta, sem perder a coes�o.

    N�o se trata apenas de desdobrar a crise conjugal do irm�o de Anna na crise conjugal da pr�pria Anna, como j� vimos.

    Tamb�m n�o se trata apenas de desdobrar o eixo principal da narra��o em dois casamentos: o de Li�vin e Kitty e o de Anna e Vr�nski. O pr�prio casamento de Anna se desdobra em dois: o de Anna com Kari�nin e de Anna com Vr�nski. E mais ainda: Tolst�i d� um passo al�m e conduz o processo de desdobramento at� o �mago da personalidade de Anna.

    Refiro-me � passagem em que Anna come�a a ser vencida pela indecis�o e pela ambival�ncia da sua situa��o, na qual tinha um marido e tamb�m tinha um amante, sem nada esconder de ambos e sem poder desfazer-se nem de um nem de outro. Diz o texto de Tolst�i:

    "Anna n�o s� estava pesarosa, como tamb�m come�ava a sentir um pavor diante de um novo estado de esp�rito, que nunca experimentara. Sentia que em sua alma tudo come�ava a duplicar-se, como �s vezes se duplicam os objetos para os olhos cansados. �s vezes, n�o sabia o que temia e o que desejava. N�o sabia se temia ou se desejava o que existira antes ou o que iria existir, nem sabia exatamente o que desejava."

    Logo adiante, o texto diz: Anna "sentiu que sua alma come�ava a duplicar-se". Quer escrever uma carta para o marido e outra carta para Vr�nski. Planeja abandonar o marido, mas quer levar o filho. Tolhida pelas alternativas, Anna se divide entre elas.

    E esse processo de divis�es e subdivis�es sucessivas cont�m um reflexo do processo de duplica��o, de desdobramento, que ocorre em paralelo. Pois, na passagem citada, a consci�ncia dividida de Anna engendra um mundo duplicado. Passo a passo, o romance se expande e multiplica as linhas do seu enredo e as projeta em dobro sempre adiante.

    Digno de nota � o caso dos filhos de Anna. S�o dois: um menino, que ela tem com o marido; e uma menina, que tem com o amante. Anna se apega cada vez mais ao menino, o filho do marido, cujas fei��es se refletem no rosto da crian�a. No correr do romance, v�-se separada � for�a do filho e passa a procur�-lo com um �mpeto que toma o aspecto dos anseios de uma mulher apaixonada. De outro lado, Anna repudia a filha que tem com Vr�nski. Parece ver na menina uma esp�cie de usurpadora que pretende tomar a posi��o do filho.

    Esse desdobramento dos filhos e o paralelo formado pelos sentimentos v�o se refletir no marido de Anna. Pois o marido, Kari�nin, mesmo sabendo que n�o � o pai da crian�a, trata a menina com zelo paternal e, sem seu cuidado, talvez a crian�a nem sobrevivesse aos primeiros dias ap�s o parto. Kari�nin jamais se mostrou assim com o pr�prio filho.

    Portanto ele tamb�m se duplica: no caso da filha de Vr�nski, ele deixa de ser o homem preso �s conven��es. Chega a tratar com grande considera��o o amante da esposa. Desse modo como que atravessa as linhas paralelas que comp�em o nosso quadro.

    DINAMISMO

    Nessa situa��o, t�o nitidamente calcada em linhas duplas que se dividem e se desdobram, pode-se ver que o paralelismo em "Anna Kari�nina" n�o se traduz em ant�teses, em oposi��es sim�tricas, nitidamente contrastantes. H� um dinamismo capaz de dar aos termos de cada um desses paralelos uma boa margem de autonomia, de vida pr�pria.

    O reflexo, processo em que os termos de cada par se espelham, confere coes�o ao conjunto. O dinamismo que os movimenta evita que essa coes�o se prenda a simetrias. Quero dizer, os termos que formam os pares e os paralelos n�o t�m o mesmo peso.

    O movimento de linhas paralelas tem um duplo aspecto. Sup�e necessariamente uma semelhan�a, uma vez que as linhas se acham sempre lado a lado: cada uma sempre se refere � outra. Mas tamb�m sup�e que as linhas nunca est�o juntas. Sempre refletidas uma na outra, prendem-se, na verdade, em fun��o de um desencontro.

    Assim todos os casais importantes em "Anna Kari�nina" se mant�m ligados em fun��o de um constante desencontro. O que distingue os v�rios casais � seu sucesso ou seu fracasso em manter tal desencontro sob controle.

    No caso de Kitty e Li�vin -a fam�lia supostamente feliz-, esse esfor�o de estabilidade no desencontro chega ao fim do romance com sinais de um �xito prec�rio. No caso de Anna e seu novo casamento, nunca sancionado socialmente, o desencontro sai do controle.

    Torna-se insustent�vel e conduz � destrui��o a parte mais fr�gil: a mulher. Nesse aspecto, a constru��o com base no paralelismo, da forma elaborada por Tolst�i -um paralelismo assim�trico-, cont�m marcas de um mundo social intrinsecamente desigual e opressivo.

    Merece lembran�a outro paralelo, n�o mencionado explicitamente no romance, mas postulado em sua concep��o geral: o desencontro que prende a R�ssia aos pa�ses ricos da Europa.

    Em v�rias situa��es de "Anna Kari�nina", a vida da elite russa apresenta reflexos desse modelo distante. Basta lembrar a frequ�ncia com que se fala franc�s, ingl�s e alem�o entre as personagens e com que se mencionam obras e conquistas cient�ficas e pol�ticas daqueles pa�ses.

    Aqui tamb�m, a exemplo do que ocorre com os v�rios casais do livro, os dois termos do par n�o se encontram. Correm em paralelo, com pesos desiguais. A R�ssia e o modelo capitalista est�o presos um ao outro em um desencontro constante. Se isso, por sua vez, pode ser visto como um reflexo antecipado -como sinal ou mau agouro- de outro paralelo do qual somos parte hoje, � uma quest�o que vale a pena se fazer, quando lemos "Anna Kari�nina".

    RUBENS FIGUEIREDO, 57, � professor, escritor e tradutor, transp�s do russo, entre outros, "Anna Kari�nina" (Cosac Naify), de Liev Tolst�i.

    CLAUDIUS, 75, � arquiteto e cartunista.

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