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    James Lovelock e as religi�es verdes

    LEO HICKMAN
    DO "GUARDIAN"

    20/06/2012 17h53

    James Lovelock est� fazendo as malas. Em certo sentido, o c�lebre cientista e autor de livros sobre meio ambiente est� apenas mudando de casa. Caixas e pilhas de pap�is ainda n�o organizados cobrem o ch�o de sua casa e "esta��o experimental", situada num vale florestado na divisa entre os condados de Cornwall e Devon.

    Em outro sentido, por�m, o cientista, aos 92 anos, est� finalmente deixando para tr�s sua vida de estudos e inven��o cient�fica e uma carreira que incluiu a formula��o da teoria de Gaia, sua altamente influente hip�tese de que a Terra � um organismo �nico, autorregulador. Os objetos pessoais de Lovelock, seus cadernos e equipamentos est�o sendo cadastrados e arquivados; ainda este ano, ser�o integrados ao acervo do Museu de Ci�ncia de Londres.

    Debru�ado sobre uma caixa de sapatos, procurando uma carta que ele preza muito e que recebeu da Nasa em 1961, pedindo que ele a ajudasse a descobrir mais sobre a atmosfera de Marte, Lovelock n�o parece sentimental em rela��o a seu passado. Na realidade, a impress�o que transmite � de estar aliviado por estar livre da responsabilidade de armazenar tudo, ele pr�prio.

    "Adaptar e sobreviver", ele diz quando pergunto por que decidiu mudar de casa. Depois de mais de tr�s d�cadas vivendo entre acres de �rvores que ele pr�prio plantou, ele e sua mulher, Sandy, decidiram simplificar suas vidas e mudar-se para a antiga casinha de um salva-vidas em frente � praia em Dorset. "N�o estou preocupado com eleva��es no n�vel do mar", diz Lovelock, rindo. "Acho que a eleva��o ser� de 60 cent�metros por s�culo, na pior das hip�teses."

    Levando em conta que em 2006 Lovelock previu que at� o final deste s�culo "bilh�es de n�s morreremos, e os poucos pares de pessoas reprodutoras que sobreviverem estar�o no �rtico, onde o clima continuar� a ser toler�vel", esta nova atitude despreocupada em rela��o a nosso futuro ambiental parece uma guinada espantosa.

    De fato, no in�cio deste ano, em entrevista � MSNBC divulgada em todo o mundo sob manchetes ir�nicas ao estilo de "profeta do fim do mundo se retrata", ele admitiu que tinha "extrapolado longe demais" quando chegara a essa conclus�o e que cometera "um erro" ao afirmar saber com tanta certeza o que acontecer� com o clima.

    Mas Lovelock n�o est� preocupado com a interpreta��o que possa ser feita desse seu recuo. Ele diz que poder mudar de opini�o e seguir as evid�ncias � uma das maravilhas libertadoras que adv�m do fato de ser cientista independente, algo com o qual ele se compraz desde que deixou a Nasa, seu �ltimo empregador em tempo integral, no final dos anos 1960.

    Ele diz que o assunto ser� o t�pico de seu pr�ximo livro, a sair em 2013, que tem o t�tulo provis�rio de "Adventures of a Lone Scientist" (Aventuras de um cientista solit�rio). "Minha editora vive me dizendo 'voc� n�o poderia escrever um livro mais animador desta vez?'."

    OBJETOS

    A mudan�a de casa est� proporcionando a Lovelock a chance de refletir sobre os objetos do cotidiano resultantes do trabalho de sua vida, a maioria dos quais est� no s�t�o h� d�cadas. Ele pega um convite, sem data, para o jantar de Natal do MI-5 (servi�o secreto brit�nico), num restaurante em Londres. Em sua outra m�o, segura um envelope antigo marcado "A Servi�o de Sua Majestade: Sigilo Total" (como cientista free-lancer, ele j� trabalhou para muitas organiza��es). H� cart�es do tipo "estimo as melhoras" de gente como o astr�nomo Carl Sagan, recebidas quando Lovelock sofreu problemas card�acos, no in�cio dos anos 1980.

    Finalmente ele encontra a carta da Nasa. "Eu tinha lido fic��o cient�fica desde a inf�ncia. Quando recebi uma carta do diretor de voos espaciais da Nasa, fiquei assombrado. Percebi que n�o queria passar o resto de minha vida como servidor p�blico e que n�o gostava da ideia de ter tudo planejado at� minha aposentadoria. Meu chefe [no Instituto Nacional de Pesquisas M�dicas, em Londres] disse que eu seria tolo se ignorasse o convite. E foi de tudo isso que Gaia acabou nascendo."

    Lovelock est� doando boa parte de seu arquivo, seus equipamentos e inven��es --que incluem o detector de captura de el�trons que ele criou nos anos 1960, que o ajudou a registrar os n�veis de CFC na atmosfera, algo que mais tarde levou � descoberta do buraco na camada de oz�nio-- ao Museu de Ci�ncia, a tempo de o material ser inclu�do numa exposi��o em 2013 sobre as condi��es de trabalho dos cientistas ao longo do tempo.

    Ele diz que dez anos atr�s, quando encerrou sua vida como cientista praticante, desmontou boa parte do laborat�rio que tinha em casa. "Desde ent�o, me tornei pensador. H� tanto mais a fazer! Acho que aposentar-se significa a morte."

    Lovelock diz que a mudan�a de domic�lio lhe foi imposta. Tr�s anos atr�s ele recebeu uma conta de aquecimento de 6.000 libras pelo inverno. Devido a sua idade, ele precisa manter o aquecimento no m�ximo em sua casa, que n�o possui isolamento t�rmico bom, e, com seu filho deficiente f�sico, Tom, vivendo na casa ao lado, os gastos com combust�vel subiram vertiginosamente.

    Os invernos �midos �s margens da charneca de Dartmoor estavam cobrando seu pre�o; por essa raz�o, nos �ltimos anos ele vem passando os invernos em St. Louis, Missouri, a cidade natal de sua esposa. A experi�ncia mudou sua atitude em rela��o aos aspectos pol�ticos e econ�micos da energia. J� tendo desagradado a muitos ambientalistas --para quem ele � uma esp�cie de guru-- com seu apoio de longa data � energia nuclear e seu rep�dio � energia e�lica (Lovelock tem uma foto de uma turbina de vento na parede de sua sala de trabalho, para lembr�-lo de "qu�o feias e in�teis elas s�o"), ele agora est� se manifestando em favor do chamado "fracking", uma t�cnica controversa de extra��o de g�s natural do solo.

    Ele argumenta que, embora n�o seja perfeito, o m�todo gera muito menos CO2 que a queima de carv�o: "O g�s � quase gratuito nos EUA no momento. O pa�s aderiu em cheio ao 'fracking'. Dever�amos ser sensatos e pragm�ticos: convencer o Reino Unido a trocar tudo pelo metano. Dever�amos estar apostando tudo nisso."

    Lovelock diz que as consequ�ncias pol�ticas negativas do desastre do ano passado em Fukushima, no Jap�o, significam que as chances de um aumento na gera��o de energia nuclear diminu�ram radicalmente.

    "Depois de Fukushima, o medo do nuclear ficou enorme, e a constru��o de usinas se tornou muito cara e pouco pr�tica. E leva-se muito tempo para colocar as usinas em funcionamento. Nos EUA, � muito evidente que o 'fracking' praticamente n�o levou tempo algum para entrar em opera��o. Existe apenas uma quantidade finita [no Reino Unido] antes de ela se esgotar, dever�amos realmente pensar em termos sensatos sobre o que fazer a seguir. Mergulhamos na energia renov�vel sem uma reflex�o adequada. Os esquemas renov�veis s�o, em sua maioria, ineficientes e desagrad�veis. O 'fracking' nos pode comprar algum tempo, e poderemos aprender a nos adaptar."

    A rea��o a Fukushima vista na Alemanha --que, semanas ap�s o desastre no Jap�o, anunciou que fecharia todas suas usinas de energia nuclear at� 2022-- deixa Lovelock particularmente enfurecido. "A Alemanha � um grande pa�s e sempre foi um l�der natural da Europa, e tantas grandes ideias, m�sica, arte etc., vieram dela, mas os alem�es t�m o defeito fatal de sempre se deixarem seduzir por um ide�logo, e a Europa vem sofrendo intensamente com os dois �ltimos epis�dios disso", conta. "Agora os alem�es est�o queimando linhito para compensar pelo desligamento das usinas nucleares. Eles se dizem verdes, mas, para mim, o que est�o fazendo � loucura total."

    Aninhado na poltrona, Lovelock limpa uma migalha de biscoito dos l�bios e deposita sua x�cara de ch� sobre a mesa: "N�o sou decididamente de esquerda nem de direita, mas detesto os democratas liberais".

    Ele dispara seus petardos travessos com tamanha rapidez e suavidade que existe o risco de deixarmos de captar o t�o importante esclarecimento e contextualiza��o.

    "Eles s�o bem-intencionados, mas, em sua maioria, t�m pouca experi�ncia do poder", acrescenta. "A coaliz�o vem agindo de modo vergonhoso em rela��o �s pol�ticas ambientais e energ�ticas. Teria sido muito melhor se ela fosse corretamente de direita. N�o quero dizer algo como Thatcher --isso foi um governo conservador revolucion�rio. Apenas um governo de direita comum. Nosso sistema pol�tico funciona porque os dois lados tendem a corrigir um ao outro."

    RELIGI�O VERDE

    Parece que a c�lebre ideia de Lovelock de um organismo que se autorregula se aplica mesmo � pol�tica. "Chegamos � nossa posi��o est�vel gra�as aos controles e equil�brios. A natureza em seu todo faz isso por meio da sele��o natural. A representa��o proporcional � uma p�ssima ideia e uma d�diva para os ide�logos."

    Lovelock n�o deixa passar uma chance de criticar o movimento verde que h� tanto tempo d� ouvidos a suas ideias. "Faz parte do jeito de os humanos serem: se existe uma causa de algum tipo, uma religi�o come�a a formar-se em torno dela. Acontece simplesmente que, no momento, a religi�o verde est� tomando o lugar da religi�o crist�. Acho que as pessoas ainda n�o se deram conta disso, mas o movimento verde tem todos os tipos de termos usados pelas religi�es. Os verdes fazem uso da culpa. N�o � poss�vel conquistar a ades�o de pessoas dizendo que s�o culpadas de emitir CO2 no ar."

    Lovelock exibe desd�m igual por aqueles que n�o aceitam o consenso cient�fico em rela��o �s mudan�as clim�ticas. "Essas pessoas t�m sua pr�pria religi�o. Acreditam que estava tudo certo no mundo antes da chegada dessa gente maldita [os verdes]. Querem retornar para onde est�vamos 20 anos atr�s. Isso tamb�m � uma tolice."

    Em alguns momentos, Lovelock pode ser uma figura fria, antip�tica. Ele fala de como n�s, como animais, somos todos "naturalmente racistas", mas "estamos tentando reprimir isso e ser sensatos".

    Muito do que ele diz parece ser embasado na realidade frequentemente brutal da sele��o natural e da onipot�ncia autocorretiva Gaia, com o resultado de que h� muito pouca preocupa��o aparente por aqueles --no mundo em desenvolvimento, talvez-- que possivelmente n�o consigam adaptar-se bem �s mudan�as ambientais futuras. Mas ele tamb�m aplica sua vis�o estritamente cient�fica � sua teoriza��o sobre solu��es.

    No momento, Lovelock est� sentindo a influ�ncia do bi�logo americano E.O. Wilson e seu estudo dos insetos sociais. "Wilson prop�s uma teoria extraordin�ria de que o ninho � a unidade de sele��o, e n�o os insetos individuais. Isso tem consequ�ncias enormes. Agora considere isso aplicado aos humanos. Se formos todos viver em cidades, estas se tornam o equivalente a ninhos. Ent�o outro pensamento decorre imediatamente desse: que, se o movimento est� fluindo nessa dire��o, n�o tentemos barr�-lo --vamos incentiv�-lo. Ao inv�s de tentar salvar o planeta com a geoengenharia, ou seja o que for, seria preciso apenas colocar ar condicionado nas cidades."

    Esta vis�o do futuro que remete ao livro "Logan's Run" --em que todos vamos viver em megacidades para mais bem administrar os recursos naturais minguantes-- pode n�o agradar a todos, Lovelock reconhece.

    "Mas nem sequer � necess�rio fazer o experimento. Basta ir a Cingapura. N�o poderia ter sido escolhido um clima pior para a constru��o de uma cidade. O lugar � um p�ntano, com temperatura que gira em torno de 35�C todos os dias, e muito �mido. Mas � uma das cidades mais bem-sucedidas do mundo. Me parece que Cingapura est� trilhando o caminho que todos n�s vamos trilhar. � muito mais barato colocar ar condicionado nas cidades e deixar que Gaia cuide do mundo. � uma op��o muito melhor do que o chamado 'desenvolvimento sustent�vel', que n�o passa de uma patacoada."

    Afirma��es como essas n�o v�o tranquilizar os l�deres globais reunidos no Rio para mais uma confer�ncia internacional com o objetivo de resolver nossos problemas ambientais, e onde os chamados por "desenvolvimento sustent�vel" com certeza ainda estar�o em voga.

    Lovelock diz que duvida que os esfor�os internacionalistas desse tipo realizem muito: "Qualquer coisa em que a ONU mete a colher parece virar uma confus�o. O que eu penso � que a situa��o clim�tica � muito mais complexa e que n�s n�o somos capazes de lidar com ela agora e talvez n�o sejamos no futuro. N�o se pode tratar a quest�o clim�tica como um problema cient�fico isolado. � preciso envolver o mundo inteiro, e h� a constante temporal da atividade humana. Veja h� quanto tempo foi acordado o tratado de Kyoto --h� 15 anos-- e que nada foi feito. A constante de tempo humana � muito lenta. N�o ocorrem mudan�as grandes em menos de 50-100 anos, e o clima n�o vai esperar tanto tempo."

    Tradu��o de CLARA ALLAIN.

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