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    AN�LISE

    Leis da f�sica te�rica perdem para as da Marvel em 'Dr. Estranho'

    MARCELO GLEISER
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    15/11/2016 02h30

    "N�o � sobre voc�!", diz a fant�stica Tilda Swinton no papel da misteriosa Anci� no filme "Doutor Estranho".

    A maga aconselhava o doutor Stephen Strange (Benedict Cumberbatch), em d�vida se voltava � sua vida anterior como um neurocirurgi�o superfamoso e supernarcisista, ou se usava seus novos poderes m�sticos para salvar o mundo.

    A vida havia lhe pregado uma surpresa tr�gica quando um acidente destruiu suas m�os e sua habilidade de operar. Desesperado, encontra uma seita no Nepal, liderada pela Anci�. �s vezes, a vida faz isso com a gente, reorientando nosso caminho de forma inesperada.

    O que um narcisista faz numa situa��o dessas? Primeiro, tenta restaurar seu status. Infelizmente, e aqui vem a primeira li��o, n�o podemos controlar o tempo.

    Os poderes da natureza est�o muito al�m de nosso controle. Suas leis precisam ser respeitadas. S� isso deveria inspirar uma enorme dose de humildade, n�s que nos achamos t�o poderosos.

    Uma exce��o razo�vel se d� quando a amea�a que temos a enfrentar tem enorme potencial destruidor e, dado que estamos num universo Marvel, temos poderes m�sticos de um deus.

    Dada essa situa��o, n�o � de todo surpreendente que o status de neurocirurgi�o fique para tr�s. O m�dico que usava seus pacientes para se autopromover se torna o supermago que ir� controlar o tempo para salvar o mundo.

    "O tempo � o inimigo", diz Kaecilius (Mads Mikkelsen), o poderoso vil�o seduzido pela possibilidade de control�-lo.

    Esse � o tema central do filme, nossa mortalidade. Devemos aceit�-la, como sugere a Anci�, ou tentar conquist�-la, mesmo que isso requeira uma uni�o com os poderes macabros do outro lado, o lado Sombra de Kaecilius e seu l�der Dormammu?

    VIAGEM NO TEMPO

    O paradoxo � claro: se podemos andar para frente e para tr�s no espa�o, por que n�o no tempo? E seria necess�ria uma alian�a com o mal para control�-lo?

    N�o se voc� for um f�sico te�rico. Afinal, com as ferramentas da ci�ncia, podemos construir modelos onde o tempo � control�vel, ao menos no papel. Segundo a teoria da relatividade de Einstein, avan�ar no tempo, viajar para o futuro, � perfeitamente poss�vel. Basta termos um foguete bem veloz, capaz de viajar com velocidade pr�xima � da luz. O obst�culo aqui � mais tecnol�gico do que conceitual.

    Por outro lado, viajar ao passado � bem mais complicado, mesmo que loops fechados no tempo –viagens temporais nas quais a pessoa volta ao seu momento de partida– n�o sejam coisa apenas de fic��o cient�fica.

    Em 1949, o brilhante matem�tico austr�aco Kurt G�del encontrou uma solu��o das equa��es da teoria da relatividade geral na qual, ao menos teoricamente, � poss�vel viajar num loop temporal como podemos fazer no espa�o.

    Na pr�tica, entretanto, a solu��o de G�del e suas vers�es mais recentes continuam vivendo no mundo te�rico. Existem diversos problemas, dado que espa�os com loops no tempo tendem a colapsar sobre si mesmos.

    Felizmente, num universo que segue as leis f�sicas da Marvel (quase) tudo � poss�vel.

    Quando o Doutor Estranho descobre que tem o poder de controlar o fluxo do tempo, vemos a imagem bel�ssima de uma ma�� que se regenera continuamente ao ser consumida. Nesse pequeno peda�o de espa�o, o tempo se passa num loop fechado, com a hist�ria terminando onde come�a.

    MULTIVERSO

    Para proteger a Terra, o Doutor Estranho tem que viajar atrav�s do multiverso, no filme definido como uma cole��o infinita de universos, cada qual com suas leis naturais, inspirado em especula��es da f�sica te�rica de ponta.

    Aqui reside Dormammu, Mestre das Sombras, que, por raz�es n�o explicadas, quer expandir seu dom�nio destruindo mais e mais mundos. Trabalho ingrato esse, destruir mundos num multiverso com um n�mero infinito deles.

    O filme mostra que o poder � uma armadilha: aquele que se acha poderoso � prisioneiro de sua pr�pria cobi�a, com vida trancada num loop fechado n�o de tempo, mas de poder. Apenas o desespero pode vir da cobi�a, onde mais poder leva apenas a querer mais poder.

    Um toque especial ocorre quando Estranho descobre a fonte da longevidade da Anci�. Para tal, ela optou por se aliar–ao menos em parte–com a Sombra, numa virada de roteiro que mostra que, muitas vezes, o objetivo final eclipsa os passos que devem ser dados em dire��o a ele; o fim justifica os meios, quando estes s�o moralmente s�lidos.

    No caso da Anci�, sua escolha � compreens�vel, j� que � a protetora da Terra. A li��o aqui � que outros, com valores morais bem menos louv�veis, podem decidir que suas miss�es tamb�m s�o moralmente justific�veis. As consequ�ncias, como vemos na viol�ncia entre humanos que ocorre h� mil�nios, s�o, em geral, tr�gicas.

    Como nos mostra o Doutor Estranho, somos a soma de nossas escolhas e devemos considerar com muito cuidado aonde elas nos levar�o. Nem sempre encontramos uma mentora como a Anci� ao longo do caminho.

    MARCELO GLEISER � professor titular de f�sica, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, EUA. Seu livro mais recente � "A Simples Beleza do Inesperado" (ed. Record)

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