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    Vice

    Uma f� com muitos f�s: Carrie Brownstein, do Sleater-Kinney, fala sobre sua autobiografia

    BRYN LOVITT
    DA VICE

    30/10/2015 06h00

    Reprodu��o/Vice
    Carrie Brownstein, do Sleater-Kinney
    Carrie Brownstein, do Sleater-Kinney

    "O rock 'n' roll est� quase morto", me diz Carrie Brownstein, sentada sobre as pernas cruzadas no sof� de seu quarto de hotel. � esquisito ouvir isso de algu�m que para voc� � uma prova viva de que o rock ainda est� a� - Brownstein � uma das fundadoras da banda de rock Sleater-Kinney, e amplamente considerada uma das maiores guitarristas do nosso tempo. Mas Brownstein, de 41 anos, prefere falar sobre Drake. Ou Kendrick Lamar. Ou Young Thug.

    "Eu ou�o muito hip-hop. Provavelmente � o que eu mais escuto", explica Brownstein por cima do som de sirenes que vem da rua abaixo. Est� chovendo em Manhattan, e estamos a uns dez andares acima do ch�o. "O hip-hop n�o tenta se manter isolado ou acima das coisas. Ele vai se entrela�ando." Ela olha para a Madison Avenue pela janela. "A impress�o � de que � integrado com um ritmo, e digo isso em termos da velocidade das nossas vidas. Uma coisa e outra se harmonizam de modo perfeito."

    Estamos aqui para conversar sobre sua autobiografia, "Hunger Makes Me a Modern Girl" (lan�ada em 27 de outubro nos Estados Unidos, ainda sem previs�o de lan�amento no Brasil), mas a mudan�a de rumo em nossa conversa me parece espantosamente apropriada: � claro que Carrie Brownstein adora hip-hop.

    "Uma coisa que eu acho muito tediosa no rock'n'roll � que, na imagem de um homem branco segurando uma guitarra, h� algo que tem que ser levado a s�rio, porque todo mundo pensa: 'bom, vai ser assim para sempre, n�?' Mas vai saber? O que � para sempre? Essa � uma ideia t�o arrogante, de que voc� entra automaticamente para o c�none porque est� emulando uma tradi��o antiga. Sinto que o que eu gosto no hip-hop � que ele tem que ser visto nos termos do agora. E � assim que tudo deveria ser. Existe outra coisa que n�o seja o agora?"

    No in�cio dos anos 90, Carrie Brownstein e a companheira do Sleater-Kinney Corin Tucker adotaram uma abordagem claramente conversacional, quase parecida com o rap, na hora de escrever m�sicas, abordagem que salientou a banda com press�es sociopol�ticas. N�o s� isso como tamb�m o modo como Brownstein e Tucker gritavam uma com a outra em versos ensandecidos, e as guitarras cujos sons se entrecruzavam, refletiam o caos das quest�es que se tornavam inflamadas na m�sica punk da �poca: feminismo radical, identidades de g�nero e agress�o sexual.

    No palco e fora dele, a reiterada recusa do Sleater-Kinney em ser rotulado como "banda feminina" contribuiu para destro�ar os padr�es tradicionais das mulheres no rock, ao falar diretamente desde uma perspectiva interna � quest�o, ou, como diz Brownstein sobre o hip-hop, "de dentro da confus�o".

    "Para mim, � o tipo de m�sica mais empolgante - h� a presen�a de um senso de humor, � uma m�sica que aborda t�picos, � relevante." Entre se derramar sobre To Pimp a Butterfly, de Kendrick Lamar, e falar sobre sua adora��o por Drake (de "o disco do Kendrick � incr�vel!" a "'Hotline Bling' � boa demais, n�?"), o rosto dela se ilumina e ela sai correndo pelo quarto para pegar a bolsa. "P�ra. Tenho que te mostrar um neg�cio."

    "Voc� gosta do Miguel? Eu amo o Miguel de paix�o." Depois de vasculhar a bolsa, ela encontra o iPhone e se ruboriza violentamente. "Ele n�o � hip-hop de verdade, mas olha s� isso." Eu me aproximo para olhar enquanto ela vai rolando seus v�deos. "Isso aqui � a prova de como sou uma f� insana."

    Reprodu��o/Vice
    'Hunger Makes Me a Modern Girl', de Carrie Brownstein
    'Hunger Makes Me a Modern Girl', de Carrie Brownstein

    Ver algu�m t�o famosa e influente quanto Carrie Brownstein pirar com uma mensagem de anivers�rio em v�deo de um pop star como Miguel � um exemplo de porque seu livro de mem�rias � t�o fascinante: mesmo no auge do Sleater-Kinney, quando as pessoas tatuavam nos bra�os o aut�grafo de Brownstein, ela continuou sendo incapaz de se distanciar inteiramente da superf� suburbana cuja vida mudou radicalmente depois que descobriu o Bikini Kill, em 1991. Mesmo agora, sendo uma rockstar consagrada, ela parece se sentir mais � vontade sendo fan girl de Miguel do que falando sobre si mesma.

    No livro, ela relembra a transi��o de aspirante desesperada a "riot grrrl" � subida ao palco com sua pr�pria banda de uma maneira que s� as pessoas que j� se dedicaram de todo cora��o a uma cena musical podem entender. Quando ela confessa ter escrito cartinhas de f� constrangedoramente efusivas para a guitarrista do 7 Year Bitch, incluindo detalhes excruciantes, mencionando at� mesmo o que vestia quando estava com a caneta na m�o, � poss�vel enxergar as origens do Sleater-Kinney.

    Seu livro defende o modo f� de ser como uma busca intelectual. � interessante ver como as pessoas muitas vezes identificam o Sleater-Kinney com o movimento riot grrrl, quando, na verdade, Carrie Brownstein come�ou como uma f� do hardcore, que basicamente stalkeou Corin Tucker, do Heavens to Betsy, at� se fazer notar por ela. Mas o que realmente tornava o Sleater-Kinney diferente do resto era o modo como elas entravam em di�logo sobre o que significava ter passado pela experi�ncia do "riot grrrl", em vez de simplesmente reafirmar seus princ�pios.

    As mem�rias de Brownstein deixam claro que ela nunca se conformou com aceitar as coisas pelo que elas s�o na superf�cie. Ao contr�rio, ela entende as influ�ncias que sofreu como partes de si mesma, o que lhe possibilita enxergar a import�ncia de sua pr�pria banda com nuances anal�ticas. Brownstein carrega consigo os ingredientes de si mesma, e � exatamente assim que "Hunger Makes Me a Modern Girl" se estrutura.

    Noisey: Voc� narra com muitos detalhes como foi descobrir o punk e o riot grrrl na juventude. Como conseguiu se lembrar de tudo aquilo de maneira t�o v�vida, tantos anos depois?
    Carrie Brownstein: O processo, acho, de escrever o livro foi extrair material dos momentos que pareciam definir a minha jornada em dire��o � criatividade, e do que se destacava nela. O que me pareceu crucial em termos de me encontrar, descobrir o processo criativo, meio que ser encontrada pela m�sica e pela comunidade. Muito mesmo do Sleater-Kinney fez parte disso, e Corin [Tucker] especialmente.

    Fiz um esbo�o, e sabia que havia certas partes em que queria focar minha aten��o. Conversei muito com a Corin, e com a minha irm�, e li anota��es antigas de di�rio, fiz perguntas a amigos para os quais tinha mandado cartas quando estava em turn�. Comecei a estruturar a narrativa, mas nem sempre escrevi seguindo a ordem cronol�gica. Escrevi em grandes blocos, e depois os coloquei na ordem que me pareceu mais interessante, e que parecia conter mais suspense.

    A New Wave, do Sleater-Kinney

    A maneira anal�tica com que voc� relembra suas inspira��es musicais intelectualiza a experi�ncia de ser f�. Por que voc� acha que � assim?
    Sinto muito forte uma afinidade com quem fui na juventude enquanto f�. Para mim, ser f� � algo que traz em si mesmo uma curiosidade inerente, e acho que a curiosidade � o que permite que sejamos abertos e otimistas, e que deixa entrar em nossas vidas experi�ncias para as quais estar�amos fechados se n�o fosse por ela. O tempo todo somos confrontados com tantos casos, e com tanta informa��o, que � quase necess�rio levantar um muro - quase exige que a gente fique inerte... que fiquemos com medo.

    H� alguma coisa na rela��o entre a atitude do f� e a curiosidade que nos faz continuar seguindo em frente pelo mundo, e entrar no processo de descoberta, e acho que isso serve para equilibrar com as coisas que parecem mais incertas e assustadoras... � algo que me ajuda a conservar o otimismo como um dos ingredientes da minha vida, e me ajuda a viver no presente. Mesmo se voc� est� descobrindo agora uma coisa que � antiga, o processo de permitir que algo novo entre na sua vida, acho eu, � mostra de uma abertura que � importante.

    Como se faz para entrar numa cena da qual voc� � f� sem sentir que voc� est� enchendo a paci�ncia de todo mundo? Voc� menciona ter lutado com essa quest�o pessoalmente, quando se mudou para Olympia e come�ou a se relacionar com bandas como 7 Year Bitch e Heavens to Betsy.
    Acho que o elo perdido � saber quem voc� �. � dif�cil meio que se integrar e se posicionar dentro de uma comunidade quando voc� est� cheia de inseguran�as. Tem uma hist�ria muito transformadora mesmo sobre a Elizabeth do 7 Year Bitch literalmente n�o me reconhecer. Eu queria tanto fazer parte do mundo dela, da banda dela, literalmente queria ser parte da banda dela, e continuei sendo invis�vel para ela at� que me tornei essencialmente outra pessoa. E uma vers�o muito dram�tica e espec�fica de transforma��o, mas acho mesmo que tem muito a ver com se sentir � vontade com quem se � - cercar-se de pessoas que fazem voc� se sentir inteira, ou ao menos que n�o fa�am voc� se sentir inferior. E estar em um lugar em que voc� se sinta segura o bastante para correr riscos. E isso pode ser muita coisa.

    No meu caso, eu j� tinha formado o Sleater-Kinney e estava tocando nos palcos, mas, para outras pessoas, acho que pode ser ter a confian�a de se apresentar, n�o como algu�m de fora, mas sim como algu�m que pertence �quele lugar. E para isso � preciso ter muita confian�a. Isso em parte vem de se cercar de pessoas que passam a sensa��o de pertencimento.

    Foi isso o que a levou a passar da vida nos sub�rbios de Seattle para Olympia?
    Sim, e isso me ajudou. Essa era uma coisa que a faculdade n�o podia fazer. Eu fiz faculdade, e mal tinha coragem de falar nas aulas. Era muito t�mida e muito nervosa. Precisou mesmo que eu convivesse com uma constela��o de esquisit�es, de gente bizarra, estranha, at� que deixasse de me ver como pertencente � periferia. A periferia foi se alargando at� que come�ou a parecer um centro.

    Jumpers, do Sleater-Kinney

    E ent�o isso aconteceu literalmente! Tem aquela parte no livro em que voc� est� no centro do palco em um dos primeiros shows do Sleater-Kinney, e se d� conta de que tinha deixado de ser uma f� e virado uma parte real da cena de l�. Tipo, seus �dolos finalmente te aceitaram. Voc� acha que experi�ncias como essa deram forma a como voc� e a banda se relacionam com os f�s?
    Acho que, coletivamente, estivemos em ambos os lados dessa equa��o. Acho tamb�m que, como n�o tivemos uma ascens�o mete�rica para a fama, em que a pessoa passa reto por esses est�gios intermedi�rios, estivemos presentes no processo inteiro, de seus amigos promoverem shows seus, e de dormir no sof� de desconhecidos. No come�o, mal havia uma diferencia��o entre voc� e o p�blico. Essa hierarquia foi completamente desmantelada. Ent�o acho que, se voc� come�a dessa maneira, e de uma maneira muito natural vai dando os passos seguintes, fica dif�cil decidir, tipo "ah, bem, n�o vamos mais nos comunicar com voc�s. Voc�s s�o uma fase que n�s transcendemos". Ent�o, nossa popularidade teve uma progress�o bastante org�nica.

    Ao mesmo tempo, quando conseguimos um destaque maior, e sa�amos de �nibus para as turn�s, e faz�amos shows maiores, acho que ainda era igualmente importante para n�s. � simplesmente a natureza da nossa m�sica. Sentimos uma necessidade muito grande nas pessoas, que acho que n�s tentamos reconhecer sempre que podemos. Tenho muita certeza de que, na verdade, m�sica � o que eu quero dar para as pessoas. N�o h� muita coisa al�m disso que chegue sequer a ser satisfat�ria.

    Como artista, n�o acho que exista alguma coisa que voc� deva aos f�s al�m da m�sica. Contudo, como um ser humano que tem compaix�o, que � sens�vel e gentil, tento ter consci�ncia do que existe fora da din�mica f�-banda, que existe apenas nas vozes que nos alcan�am pelas redes sociais, ou nas filas depois de um show, e encar�-las num n�vel individual. N�o "f�" em termos gen�ricos, s� pessoas mesmo. � nessas horas que fa�o um esfor�o para me lembrar do quanto � importante ser percebido. Escrevi muito sobre isso na parte inicial do livro - a sensa��o mesmo de um contato visual, tipo, sim, eu estou aqui. J� me senti invis�vel antes, mas estou aqui.

    Na primeira forma��o do Sleater-Kinney, a gente recebia cartas por meio da nossa gravadora, e eu lia essas cartas, mas na �poca das m�dias sociais, e nos nossos shows do No Cities to Love, teve um grupo de f�s que come�ou a fazer tatuagens dos nossos aut�grafos, e esse foi um neg�cio muito intenso mesmo, porque a gente autografava os bra�os do pessoal, e eu achava que aquilo seria um pouquinho de tinta tempor�ria na pele, mas a� eles pegavam e faziam uma tatuagem permanente.

    E parte de mim pensa tipo, isso � maluquice, gente, voc�s t�m que maneirar. Voc� n�o quer o meu aut�grafo... mas outra parte de mim percebe que tipo, esse entusiasmo, essa disposi��o de fazer uma coisa que � meio tipo que espont�nea e fr�vola e tamb�m meio que contraintuitiva, tudo isso faz parte tipo do processo de amar alguma coisa, ou de se sentir parte de alguma coisa. Eu provavelmente teria feito coisas parecidas. Mas, quando voc� est� do outro lado, parece uma coisa bizarra. Fiquei tipo: preciso de uma assinatura mais bonita. Vou deixar minha assinatura parecendo um quadro do Picasso. Vou aprender caligrafia. Mas n�o tenho tatuagem do aut�grafo de ningu�m.

    Mas, se pudesse, faria?
    N�o!

    De quem voc� � f�zona no momento?
    Tipo, o Kendrick � sensacional, mas tamb�m adoro o Young Thug e o Meek Mill.

    No Cities to Love, do Sleater-Kinney

    Ent�o, voc� � time Meek Mill ou time Drake?
    Eu meio que sou time Drake. Eles brigaram. Tipo, eles eram amigos. Eu prefiro o disco do Drake. Mesmo essa nova dele, "Hotline Bling", adoro essa m�sica. � muito boa mesmo. Acho que o hip-hop � um g�nero muito �gil. Adoro, � incr�vel. Mas acho que provavelmente foi o Kendrick que soltou o melhor disco de hip-hop deste ano. Voc� gosta do Big Sean? Quando estou no trailer, nas filmagens de Portlandia, s� escuto ele. Ah, e o Tame Impala. Adoro aquele disco. E gosto do novo disco do Kurt Vile. Gosto muito da Rihanna. Gosto muito de como com ela � tipo "nem, n�o quero ficar no mesmo papel de Taylor Swift. N�o quero ser modelo para ningu�m." Tipo, parab�ns, menina! Ningu�m tem que ser tudo para os outros. Fa�a o que lhe der na telha.

    � preciso ser muito vers�til quando se tem a obriga��o de ser um modelo para os outros. Por exemplo, vi a Grace Jones participar de uma leitura na noite passada. Ela chegou duas horas atrasada e s� ficou ali de bobeira e autografou livros. Foi um momento diva. Mas fiquei pensando, tipo, sabe, nossa, a gente pede muita coisa mesmo das mulheres que s�o pop stars. Esperamos que elas sejam pessoas fascinantes, e tamb�m que tenham os p�s no ch�o, que sejam sexy, mas tamb�m que todo mundo possa gostar delas. Gosto muito de como a Rihanna ficou tipo "n�o quero que as pessoas gostem de mim. N�o fa�am de mim um modelo. Vou soltar umas m�sicas e � s�." Adoro isso. Ela fala a verdade, e n�o entra na briga e tal.

    Mas, no livro, voc� chega a reconhecer que sentiu esse mesmo tipo de press�o vinda dos seus f�s. As pessoas idolatram o Sleater-Kinney ao ponto dos outros dizerem que � uma seita. Como voc� lida?
    Acho que � s� manter a coisa em perspectiva, suponho. Ficar na moralzinha. Vendo o Miguel falando comigo no v�deo.

    Leia no site da Vice: Uma f� com muitos f�s: Carrie Brownstein, do Sleater-Kinney, fala sobre sua autobiografia

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