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    Aracy de Almeida foi 'malandro de saia'

    BARBARA GANCIA
    DE S�O PAULO

    01/01/2015 02h15

    A Aracy que descobrimos � uma mulher de bom gosto, afinad�rrima, a pessoa que resgatou Noel Rosa para a hist�ria depois da morte do "Cole Porter tapuia" para a tuberculose

    Nunca soube entender que bicho foi que mordeu a Aracy de Almeida (1914-1988).

    Em 2014 comemorou-se o seu centen�rio e, enquanto escrevo estas enfadonhas, digo, mal tra�adas linhas, o livro de que ou�o falar h� pelo menos uma d�cada, "Aracy de Almeida - N�o Tem Tradu��o", um projeto - barra - sonho - barra - del�rio tropicalista executado pelo amigo Eduardo Logullo, me encara do alto de suas 216 p�ginas de "causos", cita��es e divinas tretas com a emp�fia de quem envia uma vigorosa banana.

    Manoel Pires/Folhapress
    A cantora Aracy de Almeida posa para foto.
    A cantora Aracy de Almeida posa para foto.

    Eduardo Logullo, com quem, em outros tempos, j� dividi um com�rcio ambulante de churrasquinho grego no viaduto do Ch� (se n�o dividi, poderia, tamanha a cumplicidade), e a quem Jos� Sim�o um dia definiu como o "melhor de todos n�s" –n�o fosse, a meu ver, um certo cacoete de desafiar autoridade e quest�es que op�e v�nculos empregat�cios aos seus projetos de viagens ao exterior–, vem a ser deliciosamente fissurado em tudo aquilo que n�o � convencional.

    A ponto de tachar de "careta" –s� para se ter uma ideia– at� o Marqu�s de Sade.

    S� um livro escrito por algu�m como Logullo poderia me ajudar a desvendar mist�rios que parecem durar os mesmos cem anos que Aracy completaria neste 2014.

    Perceba: fui uma crian�a confusa. Chegava ao c�mulo de levar a s�rio o "Batman" interpretado por Adam West (como podia entender que se tratava de com�dia com vil�es como Vincent Price, Cesar Romero e Ida Lupino?).

    Mas a sequelada mirim que vos fala n�o conseguia entender porqu� Silvio Santos mantinha um programa de calouros com jurados t�o cru�is e pouco atraentes quanto D�cio Piccinini, Pedro de Lara e a cangaceira que lembrava uma cruza entre Silvio "pelamor dos meus filhinhos" Luiz e a Mafalda, do cartunista Quino.

    Enquanto escrevo este texto o cantor Daniel est� na tela da TV, no programa "The Voice Brasil" (Globo), esquartejando "Meu Mundo e Nada Mais", de Guilherme Arantes. Para espanto do autor, que tenta acompanhar como pode ao piano, Dani boy mete bronca nos trinados.

    ATENTADO MUSICAL

    Seria divertido ver como Aracy de Almeida reagiria diante desse atentado que se comete hoje em dia contra a interpreta��o musical, fen�meno que eu denomino de "celinedionifica��o" ou, como queira, de "agnaldorayoliza��o" da can��o, uma forma de exibicionismo que s� valoriza pot�ncia sem oferecer nenhuma contrapartida e, no processo, coloca todas as m�sicas populares do planeta na mesma prateleira de nada.

    A Aracy que descobrimos � uma mulher de bom gosto, afinad�rrima, a pessoa que resgatou Noel Rosa para a hist�ria depois da morte do "Cole Porter tapuia" para a tuberculose nos anos 1930.

    Aquele azedume em pessoa, que eu enxergava como uma desalmada capaz de dar a merreca de "dez paus" para o melhor n�mero da noite, das (digamos) duas �rf�s cegas, surdas e mudas do "Show de Calouros", � revelada nas p�ginas desta nem t�o biografia e bem mais agrupamento de "boutades et retrouvailles" (reuni�o de fatos interessantes, frases e chistes) como uma cultivadora do bem viver, amiga de �cones como Paulo Mendes Campos, Di Cavalcanti, Vinicius de Moraes e toda a bo�mia e inteligentzia da �poca.

    Logullo v� Aracy com um ser de modernidade intuitiva, uma bolacha fina para as massas, mais que isso, a enxerga como uma contrapartida feminina do malandro do morro, o camarada maltratado que se reafirma ostentando "coragem, perspic�cia, manha, estilo".

    Ainda de acordo com Logullo, o "malandro" que seu personagem encarna � aquele ser que diz: "Eu posso. Eu sou. Eu quero. Eu vou. Eu fa�o".

    "Os malandros", continua, "em sua maioria negros oriundos dos bairros remediados' da Zona Norte carioca, buscavam aceita��o social e escancaravam seus pequenos luxos".

    ENXOTANDO CALOUROS

    Hoje, seria impens�vel aceitar o apresentador do "�dolos" que enxota o calouro para fora do palco com uma buzinada de carro antigo na orelha, no meio da interpreta��o. Ou que uma bruxa enfezada feito Aracy tivesse a liberdade de despejar seu descontentamento a respeito da condi��o humana na fu�a de inocentes cordeiros submetidos ao seu escrut�nio. O p�blico rejeitaria correndo.

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    E, no entanto, o malandro de hoje � o do funk ostenta��o, uma manifesta��o pol�tica usada para desagradar. E h� o malandro hiper-realista, que comete malandragens ipso facto e dificilmente acabar� virando a nova Susan Boyle pelas m�os de Simon Cowell.

    � analisando de onde viemos, para onde vamos, que se consegue traduzir a Aracy. Toda pura, almofadinha, muito da certinha.

    Uma mulher t�o aut�ntica que foi incapaz de negociar com a mediocridade ou a baixaria. E acabou sentindo a mudan�a dos ventos entre as costelas.

    "Antes eu era muito popular, mas s� entre intelectuais e artistas. Agora n�o, porque esse neg�cio de Via Embratel � um bico, rapaz! Acabou-se o tempo de poder sair para fazer compras, escolher minhas verduras. Agora n�o, at� vaia eu levo na rua... Estou com minha cuca baleada: uns me d�o adeusinhos, outros me chamam de filha daquilo...", afirmou a cantora. "Estou � a fim de me pirulitar por a�, ir pro Amazonas ajudar a abrir aquelas estradas l�..."

    ARACY DE ALMEIDA - N�O TEM TRADU��O
    AUTOR Eduardo Logullo
    EDITORA Veneta
    QUANTO R$ 34,90 (216 p�gs.)

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