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    Ex-cotistas, m�dica do RJ e advogado do STF relatam racismo e dificuldade

    F�BIO TAKAHASHI
    PAULO SALDA�A
    DE S�O PAULO

    10/12/2017 02h00

    Na faculdade de Medicina, Monique Fran�a n�o foi reconhecida como estudante do curso em mais de uma ocasi�o, mesmo quando participava de atendimento. Teve de lidar, j� como m�dica, com uma paciente que se recusou a ser atendida por ela.

    "Ela achava que eu n�o teria capacidade", afirma.

    Aos 28 anos, Monique coleciona uma lista de obst�culos que teve de superar at� conseguir chegar ao diploma –o que faz com que ela relate os dois epis�dios com uma certa tranquilidade.

    "Um dia percebi que tinha que ser isso: militante, m�dica, negra, da favela e que n�o ia desistir", diz, relembrando a fase em que chegou a trancar o curso por um ano por n�o se identificar com quem a rodeava na faculdade.

    Nascida em Niter�i e criada na Cidade de Deus, zona oeste do Rio, Monique se formou em medicina pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) no ano passado. Ela entrou por cotas em 2010 –a Uerj foi umas da pioneiras na ado��o do sistema no pa�s, em 2002, muito antes da Lei de Cotas das federais ser sancionada em 2012.

    DESEMPENHO DOS COTISTAS AO FIM DA FACULDADE - Em n�mero de cursos

    Apesar de representar mais da metade da popula��o brasileira, calcula-se que cerca de 20% dos m�dicos s�o pretos ou pardos. A popula��o negra enfrenta condi��es financeiras mais dif�ceis: tr�s em cada quatro pessoas entre os 10% mais pobres do pa�s s�o negras, segundo dados do IBGE de 2015.

    As desigualdades tamb�m est�o na escola. Ser preto no Brasil aumenta a probabilidade de fracasso escolar entre 7 e 19 pontos percentuais mesmo considerando alunos com pais que t�m o mesmo perfil de escolaridade, o ensino fundamental completo.

    Neste estudo de 2012, da pesquisadora Paula Louzano, o fracasso escolar foi medido pela repet�ncia e evas�o de alunos do 5� ano.

    A m�e de Monique Fran�a � cabeleira, negra, foi empregada dom�stica por quase toda a vida e aprendeu a ler aos 25 anos. Ao lado do pai, motorista, sempre colocou o valor da educa��o acima das dificuldades, diz a filha.

    Na 8� s�rie, por iniciativa da m�e, Monique conseguiu uma bolsa em uma escola particular. Mesmo ficando em uma turma entre os 30 melhores da escola, n�o conseguiu passar de primeira e partiu para o cursinho. Foi a secret�ria do cursinho que falou pra ela sobre cotas.

    "Quando entrei na universidade entendi que estava tendo oportunidade que ningu�m na minha fam�lia teve. Sou a primeira. E o medo de decepcionar, por causa de uma nota, faz uma press�o enorme", diz. "Pra mim n�o era s� mais uma etapa educacional, mas a oportunidade de mudar de vida."

    Levava duas horas no �nibus entre a faculdade e a casa. Na primeira prova, tirou 3,8. Teve dificuldade de entender o modo de avalia��o. Mas um 9,8 veio j� no segundo teste. "Talvez a representatividade de ser uma mulher negra e m�dica fez com o que eu terminasse o curso."

    Onde est�o os alunos do ensino m�dio - Em %

    De onde v�m os ingressantes no ensino superior federal - Aumentou a propor��o de alunos vindos da rede p�blica (em %)

    PROFISS�O

    Hoje Monique faz resid�ncia em Medicina de Fam�lia e Comunidade em uma cl�nica municipal do Rio, depois de ter feito um curso em Cuba. Com a melhora na renda, mudou-se para um local pr�ximo ao trabalho e est� reformando a casa da fam�lia.

    "Eu entendo quando um paciente diz que n�o dormiu porque passou a noite inteira com um tiroteio na porta, porque eu passei por isso", diz. "E � isso que a gente tem de aprender a fazer como m�dica: interpretar uma dor."

    Foi tamb�m na Uerj (que passa por grave crise financeira atualmente) que Irapu� Santana, 30, ingressou no ensino superior. Ele � da segunda turma de cotas da universidade, em 2004.

    Havia estudado tamb�m com bolsa em escola particular. A universidade foi, como no caso de Monique, uma novidade na fam�lia: o pai, maquinista, fez at� o ensino m�dio. A m�e, do lar, s� p�de estudar at� a 4� s�rie.

    "O primeiro ano foi bem complicado, reprovei em duas mat�rias. Mas depois acabei passando e comecei a me destacar", conta ele, que durante cinco anos acordava �s 4h30 para conseguir cumprir a tempo o trajeto de Maric�, munic�pio da regi�o metropolitana do Rio, onde morava, at� o campus, no Maracan�, na zona norte da capital.

    Depois de formado, Santana foi o primeiro advogado negro de um grande escrit�rio no Rio, engatou um mestrado, passou em concurso para procurador, escreveu seu primeiro livro e fez um curso na universidade Yale (EUA). Hoje � professor universit�rio, est� para concluir o doutorado e atua como assessor do ministro Luiz Fux, no STF (Supremo Tribunal Federal), em Bras�lia.

    As condi��es de vida melhoraram, e Santana sabe o lado positivo de servir de inspira��o. Mas os reflexos do racismo, diz ele, n�o seguiram a mesma tend�ncia.

    "As pessoas acham que sou motorista e seguran�a, � muito rotineiro. As pessoas acham que o racismo vai diminuindo, mas � o contrario. Ser o �nico negro � ter que provar todo dia por que estou aqui no supremo", diz.

    O professor Luis Augusto Campos, do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da A��o Afirmativa), explica, comparando pessoas da mesma classe social, os pretos e pardos ainda t�m maior dificuldades de ascens�o social.

    O grupo tem acompanhado o desempenho de cotistas e n�o cotistas nas notas das disciplinas dos cursos. Em avalia��o recente na Uerj, a diferen�a no desenvolvimento acad�mico dos dois grupos n�o chega a 0,5 ponto.

    "Os dados t�m mostrado uma condi��o �tima entre m�rito e inclus�o. Nos cursos mais concorridos, inclui os cotistas com melhor desempenho", diz Campos, que ainda sente falta de uma avalia��o institucional da pol�tica.

    ENADE

    Os dados do Enade analisados pela Folha que, em 37 de 64 cursos, as notas dos cotistas raciais tem uma m�dia inferior a 5% do que a dos n�o cotistas. Nos outros 27, as m�dias dos cotistas raciais s�o similares (at� 5% menor) ou superior.

    O Enade permite identificar uma realidade ampla, mas tem limita��es. N�o h� garantia de empenho dos estudantes na prova, uma vez que a nota n�o conta para o estudante –a reportagem excluiu dados de quem deixou a prova em branco.

    Outra quest�o � de amostra. Estudantes que fizeram a avalia��o entre 2014 a 2016 ingressaram quando n�o havia lei de cotas nas federais ou os percentuais de inclus�o eram ainda t�midos. Sobretudo com rela��o a cotistas raciais, uma baixa quantidade de beneficiados fragiliza uma an�lise mais conclusiva sobre esse grupo.

    Em 2003, as federais tinham 34,2% de alunos pretos e pardos. Em 2014, esse �ndice subiu para 47,6% (em uma popula��o de 53%). Os dados s�o da Andifes (associa��o dos reitores das institui��es federais). Os dados escondem a baixa inclus�o em cursos concorridos.

    Desempenho dos cotistas

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