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A Maia, atriz trans que será Morte em novela, lembra dificuldades

Anna Luiza Santiago

Marcella Maia em 'Quanto mais vida melhor' (Foto: Arquivo pessoal)Marcella Maia em 'Quanto mais vida melhor' (Foto: Arquivo pessoal)

Esqueça a imagem da Morte com capa e capuz pretos, rosto cadavérico e foice na mão. Na novela das 19h "Quanto mais vida melhor", ela é uma mulher de cabelos longos, maquiagem e unhas feitas. A atriz, modelo e cantora transexual Marcella Maia, de 29 anos, conhecida como A Maia, personificará aquela que povoa o imaginário coletivo. Na trama de Mauro Wilson, ela será a encarregada de receber no céu os protagonistas - Vladimir Brichta, Giovanna Antonelli, Mateus Solano e Valentina Herszage - para lhes dar a seguinte notícia: todos ganharão uma segunda chance, mas, dentro de um ano, um deles vai de fato morrer. As cenas terão efeitos especiais, adicionados na pós-produção. Por isso, Marcella grava no chroma key, como mostra na foto, um clique feito por Giovanna:

- É a primeira vez que atuo no chroma. Tem sido uma vivência desafiadora. Todos são muito generosos comigo. Aprendo demais. A construção da personagem é bastante rica. Ela é uma montanha-russa. Às vezes vai para o drama e, às vezes, para um lugar mais leve. Estou tentando brincar com tudo isso. Ela é importantíssima para a novela. Apareço no começo, anunciando o que vai acontecer na vida deles, e, a partir disso, vou visitando todos.

Marcella estava morando em Lisboa quando recebeu o convite da equipe de direção. Topou na hora e se mudou para a Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ela, que fez também a série "Todxs nós", da HBO, estreou como atriz no papel de uma das amazonas do filme "Mulher-Maravilha", lançado em 2017. Na época vivendo em Londres, trabalhava como modelo e chegou a participar de um clipe da cantora americana Fergie:

- Depois disso, resolvi investir nos estudos. Fiz cursos do Sergio Penna e da Fátima Toledo aqui. E aulas em Los Angeles. Até que, em 2018, fui assistir a "O Rei da Vela" no Teatro Oficina, em São Paulo. Fiquei apaixonada. Um dia, um amigo me chamou para ver o ensaio de "Roda viva". Lá eu conheci o Zé (Celso Martinez, diretor). Ele foi seco, disse só para eu assistir na parte de cima do teatro. No segundo dia, eu, teimosa, fui já mal-intencionada, pensando: "Vou entrar nessa peça". Então, me convidaram para participar do aquecimento. Fiquei três horas fazendo. Não sabia uma música do Chico Buarque, nada. Zé disse: "Seja bem-vinda, gostei da sua entrega". Voltei para casa pulando de alegria. No terceiro dia, eu voltei lá e ele tinha desistido. Senti vontade de chorar. Mas o "não" eu já tinha, então, falei: "Não, Zé, o mundo já me tirou muita coisa. Posso não estrear, mas vou ficar aqui até o fim".

A argumentação deu certo: Marcella conseguiu entrar para o elenco do espetáculo. Foi um grande êxito depois de uma caminha árdua que começou em Minas Gerais, onde ela nasceu, e foi repleta de decepções desde muito cedo.

- Minha mãe me abandonou quando eu tinha 4 anos. Fui morar com meus tios. Fui abusada constantemente dos 5 aos 7. Isso me trouxe conflitos de sexualidade. Era muita confusão na minha cabeça. Eu pensava: "Sou mulher, mas não posso ser mulher na sociedade, preciso performar como esse menino". Até que minha mãe voltou para me buscar quando eu tinha 7 anos. Depois soube que ela fugia dos abusos do meu pai, que era muito violento. Então, fomos morar em Brasília - relembra.

 

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Aos 12, Marcella começou a vender doces em sinais de trânsito para ajudar em casa. Com 15 anos, acabou descoberta pelo olheiro André Monjardim e conseguiu emprego numa agência de modelos:

- Comecei com produção de moda. Organizei muitos desfiles. Eu morava num pensionato. Foi um período muito difícil da minha vida. Com 18 anos, voltei para Juiz de Fora e passei a fazer show de drag queen.

Nessa fase, ela diz ter recebido a proposta de um homem para trabalhar como hostess em pubs londrinos e fazer apresentações por lá:

- Eu, ingênua que sou, fui. Lá pegaram meu passaporte. Passei três meses nisso. Ficava numa vitrine que nem carne, era obrigada a me prostituir. Como não falava inglês, não conseguia nem ir à delegacia. Dói muito só de lembrar. Um dia, me acordaram com água fria na cara, 3h da manhã, e falaram: "Seu voo está saindo para Brasília. Você vai entrar no avião e não vai falar nada. Porque, se ficar com ficha na polícia, não vai entrar aqui por cinco anos". Voltei só com a roupa do corpo.

Logo depois, conheceu o suíço Mark, que se tornaria seu marido:

- Foi o grande amor da minha vida. Eu seria muito amargurada se o Mark não tivesse aparecido. Ficamos juntos por uns dois anos. Mas, quando decidi operar (redesignação sexual), ele não ficou do meu lado. Até hoje fica essa lacuna para mim: "Por que ele não me apoiou se a gente se amava?".

Marcella, então, saiu do relacionamento e correu atrás do sonho da cirurgia, que se realizou, segundo ela, na Tailândia, quando tinha 21 anos.

- Eu ralei para caramba e também tinha a grana do Mark, porque ele não me deixou desamparada. Eu já troquei prótese de seio duas vezes, fiz a redesignação, lixei a cara, coloquei botox... O mais doloroso de tudo foi a feminização facial. A cirurgia estética é para a pessoa se sentir bem consigo mesma. Eu me cuido muito, sou vaidosa. Então, fiquei bem feliz. Investi um Mini Cooper, uma Ferrari e uma Lamborghini nesse corpo - brinca ela, que não sabe ao certo quanto já gastou com procedimentos.

A atriz também alterou o registro civil. Escolheu o primeiro nome em homenagem ao médico que fez seu complicado parto - ela conta que nasceu prematura, sem oxigenação adequada. Já o sobrenome vem da deusa hindu que representa a ilusão:

- Ninguém sabia que eu era uma mulher trans. Não achava necessário falar a partir de quando o juiz decretou que meu gênero é feminino e meu nome, Marcella. Acho que é uma coisa íntima. Não saio perguntando o que as pessoas têm no meio das pernas. Tenho que provar que sou suficiente sem dizer que sou trans. Mas, há cinco anos, saí do armário. Falei publicamente pela primeira vez. Hoje em dia falo com orgulho. Por muito tempo tive vergonha de ser uma mulher trans. É uma construção até você se aceitar, pois a sociedade não aceita, não dá emprego. Quando a gente está num lugar confortável, se aceitar é muito fácil. Vi que era necessário falar da minha história para outras mulheres trans que saíram da periferia e não têm referência na TV e em filmes. A única que eu tinha era a Roberta Close. Eu não fui educada para ser mulher. Aprendi sozinha. Minha vivência nunca vai ser de uma mulher cisgênero, mas é importante reconhecer o corpo enquanto mulher trans e abrir portas para outras que virão.

 

Veja fotos de Marcella Maia:

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