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“Soturna”, de Thati Dias

Uma jornada íntima e poética pelas camadas da mente e da emoção

Publicado em 18/06/2024

Atualizado às 17:10 de 18/06/2024

Por Jorge LZ

Nascida em Macaé, no estado do Rio de Janeiro, a cantora, compositora e instrumentista Thati Dias acaba de lançar Soturna, seu primeiro álbum solo. 

Tomei conhecimento de seu trabalho em 2021, quando ela lançou, ao lado de Diogo Spadaro, o single “Na roseira”. Buscando mais informações, cheguei ao Abufela!, grupo que formou com Diogo e Cau Barros e que fazia uma mistura interessante de vertentes afrobrasileiras e rock, com doses maciças de psicodelia. O trio lançou, em 2018, o EP Abufelados e, em 2020, o álbum Lá vem o medo.

Afinada, com uma voz suave, porém firme, e apresentando divisões ousadas, ao mesmo tempo que mostrava composições com um forte conteúdo poético, fugindo do mais do mesmo que tomou conta da música pop brasileira, Thati Dias pareceu-me uma artista que merecia bastante atenção.

Retrato em preto e branco da artista Thati Dias. Ela é uma mulher negra, de cabelos crespos encaracolados.
Thati Dias (imagem: Deborah Sena)

Gestado no período da pandemia de covid-19, Soturna se apresenta conceitualmente “como uma jornada íntima através das camadas da mente e da emoção” (como consta no release). Os temas refletem um momento de incertezas, que gerou angústias e depressões, e expandem-se para outras questões que já existiam antes, mas que se escancararam naquele período, como o processo de falência de uma sociedade que ainda insiste em ser misógina, preconceituosa e violenta. Thati faz sua abordagem com um olhar crítico e refinado, dando ao assunto certa concretude poética que nos empurra para uma reflexão e torna Soturna uma obra de arte com acento político e social.

O álbum é composto de 11 faixas, sendo sete de sua autoria: “Poesia n°1”, “Cidade, cimento e tédio” (em parceria com Luiz Bento e Pretidão), “Silente oração”, “Anelis Assumpção”, “Poesia n° 2”, “Verso branco” e a faixa-título “Soturna”. As restantes foram extremamente bem escolhidas, fortalecendo o conceito. São elas: “Grotão da Penha”, de Luiz Bento e Luiz Oliveira; “Um labirinto em cada pé”, de Guilherme Held e Clima; “Arrebol”, de Diogo Spadaro e Luiz Bento; e “Pequena África”, de André Severo e Diogo Spadaro, composta especialmente para Soturna.

Capa do disco Soturna, de Thati Dias. Na imagem há um retrato da artista, com uma iamgem difusa, dando a impressão de movimento. No topo da imagem, à esquerda há o nome do álbum em letras pretas.
Capa do álbum Soturna, de Thati Dias (imagem: divulgação)

Musicalmente, o álbum passa, entre outras coisas, por mpb, samba, jazz, R&B, soul e trip-hop, em ótimas canções com arranjos ousados que receberam um tratamento cuidadoso. É nítido que houve uma pesquisa de timbres para a construção da atmosfera geral do álbum, assim como das canções individualmente, o que demonstra a total sintonia dos produtores Diogo Spadaro e Luiz Bento com as ideias de Thati. Diogo e Luiz também foram responsáveis pela maior parte da instrumentação, combinando bem elementos orgânicos e eletrônicos. Participaram, como instrumentistas convidados, Denisson Caminha, Léo de Mercês, Maurício Libardi, Luiz Felipe Oliveira e Ricardo Lyra. E, completando as participações, tivemos as vozes de Suntizil, Juliane Gamboa, Pretidão e André Severo. Também foram fundamentais para o resultado da ótima sonoridade Felipe Nareba, responsável pela mixagem, e Guilherme Chiappetta, que assinou a masterização.

Em um álbum tão coeso, no qual tudo faz sentido e está conectado, é importante que a escuta seja feita do início ao fim, mas, ainda assim, é possível destacar alguns momentos. Um deles é “Um labirinto em cada pé”, gravada pela primeira vez por Romulo Fróes, em 2011, dando título ao seu quarto álbum. Em sua versão, Romulo, mostra um samba suave e ao mesmo tempo cheio de arestas, identificado com as linhas angulosas da metrópole paulistana, algo típico do seu espetacular fazer musical. Thati, por sua vez, leva a música para um outro lugar, aparando arestas, privilegiando o balanço, transformando os ângulos em curvas, mais de acordo com o Rio de Janeiro e com o seu trabalho. Outro exemplo: em “Anelis Assumpção”, Thati faz uma bela homenagem à sensacional artista paulistana, entrando em seu universo e transitando com enorme desenvoltura, mostrando o quanto é possível absorver influências e, ainda assim, manter firme sua personalidade. Já em “Soturna”, a mais poderosa do álbum, que traz um texto inspirado no desastre ambiental ocorrido no Nordeste em 2019, o instrumental é um forte aliado do tratamento poético dado por Thati ao assunto, criando uma atmosfera sombria com toques de trip-hop e jazz e aprofundando a estranheza da melodia, que é repleta de dissonâncias.

Retrato em preto e branco da artista Thati Dias. Ela é uma mulher negra, de cabelos crespos encaracolados.
Thati Dias (imagem: Deborah Sena)

Soturna é um álbum precioso e revela o amadurecimento artístico de Thati Dias, que deixa de ser promessa e transforma-se em realidade, ocupando um dos lugares de destaque no que é produzido de melhor no cenário musical brasileiro contemporâneo.

Coluna escrita por:

 Jorge LZ

Jorge LZ

Carioca, radialista, curador, pesquisador musical, produtor cultural e DJ. Produz e apresenta o programa semanal Na ponta da agulha, na Rádio Graviola, é curador do Festival levada e integra o Radialivres, coletivo de radialistas do Brasil. Foi idealizador e curador do Festival BRio e do projeto Verão musical no Castelinho, e produziu e apresentou os programas Geleia moderna, Radar e Compacto, na Rádio Roquette-Pinto.

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