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O jantar da identidade racial: Appiah, racismo e hiperfilosofação

Na coluna “A caminho”, Marcos Carvalho Lopes reflete criticamente sobre o filósofo Kwame Anthony Appiah

Publicado em 14/06/2024

Atualizado às 15:43 de 11/07/2024

Por Marcos Carvalho Lopes

O filme Adivinhe quem vem para o jantar (Guess who’s coming to dinner, 1967), de Stanley Kramer, traz uma releitura da história shakesperariana de Romeu e Julieta ambientada no contexto do conflito racial em torno da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos: a jovem branca Joey Drayton (Katharine Houghton) apresenta aos seus pais um homem por quem se apaixonou, o brilhante médico negro John Prentice (Sidney Potier). A família liberal branca, Matt Drayton (Spancer Tracy) e Christina Drayton (Katharine Hepburn), precisa rapidamente decidir se seu discurso sobre a igualdade entre todos os homens se efetiva quando se trata de conceder a mão de sua filha para se casar com um homem negro. Isso significava aceitar uma união inter-racial que contestava as práticas segregacionistas de muitos estados norte-americanos. No longa, a palavra final fica com o discurso do patriarca branco, que aceita a união da filha e, até mesmo, avalia que, diante do amor, a benção dos pais seria desnecessária. Ora, a fala da racionalidade de Matt Drayton contrasta, por um lado, com a aceitação emocional da mãe Christina Drayton e de Tillie Prentice (Isabel Sanford) e, por outro, com a resistência e negativa do patriarca negro (Roy Glenn), que, sendo um trabalhador aposentado (e, portanto, alguém que lutou para dar condições de formação para o filho), não considerava aquela união aceitável. O diálogo entre o doutor John Prentice e seu pai coloca na boca de Sidney Potier uma diferenciação abissal: enquanto o pai se via como um homem de cor, o filho se afirmava simplesmente como um homem, ou seja, não se via como limitado pelo racismo.

Uma das inspirações para o filme foi o casamento do ganês Joseph Emmanuel Appiah (conhecido como Joe Appiah), advogado e político, filho de uma família da nobreza tradicional asante, que lutou pela independência de seu país e foi embaixador e presidente da Ordem dos Advogados de Gana, com a nobre inglesa Peggy Cripps Appiah, escritora infantil, estudiosa da arte e folclorista. Esse casamento, ocorrido em 1953, mobilizou a imprensa e teve grande repercussão por ser um dos primeiros casamentos inter-raciais da Grã-Bretanha, confrontando práticas políticas mantidas pelo império britânico, como o apartheid na África do Sul. O primogênito da união desse casal nasceu em Londres em 8 de maio de 1954, um sábado. Por isso, seguindo a tradição asante, teve o seu primeiro nome “Kwame”. Seu nome completo é Kwame Anthony Akroma-Ampim Kusi Appiah, um dos mais importantes filósofos contemporâneos.
    
A principal pergunta que move as reflexões de Kwame Anthony Appiah é justamente sobre a identidade, algo que reflete sua origem híbrida, multiétnica, de alguém que cresceu em Kumasi, em Gana, mas com muitos períodos na Inglaterra. Se a tradição ocidental é patrilinear e pediria que ele tivesse uma aproximação maior da família do pai ganês, a cultura asante é matrilinear e apontava para uma primazia da família da mãe em sua criação. Então, muitas dinâmicas sociais e culturais que seriam conflituosas quando vistas de modo externo, faziam parte do seu cotidiano como coisas normais. No entanto, existiam conflitos, a exemplo do ocorrido quando do enterro de seu pai: para cumprir a vontade de Joe Appiah de ter um enterro cristão, o jovem filósofo teve que enfrentar a oposição de sua tia, responsável pela religião matrilinear, que reclamava também o corpo. O pai sabia que sua escolha deixava uma dura missão para o filho e representava uma ruptura simbólica importante em relação às tradições matrilineares de sua comunidade, mas considerava mais sagrado o seu direito de decidir. 

No livro Na casa de meu pai (1993), o filósofo ganes-britânico, naturalizado norte-americano, descreveu o processo de luta para cumprir a vontade do pai como prefácio e epílogo de uma série de ensaios sobre a filosofia africana. Nesses ensaios, tratou com ceticismo diversos conceitos que mobilizaram o ideal descolonizador da geração de seu pai como a própria ideia de “raça”, de África, de nativismo etc. Appiah queria se afastar de quaisquer posições essencialistas, defendendo que o pan-africanismo precisava se articular com outros tipos de discurso, que reconhecessem a historicidade e diversidade dos povos que vivem no continente africano. Logo no primeiro capítulo, Appiah ataca a noção de raça e como autores pan-africanistas, a exemplo de William E. B. Du Bois, falharam “em olhar para o Sol”, ou seja, apesar de reconhecerem que o termo não tinha nenhum referencial válido (já que não existem raças biologicamente), continuaram utilizando tal termo e, dessa maneira, teriam falhado no combate ao essencialismo. Os pan-africanistas teriam falhado em se pensar como homens e continuavam presos na armadilha do racismo, descrevendo-se de modo racializado.

A ilustração traz dois honens apagando a palavra raça escrita em um muro. A palavra está pintada em vermelho.
imagem: Gustavo Inafuku/Girafa Não Fala


Quando escreveu esse ensaio, a perspectiva de Appiah, como a de seu contemporâneo inglês Paul Gilroy, era de que eliminar o uso do conceito de raça representava um caminho válido para resolver problemas como o da África do Sul na luta contra o apartheid. Ambos conectam raça e nacionalismo de um jeito em que formas de essencialismo levariam inevitavelmente a práticas autoritárias da biopolítica moderna, encenadas pelo fascismo.

A forma como Appiah leu a contribuição de Du Bois, como se ele fosse um deflacionista em relação ao conceito de raça que teria falhado em sua proposta, é bastante equivocada. O que o grande pensador do pan-africanismo tentou durante toda sua trajetória foi dar uma articulação sócio-histórica ao conceito de raça, de tal modo que fosse possível, ao mesmo tempo, combater o racismo e seus efeitos perversos, além de articular uma ótica pan-africanista viável. A leitura equivocada de Appiah em Na casa de meu pai tem como consequência o erro por ele posteriormente reconhecido de não conceber nenhuma perspectiva positiva para a identidade racial e, assim, acreditar que o nominalismo metodológico seria suficiente para resolver a questão: paramos de falar de raça e o racismo desaparece.

Appiah, nesse caso, segue com uma postura comum a muitos autores africanos, que resistem a serem racializados quando estão em países marcados pelo processo de escravidão: eles não eram negros na África, por que aceitariam atuar de acordo com esse rótulo? A posição de Appiah é ainda mais complicada, porque sendo filho de um casamento interracial, muitas vezes não tem a imposição incontestável de um rótulo: por vezes, é visto como um brasileiro, alguém do norte da África, um hindu etc. Appiah não quer se prender ou ser guetificado por qualquer rótulo que lhe atribua uma essência. Por exemplo, ele é um homem gay, casado há mais de três décadas; poucas vezes, porém, descreve em seus textos esse “lugar de fala”.

A solução de Appiah está em considerar que qualquer identidade deve ser vista de um modo fraturado e contingente, como dimensões parciais de um jogo complexo, de tal modo que, mesmo na luta contra o racismo, não podemos aceitar que as identidades raciais nos levem para novas formas de tirania.

A posição de Appiah não é ingênua em termos filosóficos, pelo contrário, é excessivamente articulada, tanto que perde efeitos práticos, mas ganha em hiperfilosofação (overphilosophication). Minha tendência é concordar com seus alertas em relação aos perigos da reificação em identidades essencializadas e da necessidade de que exista espaço para a autocriação individual. Mas a solução deflacionista, de parar de falar em “raça” como modo de combater o “racismo”, é uma tentativa de tapar o sol com a peneira. Não funciona para além de um conforto autoindulgente. A afirmação da raça como um conceito seja em termos sócio-políticos (que é a posição que defendo, na esteira de Joel Rufino dos Santos) ou culturais (mais comum no Brasil, por pressupor o compartilhamento de práticas culturais) pode ser justificada tanto no combate aos efeitos do racismo, na reconstrução de identidades, como na preservação e reconhecimento de práticas culturais.

O argumento deflacionista de Appiah parte da pressuposição de que a ética individual e liberal tem primazia sobre a política. No livro O código de honra (2012), o filósofo descreve a importância da atuação de alguns indivíduos que se voltaram contra seus próprios interesses em nome de um ideal mais amplo (honra) nas lutas que geraram revoluções morais (como a do fim da escravidão). No cosmopolita mundo onde vive, Appiah frequenta os jantares nobres em que os interesses filantrópicos e a atuação honrada de pessoas “bem-sucedidas” são a chave para solucionar or problemas do mundo. Para os que não são e nunca serão convidados, os que não têm comida para o jantar, resta, segundo Cazuza, “pagar sem ver”.  

 

Coluna escrita por:

Marcos Carvalho Lopes

Marcos Carvalho Lopes

Doutor em filosofia, professor universitário e host do podcast Filosofia Pop
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