Cerrado

Como o desmatamento do Cerrado agrava o superaquecimento global e a seca

Savana mais biodiversa do mundo perdeu 19,8% da vegetação nativa entre 1985 e 2020, mesmo período em que áreas de agricultura aumentaram 5,6 vezes no bioma

Fogo no Cerrado - crédito Illuminati Filmes - IPAM Woodwell

Fogo no Cerrado – crédito Illuminati Filmes – IPAM Woodwell

Se você olhar o mapa dos biomas brasileiros irá notar, bem no centro, uma enorme mancha que abrange todo o Planalto Central, incluindo os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Distrito Federal, Maranhão, Piauí, Rondônia, São Paulo e Paraná.

É o segundo maior bioma da América do Sul, com cerca de 204 milhões de hectares, ou 24% do território brasileiro. Equivale ao tamanho da Espanha, França, Alemanha, Itália e Reino Unido juntos.

É possível ter uma noção do tamanho e da posição estratégica do Cerrado ao repararmos que ele se conecta com Amazônia, Caatinga, Pantanal e Mata Atlântica – outros biomas com os quais o Cerrado compartilha água e biodiversidade.

A mais rica savana do mundo em biodiversidade registra diversas tipologias vegetais de riquíssima flora com mais de 10 mil espécies de plantas. Até agora, foram identificadas 837 espécies de aves, 67 gêneros de mamíferos com 161 espécies, sendo que 19 delas são endêmicas, 150 espécies de anfíbios e 120 espécies de répteis.

Cerrado: savana mais biodiversa do mundo ameaçada

Por tais características, o Cerrado é considerado um dos hotspots de biodiversidade global – locais no planeta em que há expressiva diversidade de vida, embora ameaçados pela ação humana, e que deveriam ter prioridade nas políticas de conservação do meio ambiente.

Se até a década de 1950, o Cerrado manteve-se praticamente inalterado, a partir da década seguinte o cenário começou a mudar. Com o deslocamento da capital federal – do Rio de Janeiro para Brasília –, a abertura de uma nova rede rodoviária em direção ao centro do país e os incentivos do governo, a cobertura vegetal natural passou a dar lugar à pecuária e à agricultura intensiva.

Entre 1985 e 2021, o Cerrado perdeu uma área maior que o estado do Piauí em vegetação nativa: foram 26,6 milhões de hectares desmatados, segundo o MapBiomas (Mapeamento Anual de Uso e Cobertura do Solo do Brasil). Uma perda líquida de 20,9% que indica a diferença entre a perda de vegetação original e o ganho de vegetação recuperada. O IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) atua na coordenação científica do MapBiomas Brasil.

A área de agricultura no bioma aumentou 6,2 vezes no mesmo período, indica o estudo. No geral, as áreas ocupadas pela agropecuária somam 45,4% do Cerrado, sendo que, dentro disso, o principal uso é das pastagens (52%), com agricultura (28%) na sequência. No total, o Cerrado tem 53,1% de vegetação nativa.

Fronteira agrícola

Na esteira do desenvolvimento econômico que prevalece no Cerrado, pastagem e agricultura em grande escala se expandiram rapidamente nas últimas quatro décadas no bioma, tornando-o uma fronteira agrícola para exportação de commodities. O Cerrado concentra cerca de 36% de todo o rebanho de gado e mais de 63% de todo o grão brasileiro, segundo dados do Ministério da Agricultura e Pecuária e Abastecimento.

O custo ambiental da conversão da vegetação nativa por campos agrícolas é que mais da metade da cobertura original do Cerrado foi desmatada e 23,7% virou pasto nas últimas décadas, conforme o MapBiomas. Isso traz consequências para o clima, o equilíbrio hídrico, a biodiversidade e os povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares que historicamente convivem com o bioma de forma interdependente.

Em 2022, o desmatamento do Cerrado foi quase 20% maior do que o registrado em 2021, segundo o SAD Cerrado. Foram 815.532 hectares desmatados, contra 691.296 no ano anterior. O SAD Cerrado (Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado) é desenvolvido pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) em parceria com a rede MapBiomas e com o LAPIG (Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento) da UFG (Universidade Federal de Goiás).

O que preocupa é que o desmatamento no Cerrado hoje concentra-se no Norte de Goiás, Mato Grosso e na região do Matopiba – oficialmente delimitada em 2015 e que abrange 337 municípios dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. É o território do Cerrado onde a fronteira agrícola avança mais veloz, puxada pela soja, principal produto de exportação do Brasil.

Pouco mais de 10% da produção nacional do grão parte dali para o exterior. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento estima que tanto a produção de grãos como a área plantada dobrarão nessa região em um período de dez anos.

É no Matopiba também que estão os maiores remanescentes de vegetação nativa do Cerrado e importantes mananciais hídricos, indicando tensões entre os interesses do agronegócio exportador e do restante da sociedade, sobretudo povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares que habitam historicamente a região.

Além de conflitos pela terra, essas populações lutam pela visibilização diante do apagão de dados oficiais sobre suas existências e especificidades. Um levantamento inicial realizado pelo projeto Tô no Mapa em partes do Cerrado na região do Matopiba identificou 3,5 vezes mais povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares do que consta nos órgãos competentes.

Desse estudo inicial, realizado pelo IPAM e pelo ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza) com apoio técnico da Rede Cerrado, as organizações desenvolveram o aplicativo Tô no Mapa para automapeamento de territórios tradicionais, somando-se o Instituto Cerrados como parceiro da iniciativa.

Fonte de emissões

Devido à sua extensa área, à crescente tendência da expansão agrícola e à baixa quantidade de áreas protegidas – 12% do bioma está em Unidades de Conservação, segundo o MapBiomas –, o Cerrado aparece como a segunda maior fonte de emissões de gases do efeito estufa no setor de mudança do uso do solo no Brasil, atrás apenas da Amazônia. Isso significa que quanto mais se derruba a vegetação do Cerrado para produzir soja e carne, mais se agrava a situação climática global.

Além da parte visível das plantas, o Cerrado abriga uma enorme quantidade de biomassa em forma de raízes, chegando a ser considerado uma floresta de ponta-cabeça, tamanho o volume de material orgânico no subsolo. Uma vez suprimida a vegetação, as plantas deixam de sequestrar carbono da atmosfera e parte do carbono estocado nas raízes também volta para atmosfera.

O desmatamento e suas queimadas associadas no bioma entre 1990 e 2021, causaram a emissão total de 39 bilhões de toneladas de CO2 equivalentes, que provocam o efeito estufa – só em 2021 foram 1,14 bilhões de toneladas relacionados a desmatamento, o que equivale a 97% do total de emissões por mudança do uso da terra no Brasil. Os dados são baseados no SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa).

Some-se a isso, o aumento da frequência de incêndios provocados no Cerrado com o objetivo de “limpar” a área para atividades agrícolas, e a contribuição do bioma para agravar a crise climática é altíssima. Pesquisadores no SEEG alertam que grandes volumes de vegetação nativa do Cerrado estão queimando com mais facilidade.

O aumento indica não só uma mudança no regime natural de fogo da região, mas também “a necessidade de incluir incêndios na conta das emissões brasileiras dos gases que causam o aquecimento global”, afirma Ane Alencar, diretora de Ciência no IPAM e coautora. Tal medida tornará ainda mais evidente o papel das mudanças do uso do solo no Cerrado para um problema que aflige toda a humanidade.

Cerrado-água

Uma das principais características do Cerrado é o fato de o bioma concentrar uma quantidade expressiva de nascentes de rios e reservas subterrâneas, a ponto de ser chamado pelos especialistas de caixa d’água ou berço das águas do Brasil.

É que, além de abrigar nascentes de 8 das 12 principais bacias hidrográficas brasileiras, o Cerrado ocupa terras com elevadas altitudes, distribuindo água em direção aos demais biomas, como a Caatinga e o Pantanal – cuja planície inundável depende da água que nasce nos platôs do Cerrado, numa relação de intrínseca dependência. A Bacia Amazônica, embora em menor escala, também se beneficia das águas provenientes do Cerrado.

Três grandes aquíferos subterrâneos: Bambuí, Urucuia e Guarani também dependem da recarga das águas que nascem no Cerrado. Há milhões de anos, os aquíferos são reabastecidos pela chuva que se infiltra no solo, formando lagoas conhecidas como águas emendadas, que escoam por lençóis freáticos em diferentes direções.

Os aquíferos abastecidos com as águas do Cerrado são responsáveis pela alimentação de grandes rios e de represas nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Tocantins, Piauí e Bahia, além do Distrito Federal. Até mesmo o rio Amazonas recebe uma contribuição dos rios que nascem no centro do Brasil, como Teles Pires, Xingu, Tapajós, Madeira, Araguaia e Tocantins.

Com a tendência de mudanças no regime hídrico – mais calor e menos chuvas –, os lençóis freáticos e rios poderão sofrer, e a escassez hídrica poderá se instalar no berço das águas do Brasil.