A SOLUÇÃO HIPERDIVERSA

A solução hiperdiversa

Milhares de novas espécies são descritas pela ciência todos os anos, a maioria delas em regiões tropicais. Apesar de parecer inesgotável, a biodiversidade é frágil, e o futuro da humanidade depende de conhecê-la e protegê-la

Texto: Ronaldo Ribeiro
Reportagem: Alan Azevedo e Letícia Klein 
Fotos: João Marcos Rosa 

Nos diversos biomas do Brasil, cada ambiente convida a uma experiência peculiar. Uma paisagem natural intocada não é apenas um reservatório precioso de biodiversidade, ela também pode ser uma festa para os sentidos. Na superlativa Floresta Amazônica, os sons irradiam de todos os níveis, e a vida é abundante, desde o tapete de fungos e matéria orgânica no solo até o topo das árvores mais altas. Seus vastos rios se estendem pelo horizonte infinito – tartarugas, botos e milhares de espécies de peixes e pequenos insetos vivem em seus habitats alagados, como igapós e várzeas. Essa complexa teia de vida é como um anfiteatro no qual animais e plantas criam todos os tipos de pressões evolutivas e reagem a elas.

Na Mata Atlântica, bromélias, orquídeas e samambaias gotejam da floresta úmida repleta de cachoeiras, conhecida pelo alto endemismo de fauna e flora. Ocupando um vasto território entre as duas florestas, o Cerrado é a savana mais rica do planeta, onde o azul único do céu adorna caminhos naturais de palmeiras de buriti – imortalizado nos livros de Guimarães Rosa, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos – ou campos e árvores retorcidas são um palco atraente para animais icônicos como emas, seriemas e lobos-guarás. E a Caatinga, único bioma exclusivamente brasileiro, que surpreende a ciência a cada dia pela capacidade de esconder formas de vida em suas matas secas ou arbustos que recobrem afloramentos rochosos, onde a seca pode durar quase o ano todo na região do Raso da Catarina.

Os biomas brasileiros, em suma, são mostras exuberantes da biodiversidade do planeta. Quando combinados com outros ecossistemas tropicais ao redor do globo, eles abrigam a maioria esmagadora da biodiversidade da Terra.

Mapa global da biosfera

Mas qual é o segredo que leva à profusão de formas de vida nos trópicos?

A biodiversidade aumenta à medida que se move dos pólos em direção ao equador – um efeito conhecido como gradiente de diversidade latitudinal. O calor e a umidade estimulam o desenvolvimento de inúmeras formas de vida: a zona tropical ocupa 40% da superfície do planeta e se estende por florestas (a Amazônia é a maior de todas), savanas (como o Cerrado brasileiro), corpos de água doce (que recebem metade da chuva do mundo) e recifes de coral de águas rasas, explodindo em formas de vida coloridas. Notavelmente, esses ambientes são o lar, pelo menos sazonalmente, de mais de 90% de todas as aves terrestres, 85% das espécies de insetos e mais de 75% dos anfíbios, mamíferos terrestres, peixes de água doce, plantas com flores (conhecidas como angiospermas) e peixes marinhos. As latitudes tropicais também abrigam quase todos os corais zooxantelados – corais que possuem um tipo de alga dentro de seus tecidos. Além disso, um número desproporcional de espécies é exclusivo dos trópicos; o endemismo em aves terrestres é seis vezes maior do que nas regiões temperadas, por exemplo.

Entre 15 mil e 19 mil espécies são reveladas pela ciência todos os anos, a maioria nos trópicos. “Embora, por exemplo, 500 aranhas sejam descritas a cada ano, essa é apenas uma pequena fração das estimadas 150 mil espécies tropicais”, diz Jos Barlow, da Universidade de Lavras, no Brasil, e da Universidade de Lancaster, na Inglaterra, com mais de duas décadas de pesquisas na Amazônia brasileira e coordenador do estudo “O futuro dos ecossistemas tropicais hiperdiversos” (The future of hyperdiverse tropical ecosystems), publicado em 2018 na Nature, uma das revistas científicas mais importantes do mundo.

Neste trabalho, um time internacional de pesquisadores associados à Rede Amazônia Sustentável (RAS) e colaboradores analisa a porção mais biodiversa do mundo e faz um levantamento dos efeitos e ameaças das ações antrópicas e climáticas no ambiente tropical. Ao mesmo tempo, aponta a necessidade de estratégias coordenadas entre os diversos atores sociais e os governos na busca por políticas e projetos que evitem o colapso desse patrimônio natural. No Brasil, “o clima mais quente e as mudanças nos padrões de chuvas já se manifestam em eventos como a desertificação da Caatinga e as secas que facilitam os incêndios na Floresta Amazônica, e podem culminar na extinção de incontáveis espécies dos trópicos”, analisa Barlow.

O Brasil, sozinho, corresponde a 17% de todo o território terrestre dos trópicos, uma área equivalente à da Oceania. E abriga uma riqueza colossal: a diversidade registrada aqui é mais abundante do que em continentes inteiros. Mais de 20% dos peixes de água doce do planeta (3,6 mil espécies) e 17% de todas as aves (1,9 mil espécies) são encontrados no país. Somados, os biomas brasileiros – Mata Atlântica, Floresta Amazônica, Cerrado, Caatinga, Pantanal, Campos do Sul (ou Pampa) e Costeiro-Marinho – resguardam ainda 12% da água doce superficial do planeta. Além disso, nossos vastos biomas tropicais são repositórios naturais de carbono, dando ao país um papel fundamental na estabilidade do clima global.

Contribuição do Brasil para a biodiversidade global

A riqueza da Amazônia

A biomassa florestal da Amazônia, estima-se, retém hoje 100 bilhões de toneladas de carbono, o equivalente a mais de dez anos da emissão global oriunda da queima de combustíveis fósseis.

Selvagem em suas profundezas, a Floresta Amazônica é um patrimônio natural tão vasto que, séculos depois das primeiras expedições naturalistas, ainda guarda uma infinidade de segredos para a ciência. O registro de suas formas de vida apenas começou.

“Quando os cientistas descobrem uma espécie nova, abrem portas para um mundo de outros dados relacionados”, diz Barlow. Por exemplo, houve 20 novas espécies de primatas da Amazônia descritas nas duas últimas décadas, incluindo o Parecis titi, (Plecturocebus parecis) em 2016 na Chapada dos Parecis, um planalto no sul de Rondônia. Essa é a fascinante complexidade da evolução e a interconexão entre os seres vivos que os cientistas nunca se cansam de investigar. Esta é a espinha dorsal das ciências biológicas.

“Até mesmo lugares próximos a comunidades humanas escondem formas de vida ainda desconhecidas, daí a importância dos estudos de campo”, conta Filipe França, pesquisador sênior da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, e membro da RAS. Em 2019, pesquisadores identificaram uma nova espécie de sagui em uma área há décadas alterada pela intensa presença humana no sudeste do Pará, às margens do Rio Tapajós, dentro do chamado “arco do desmatamento”. Batizado de Mico munduruku, em referência ao povo indígena Munduruku, ele se distingue dos demais pequenos primatas da Amazônia por ostentar uma cauda branca. Projetos de novas usinas hidrelétricas limitam ainda mais o restrito habitat da espécie observado até agora.

IMENSIDÃO HIPERDIVERSA

© João Marcos Rosa
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Os dois maiores biomas nacionais, Amazônia e Cerrado, cobrem uma área de 7 milhões de quilômetros quadrados. A maior floresta tropical do mundo abriga animais de grande porte, como a águia-real, e biomassa com capacidade estimada de reter 100 bilhões de toneladas de carbono. O Cerrado – lar de espécies icônicas como o lobo-guará e o veado-campeiro – também contém cerca de 10 mil espécies de plantas, das quais mais de 40% são endêmicas. O Pantanal, apesar de ser o menor bioma do país, é reconhecido pela Unesco como Reserva da Biosfera e resguarda 2 mil espécies de plantas.

Novas descrições em grupos de espécies menos conhecidos são muito mais frequentes. “É essencial lembrar que muitas vezes as ‘novas’ espécies já são conhecidas pelas populações locais – são simplesmente novas para os cientistas”, enfatiza Erika Berenguer, da RAS, pesquisadora sênior associada às universidades britânicas de Lancaster e Oxford. Em 2018, foi registrada na Amazônia uma nova família de peixes, a Tarumaniidae, cujos espécimes têm o hábito de ocultar-se em lodaçais fundos cheios de folhagem. Foi a primeira descrição de uma família de peixes sul-americanos em 40 anos. E o que é mais surpreendente: no bioma que abriga o mais extenso e complexo sistema de rios da Terra, os exemplares da única espécie da família, tarumania (Tarumania walkerae), foram coletados nas margens do Igarapé Tarumã-Mirim, na margem esquerda do Rio Negro, a poucos quilômetros de Manaus, uma das maiores densidades populacionais da Amazônia.

Mas a riqueza da Amazônia não se restringe às espécies silvestres. Uma visão menos baseada na premissa dos colonizadores europeus, ao longo dos anos, ganhou consistência científica a partir de estudos que levaram ao entendimento de que a Floresta Tropical não é simplesmente um Éden virgem e intocado, mas sim “uma floresta que também foi moldada pela humanidade” ao longo de milênios. Em outras palavras, as populações tradicionais da Amazônia alteraram a floresta em alguns lugares, seja pela domesticação de espécies de plantas, seja por interações diárias com os diversos ecossistemas ao seu redor.

A cultura dos povos indígenas expressa de muitas formas que a floresta não é um organismo estático nem uma mera fonte de recursos. Somos uma extensão da natureza, da própria terra – a quem pertencemos e de quem somos apenas parte, em vez de querermos possuir. As pretensões de possuí-la são equivocadas. Para os Yanomami, habitam a mata uma profusão de animais na forma de espíritos ancestrais, os xapiri. Servindo ora à caça ora à proteção, estão incorporados em antas, veados, macacos, araras, suçuaranas, onças-pintadas e outros. “Graças a esses xapiri, o vento e a chuva descem das alturas para espalhar-se por toda a floresta, tornando-a fresca e úmida”, relata o xamã Davi Kopenawa no livro A Queda do Céu.

“Somos habitantes da floresta. Nascemos no centro da ecologia e lá crescemos. Ouvimos sua voz desde sempre, pois é a mesma dos xapiris.”

Mapa da biodiversidade brasileira

Estendendo-se muito além dos limites físicos da floresta em si, os processos ecológicos impulsionados pela maior floresta tropical do planeta são responsáveis por manter o equilíbrio dos diferentes sistemas naturais em escala local, regional e global. Um bom exemplo são os chamados “rios voadores”, as enormes quantidades de vapor d’água liberadas pela vegetação rumo à atmosfera. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), uma árvore com 10 metros de diâmetro de copa é capaz de liberar diariamente na atmosfera 300 litros da água capturada no solo. Por ano, até 8 trilhões de toneladas de água circulam sobre a Amazônia no sistema de evapotranspiração. Essa umidade tremenda volta ao solo em forma de chuva, sobre a própria floresta ou, levada pelas correntes de ar, segue até as geleiras e nascentes da Cordilheira dos Andes.

Em outra direção, os rios voadores garantem a manutenção das chuvas e alimentam as bacias fluviais do Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, além de países vizinhos. “Estima-se que 70% das chuvas na bacia do Rio da Prata, no sul do continente, que abrange uma área de 3,2 milhões de quilômetros quadrados e é compartilhada por vários países, provenham da evaporação da Amazônia”, diz Erika Berenguer.

As chuvas garantem a produção do agronegócio brasileiro, revelando diretamente o custo positivo da natureza em equilíbrio. Na agricultura, os exemplos do valor econômico da biodiversidade são abundantes. Os insetos, através da polinização e do controle biológico, contribuem para a produção de vegetais e frutas que nos alimentam. Segundo um cálculo da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) publicado em 2018, “o valor do serviço ecossistêmico de polinização para a produção de alimentos gira em torno de 43 bilhões de reais por ano” no país.

Culturas agrícolas importantes para a economia brasileira, como a laranja e o café, são polinizadas por abelhas. Os besouros, por sua vez, fazem parte do grupo de animais mais diverso do planeta, com maior número de espécies conhecidas. “São insetos que ocupam praticamente todos os ambientes terrestres e aquáticos de água doce e trazem diversos benefícios para os ecossistemas naturais e a agricultura”, conta Filipe França. Estudos da RAS geraram evidências de que os besouros rola-bosta contribuem de forma significativa com o espalhamento de sementes na Amazônia. Ao lidar com as fezes do gado, eles são úteis para evitar a proliferação de moscas e ajudam a descompactar o solo. Uma pesquisa recente coordenada por França revelou que os besouros rola-bosta sofreram redução em diversidade e população como consequência da seca e de incêndios florestais exacerbados pelo intenso fenômeno climático El Niño dos anos de 2015 e 2016.

PAISAGENS DA DIVERSIDADE

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Ao longo da evolução, os trópicos têm sido tanto berço quanto refúgio para espécies terrestres e marinhas extratropicais. Os biomas brasileiros – com exceção dos Pampas, localizados nas regiões subtropicais – contribuem para fazer dos trópicos a região de maior biodiversidade do mundo, ainda que esse cinturão quente e úmido do mundo ocupe 40% da superfície terrestre. Guarás-vermelhos e araras-azuis embelezam os céus da zona costeira e da Caatinga, e cachoeiras e florestas exuberantes se destacam nos Pampas e na Mata Atlântica.

Um equilíbrio delicado

Vivemos um momento delicado. O século 21 escancara, a cada estação do ano, os sintomas das nossas atividades no Antropoceno, a era geológica caracterizada pelos efeitos da massiva atividade humana no planeta, acentuada de modo exponencial desde a Revolução Industrial, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial. Tais efeitos, já antevia o criador do termo, o químico holandês Paul Crutzen, serão evidentes no registro geológico mesmo depois de nossas principais invenções, como as cidades, terem virado ruínas.

O antropocentrismo radical dos dias atuais expõe negacionismos extremos da ciência e da razão, de onde surgem questões imediatistas: afinal, o que se ganha quando o patrimônio da natureza é entendido e protegido? O que um cidadão comum urbano, imerso em um cotidiano de urgências econômicas, ganha quando um animal é descrito, quando o valor farmacológico de uma planta é descoberto?

A resposta deve ser simples: o direito à vida, agora e no futuro.

Animais e plantas representam o patrimônio evolutivo da humanidade, o legado vivo das transformações do planeta desde que ele constituiu suas primeiras formas de vida, sobretudo depois da chamada Explosão Cambriana, cerca de 530 milhões de anos atrás. “As espécies são produtos da evolução, e foram se moldando às diversas mudanças, como o clima, ao longo do tempo geológico”, diz Joice Ferreira, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental e da RAS.

As gerações futuras irão depender sempre de novas tecnologias para enfrentar desafios na saúde e na alimentação, por exemplo. E as soluções estão no mundo natural, que é, acima de tudo, um enorme banco genético. “Não criamos nada ‘do zero’”, resume Alexander Lees, da RAS e da Escola de Ciência e Meio Ambiente da Universidade Metropolitana de Manchester, na Inglaterra. “A agricultura e muitas vezes a medicina dependem da nossa utilização dos imensos recursos genéticos que existem na natureza.”

“As culturas agrícolas importantes que temos hoje vieram do melhoramento genético das plantas na natureza, não a partir de sintéticos em um laboratório”, explica Joice Ferreira. “Nas mudanças do clima, esse patrimônio é importante para adaptar cultivos às novas condições. Basta pensar, por exemplo, nos genes contidos nas espécies do Cerrado que convivem com a seca há milhares de anos. E o que dizer das árvores da Amazônia, que crescem tanto mesmo em solos pobres de nutrientes? O banco genético e ecológico dos ecossistemas naturais tem um valor inestimável.”

A Zona de convergência intertropical

Os trópicos na rota do desenvolvimento

Em escalas continentais, ecossistemas em regiões tropicais no mundo inteiro têm enfrentado processos intensos de destruição nos últimos 150 anos, repetindo um padrão de perda de habitat que afligiu muitos países temperados séculos antes.

As razões são históricas, mas intensificadas pela globalização do comércio e pela explosão populacional que gera novas categorias de consumidores. “O Brasil tem na economia da floresta em pé, ou seja, na economia do conhecimento, da biodiversidade, imenso potencial para assumir relevância global”, declarou o sociólogo Ricardo Abramovay, do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, na ocasião de seu mais recente livro, Amazônia: por uma Economia do Conhecimento da Natureza.

Nessa direção, a ciência segue apontando caminhos para o manejo da riqueza biológica – ainda que, no Brasil, o corte de verbas e bolsas tenha sido crescente nos últimos anos. No campo, pesquisadores trabalham para identificar o âmbito das espécies, o tamanho de suas populações e as necessidades ambientais para a sua existência. “Depois disso, podemos entender como essas espécies vão responder aos agentes estressores que afetam os ecossistemas tropicais, como desmatamento e mudanças climáticas”, explica Cecília Gontijo Leal, pesquisadora da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz e também integrante da RAS. “A ciência é fundamental para instigar mudanças positivas e guiar políticas públicas eficientes para pessoas e para a natureza.”

Contudo, o presente insiste em repetir o passado. A posse e a concentração da terra persistem na mentalidade de um novo governo ancorado no mais bárbaro modelo de exploração colonial, favorável a projetos de agropecuária e mineração em terras indígenas e leniente com grileiros e madeireiros, ao mesmo tempo que flexibiliza leis de proteção ambiental. As queimadas e o desmatamento na Amazônia foram a patamares assustadores nos últimos dois anos, e imagens aéreas de regiões como o norte do Mato Grosso e o sul do Pará revelam com assustadora clareza a pressão a que estão submetidas muitas áreas protegidas. Não apenas no Brasil, na contramão da ciência e refratárias à ideia de conservação, linhagens políticas emergentes se apressam em resgatar uma visão antiquada da natureza, na qual ela é apenas um espaço a ser explorado em benefício imediato de uma espécie dominante, a nossa.

A expansão da frente agrícola não sustentável é o vetor central do aumento da degradação ambiental. “Os mercados globais de commodities podem levar a uma grande perda de biodiversidade, mas isso pode ser evitado se esses mesmos mercados passarem a operar com respeito ao meio ambiente e às regulamentações sociais”, acredita Toby Gardner, pesquisador do Instituto Ambiental e da RAS, e diretor da Trase, uma iniciativa de transparência das cadeias produtivas ligadas ao desmatamento, como carne, soja e óleo de palma.

Desde os anos 1990, quando o monitoramento por satélite tornou-se mais efetivo e abrangente, os índices de desmatamento globais atingiram 5 milhões de hectares por ano, em média. Com uso acentuado, novos pesticidas persistem no solo e infestam fontes e cursos d’água. A poluição plástica cresce a cada ano – os grandes rios da Ásia despejam até 2,4 milhões de toneladas por ano de dejetos plásticos nos oceanos, com efeitos terríveis para a fauna marinha e os corais. A lógica do crescimento econômico infindável e a concentração de riqueza ameaçam a biodiversidade.

Nunca antes a humanidade exerceu tamanha pressão sobre os recursos naturais. Nas próximas décadas, pontos de inflexão estarão sempre à espreita, ameaçando nossas águas, solos, biodiversidade e até a estabilidade do clima em que vivemos.

Em todos os países, governo, setor privado e sociedade civil precisam, juntos, assumir um esforço coletivo de mudanças em suas formas de viver, de gerir os recursos, de planejar o futuro. Ideias de desenvolvimento devem abandonar os números absolutos do Produto Interno Bruto e focar em modelos que permitam melhor distribuição de renda com respeito aos limites dos recursos naturais disponíveis. No entanto, “a aplicação das inovações advindas das pesquisas científicas depende da construção de uma interface sólida entre ciência e sociedade”, diz Joice Ferreira. Entre a teoria e a prática, há muitas etapas: qualificar ações e estratégias, integrar interesses diversos, promover a educação, expor cada vez mais o valor econômico dos biomas preservados e seus serviços ambientais.

Um dos caminhos essenciais à construção de novos paradigmas é o do investimento na conexão entre diferentes estudos científicos espalhados pelo Brasil e pelo mundo. “A integração das diversas pesquisas já realizadas ao longo das últimas décadas na Amazônia permitirá uma melhor compreensão sobre o grau de integridade e as consequências da degradação dos ecossistemas amazônicos, orientando a tomada de decisão e a promoção da sustentabilidade na região”, opina Joice, coordenadora do Synergize, projeto ligado à iniciativa SinBiose, do CNPq, que reúne 29 pesquisadores de 17 instituições nacionais e internacionais. “Por meio da colaboração de centenas de pesquisadores, estamos gerando uma grande base de dados ecológicos da biodiversidade amazônica”.

TRÓPICOS, BERÇO DA VIDA

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As zonas tropicais são o lar de 91% das aves terrestres conhecidas, 83% dos anfíbios, 80% dos peixes de água doce e 77% dos mamíferos terrestres, aponta o estudo “O futuro dos ecossistemas tropicais hiperdiversos”, elaborado por cientistas associados à Rede Amazônia Sustentável (RAS). O Brasil abriga um número excepcional de espécies, muitas delas icônicas (em parênteses, os biomas nos quais os registros fotográficos foram feitos): anta e arara-vermelha (Amazônia); tamanduá-bandeira e peixe dourado (Cerrado); jararaca-ilhoa e muriqui (Mata Atlântica); e onça-pintada (Pantanal). Nos ecossistemas tropicais estão a maioria das espécies reveladas pela ciência todos os anos.

A diversidade ao nosso redor

Atividades ao ar livre que promovam interação com ambientes naturais, como observação de aves, “oferecem uma oportunidade de conectar pessoas com a natureza, resultando em impactos positivos no bem-estar humano”, diz Alexander Lees. “As aves desempenham muitas funções importantes, seja como predadoras, polinizadoras, saprófagas ou dispersoras de sementes. A capacidade de voar permite que elas ofereçam tais serviços gratuitamente, e eles são incalculáveis para ajudar na restauração de ecossistemas degradados.”

No entanto, se um ecossistema perde suas características primordiais, as condições do habitat pioram drasticamente para as espécies, às vezes encurralando animais em verdadeiros nichos de sobrevivência – caso do mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia), restrito à uma área florestal fragmentada no estado do Rio de Janeiro. Para piorar, “existe uma equação difícil de ser resolvida no país: a capacidade de investimento em pesquisas básicas para inventários e levantamentos da biodiversidade é inferior à velocidade das alterações dos ecossistemas”, comenta Gustavo Martinelli, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Em outras palavras, animais e plantas correm o risco de desaparecer antes que nossos cientistas possam conhecê-los.

“A perda de espécies é preocupante”, diz Filipe França, que é vice-coordenador do projeto Synergize. “Quando elas desaparecem, se vão também os benefícios que elas representam para a natureza e para as pessoas.”

A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) já avaliou o status de conservação de mais de 134 mil espécies de animais, e tem o objetivo de chegar a 160 mil. Os pesquisadores da IUCN consideram que mais de 28 mil espécies correm risco de extinção – elas fazem parte da temida Lista Vermelha. Para cada um dos cinco grupos de vertebrados que já foram avaliados de forma abrangente pela IUCN e para os quais existem dados de ocorrência espacial, espécies classificadas como vulneráveis, ameaçadas ou criticamente ameaçadas são mais dependentes dos ambientes tropicais do que aquelas classificadas como pouco preocupantes.

“A combinação das influências de fatores locais, como o desmatamento, e de agentes globais, como as mudanças climáticas, vão determinar se as espécies ameaçadas irão sobreviver ou não”, aponta Alexander Lees, que já integrou o painel de colaboradores da Lista Vermelha. Como demonstrado no estudo da Nature, “mais da metade de todas as espécies dos trópicos são suscetíveis à dupla influência desses fatores”, diz ele.

Espécies ameaçadas

O fim de um animal conhecido tende a ser um episódio dramático, sobretudo quando eles ensejam emoções positivas entre as pessoas. Alguns viram símbolos. Qualquer pessoa com 40 anos se comoveu com a ararinha-azul (Cyanopsitta spixxi), a ave de penas azuladas que desapareceu do sertão da Bahia no início do século, após ser caçada à exaustão – com status de raridade, era alvo da cobiça de colecionadores endinheirados mundo afora. No começo deste ano, depois de 20 anos de trabalho da recuperação da ararinha-azul em cativeiro, criadores e ambientalistas coordenaram o envio de 52 delas para um período de quarentena na Caatinga baiana, em proporção idêntica de machos e fêmeas para que, após um período de readaptação ao ambiente, possam ter chance de se reproduzir e estabelecer uma nova população. Há esperança.

“Extinções sempre existiram e continuarão a existir. A questão preocupante é que hoje, as taxas de desaparecimento estão muito acima das do passado”, aponta Erika Berenguer. “Um mundo com menos espécies não é só mais pobre, é também menos belo. A cada espécie perdida, se vai também uma parte do encantamento que o mundo natural pode nos provocar.”

Tipos de ameaça

“Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente. Nós não fazemos falta na biodiversidade”, escreveu o pensador indígena Ailton Krenak, uma voz que soa fundamental nos dias loucos que correm, em seu mais recente livro, O Amanhã Não Está à Venda. “O mundo está agora numa suspensão. Não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos”, escreveu Krenak sobre a pandemia causada pela Covid-19.

Se a mudança vier, será no sentido de valorizar um modo de vida mais simples. Menos predatório. Um modo de vida capaz de revisar as fronteiras entre os seres humanos e as outras criaturas, e de mudar a nossa atitude diante do meio ambiente – caso contrário, o preço pode agravar as desigualdades e o sofrimento e espalhar a miséria para muitos mais. Pois é hora de nos entendermos de novo como parte de um todo, uma espécie entre milhões. É hora de proteger o patrimônio da biodiversidade. É hora de nos reconectarmos.

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