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Por Francielly Kodama, gshow — São Paulo


Racismo cosmético: especialistas comentam sobre a marca que lançou 'tinta preta' como tom de base — Foto: Reprodução/Instagram

34 milhões: este é o número de visualizações que, até o momento, um vídeo com review de maquiagem acumulou apenas no TikTok nas últimas semanas. Mas este não é um “teste de make” qualquer: no post, a influenciadora americana Golloria Groove escancara a falta de diversidade na indústria de beleza ao mostrar o rosto com a base mais escura lançada por uma marca dos Estados Unidos.

“Não há nenhum pigmento nesta base além do óxido preto puro. Eles sabiam exatamente o que estavam fazendo. Isso não é um erro”, criticou ela em um dos vídeos sobre o produto. Em outra publicação, ela ironiza e compara, na própria pele, a tonalidade semelhante entre uma tinta preta e a base da marca:

“Quando dizemos que queremos que vocês façam tonalidades para nós, não queremos dizer que é para vocês irem ao laboratório e pedirem por um preto de show de minstrel", comenta fazendo uma referência ao antigo espetáculo racista norte-americano, que era apresentado por pessoas brancas com o rosto pintado com carvão ou tinta.

"O que queremos dizer é que é para vocês pegarem os marrons que já fizeram e criarem outros tons de base. Façam o que for necessário no laboratório para que seja um tom de marrom mais escuro”, explica. Na sequência, ela mostra dois tons de base, marrom e preto, e finaliza: “Existem ao menos 10 tonalidades entre estas duas bases”.

Repercussão na internet

Apesar de a marca não vender no Brasil, a discussão ecoou entre os influenciadores brasileiros, que aproveitaram o debate para lembrar que este está longe de ser um caso isolado e que o racismo no mercado de beleza é global.

A empresária Daniele DaMata criou uma paleta com mais de 200 tons de pele negra, além de já participado do desenvolvimento de cartelas, com este mesmo foco, de várias marcas nacionais. Ela acredita que, apesar do avanço com produtos mais assertivos, ainda existem empresas “que não entenderam o que é diversidade de tonalidade”.

Daniele DaMata, expert em pele negra, defende que, apesar dos avanços, ainda falta inclusão no mercado de beleza — Foto: Reprodução/Instagram

“As marcas entendem que pele negra é um tom só, que ela não tem suas variações. Muitas marcas erram, muitas marcas acertam, mas, mesmo assim, elas ainda continuam reproduzindo racismo por achar que pessoas pretas têm uma tonalidade só. E não é a verdade, a gente tem uma variação gigante e, principalmente, a gente não tem cor de tinta, a gente tem cor de pele”, destaca a expert.

Quem também ficou chocado com a notícia foi o maquiador e jornalista de beleza Tássio Santos. Segundo ele, o caso "reforça o estereótipo negativo sobre a negritude” e que o produto não faz o menor sentido, assim como “lançar uma base totalmente branca para uma pessoa albina ou uma base amarela para uma pessoa com ascendência asiática”.

‘O nome disso é racismo cosmético’

Tássio destaca que falta pesquisa e capacitação para que casos como o desta marca americana não se repita mais. E ele vai além! Durante sua carreira, o maquiador ouviu histórias de pessoas negras que sofreram com a falta de representatividade na indústria de beleza:

E ninguém dava nome para ‘isso’, racismo cosmético. E eu decidi cunhar para a gente tratar especificamente ‘disso’, ‘dessa coisa’, que antes não tinha nome e ficava até um pouco mais difícil de a gente identificar e, portanto, combater, quando necessário”.

O tema, inclusive, foi um dos motivos que o levou a escreveu o livro “Tem Minha Cor”. A partir da perspectiva racial, ele debate a falta de inclusão na indústria cosmética, mas também aponta “o caminho das pedras” para que as gerações futuras a transforme em um cenário mais acolhedor e que a maquiagem seja, cada vez mais, uma ferramenta de libertação, e não de pressão estética.

O maquiador e jornalista Tássio Santos escreveu um livro sobre a o racismo e falta de representatividade na indústria de beleza — Foto: Reprodução/Instagram

“Eu trouxe vários exemplos de racismo cosmético [no livro], pelo qual muitas vezes a gente passa despercebido ou sofremos, literalmente, na pele, mas não conseguimos externalizar, porque não tem nada muito elaborado sobre ‘isso’.”

Tanto Daniele como Tássio afirmam que episódios como este revelam o quão urgente é preciso ter um olhar mais atento das marcas sobre seus consumidores: dialogar, entender quem são eles e quais são suas necessidades.

Eu acho que o mercado de beleza, não só aqui no Brasil, mas no mundo todo, diz muito sobre a história do Brasil, sobre padrões estéticos, sobre negritude. Então, esse é o meu propósito na internet, criar um espaço mais respeitoso para que as pessoas não passem mais por isso. [Usar maquiagem] é sobre valorizar a beleza, reconstruir a autoestima”.
— Tássio Santos
Acredito que deveria ser feito uma pesquisa de tonalidades mais coerente com o público-alvo, com questões demográficas das marcas no geral. Eu acho que, por exemplo, se uma marca brasileira quer lançar uma base no mercado, tem que entender que é uma população que tem metade da sua população negra, que envolve peles claras, médias e escuras ou, de acordo com o IBGE, pardo e pretos. Mas, no fim das contas, são pessoas negras que têm as suas tonalidades negligenciadas”.
— Daniele DaMata

Maquiagem e a autoestima da pessoa negra

Com 33 anos, Daniele conta que “demorou muito” para começar a usar maquiagem, porque tinha dificuldade de encontrar produtos que atendiam às suas necessidades como mulher negra retinta, e isso inclui ser acessível geográfica e financeiramente! Ela analisa que os maiores avanços foram feitos majoritariamente por etiquetas de luxo.

“Estas marcas conseguiram avançar muito em tonalidades, mas quando a gente vai para o mercado da classe C ou D, elas ainda estão em uma tentativa de lançar um catálogo maior. Então, a gente ainda não tem uma representatividade, porque tonalidades de pessoas brancas é possível achar na farmácia, no site, nas lojas, mas para as pessoas negras ainda estão em outro lugar”.

Especialistas comentam como a falta de produtos específicos para pessoas negras podem afetar a autoestima — Foto: Unsplash

A empresária lembra que, durante anos, usou os produtos errados exatamente porque não existia uma variedade e, menos ainda, qualidade: “Eu ficava com a pele acinzentada, com os pigmentos que não funcionavam, os batons que pigmentavam o lábio, não tinha um blush ideal, um iluminador ideal, então isso impactava não só minha autoestima, como na de muitas mulheres negras não ter à disposição os produtos que realmente funcionam para suas peles.”

Tássio também relata ter passado por experiências "bastante traumáticas", mas conheceu pessoas que o inspiraram nesta jornada de reconstrução autoestima:

"Tive sorte de cruzar com muitas pessoas, principalmente mulheres de pele retinta, que fizeram as pazes com os cosméticos, com a maquiagem, e hoje conseguem valorizar a sua beleza. Eu acho que tem muita gente com histórias tristes envolvendo maquiagem. Mas, em algumas situações, eu acho que a gente já conseguiu sair desse lugar de exclusão e conseguiu fazer as pazes!”

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