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Por Rodrigo Fonseca — Veneza


Joaquin Phoenix como Coringa — Foto: Warner Bros/Divulgação

Joaquin Phoenix é um sujeito de lua: às vezes, é um docinho com a imprensa e topa tirar selfie com qualquer fã; mas há vezes em que fecha a cara e dá as costas para os jornalistas. Mas neste sábado, dia 31/8, no encontro com a imprensa mundial, no 76º Festival de Veneza, para falar da participação de “Coringa”, o Lido (praça que sedia o evento) descobriu uma terceira faceta do ator de 44 anos. Era um misto de simpatia e deboche.

“Vou resumir a resposta numa palavra: ‘Não’ .”

Esta foi a resposta de Joaquin a uma jornalista italiana curiosa para saber se, em sua vida pessoal – casado com a atriz Rooney Mara, dedicado à defesa dos animais – algo o faz gargalhar da forma sinistra como na produção pilotada por Todd Phillips, com fortes chances de deixar a Itália com prêmios, em especial a Copa Volpi, láurea dada a grandes atuações. Para dar conta do Coringa, ele teve que emagrecer 20 quilos.

“A perda de peso uma hora me enlouqueceu”.

Joaquin Phoenix é a sensação no Festival de Veneza com sua nova versão de Coringa — Foto: Stefania D'Alessandro/WireImage

Com um cigarro na mão e um fone na outra, para entender perguntas em línguas que não o inglês, ele deixava seu humor flutuar sempre que as perguntas caiam para o lado pessoal, perdendo o foco de seu (assombroso) desempenho como o inimigo nº 1 do Batman.

Sua atuação como Arthur Fleck (o alter ego do Coringa) foi descrita como “monumental”, “avassaladora”, “digna de Oscar” em múltiplas línguas. Já o longa-metragem, que narra a origem do Palhaço do Crime sem poupar nas doses de brutalidade, foi chamado de “o Apocalypse Now dos filmes de HQ”, em referência ao aclamado épico sobre o Vietnã de Francis Ford Coppola. Só que a guerra de “Joker” (título original desta produção de US$ 55 milhões) é nas ruas de Gotham City.

“A gargalhada é o que emerge da figura de Arthur, por isso, eu pedia para que o Todd avaliasse bem como eu ria, para ver se funcionava, pois eu não podia fingir aquela gargalhada. Não há como um definir esse personagem."

"Tudo o que eu queria era inviabilizar rótulos acerca dele. Não queria que um psiquiatra conseguisse decifrá-lo ao analisar seus modos”, explicou o ator, que já concorreu ao Oscar com “Gladiador”, em 2001; “Johnny & June, em 2006; e “O mestre”, em 2013, mas nunca levou a estatueta para casa.

Joaquin Phoenix como Coringa — Foto: Warner Bros./Divulgação

Quando o assunto caía no prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, ele desviava o papo. Fez isso em um momento da coletiva fingindo não entender o que uma jornalista, falando em Italiano, havia lhe perguntado. “Melhor que eu não entendi”, disse ele, que compensava os momentos blasé com reflexões profundas sobre o algoz do Homem-Morcego.

“Há uma luz em Arthur. Tem uma música dentro dele. O que me interessou nesse trabalho foi poder explorar o personagem do meu jeito”.

Criado em 1940, pelo cartunista Jerry Robinson (1922-2011), o Coringa já contou com o talento de Cesar Romero (na série do Homem-Morcego dos anos 1960), de Jack Nicholson (em 1989) e de Heath Legder (em 2008, em atuação coroada postumamente com o Oscar de coadjuvante).

A leitura de Todd Phillips (realizador da franquia “Se beber, Não Case”), produzida por Martin Scorsese (diretor de cults como “Taxi Driver”) se passa em 1981 e dialoga, levemente, com a graphic novel “A piada mortal” (1988), de Alan Moore e Brian Bolland. Nela, Bruce Wayne é um garoto e Arthur Fleck, o papel de Joaquin, é um comediante que trabalha como palhaço nas ruas e em hospitais de crianças. Mas ele tem distúrbios mentais (expressos na forma de uma risada descontrolada) que se agravam conforme sua carreira naufraga, sua mãe adoece e um apresentador de TV (Robert De Niro, numa participação genial) faz piada de sua imagem.

“Fãs de quadrinhos costumam enxergar coisas no filme que nós sequer pensamos, mas, de fato, trouxemos elementos dos quadrinhos, como um pouco de ‘A piada mortal’ e muito do filme ‘O homem que ri’, de 1928”, disse Phillips ao Gshow.

“Esse filme é um estudo da falta de empatia no mundo em que vivemos”.

Joaquin Phoenix como Arthur Fleck (alterego do Coringa) — Foto: Warner Bros./Divulgação

Conforme se afoga na loucura, mudando seu visual para os cabelos esverdeados do Coringa, Fleck vai contabilizando agressões, com direito a cabeças esmagadas e pessoas baleadas.

“Dei uma lida em um livro sobre assassinos, o que me ajudou a encontrar uma personalidade para Arthur, com a liberdade de escapar das amarras”, disse Phoenix, que foi premiado em Veneza em 2012, com “O Mestre”, empatado com seu colega de cena Philip Seymour Hoffman, morto em 2014.

“Gosto de papéis que fogem do óbvio”

Costa-Gavras

Ainda atordoada pela assombrosa mutação de Phoenix no transtornado personagem das HQs, Veneza matou as saudades do papa dos thrillers políticoo: franco-grego Costa-Gavras. O cineasta será homenageado no Lido esta noite com um prêmio honorário (o Troféu Jaeger-LeCoultre Glory To The Filmaker) pelo conjunto de seus sucessos como realizador, entre eles “Z” (Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1970) e “Missing” (Palma de Ouro de 1982).

Aos 86 anos, o cineasta recebeu uma ovação na cidade ao falar sobre o presidente Jair Bolsonaro em resposta ao Gshow.

“Sei que existem cineastas de muita qualidade no Brasil, que podem retratar bem as situações pelas quais vocês estão passando. E as dificuldades do seu país podem tornar esse empenho em fazer um filme sobre Bolsonaro ainda mais forte. Ele não vai desmobilizar o cinema brasileiro.”

Costa-Gavras trouxe a Veneza o drama de tintas cômicas “Adults in the room”. Com uma montagem primorosa, que valoriza a ironia, o filme é uma adaptação do livro homônimo de Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, sobre a falência de sua nação. Christos Loulis vive o próprio Varoufakis no longa, que se concentra em tramitações políticas e judiciais de 2015 para travar a bancarrota das finanças gregas.

“A edição de um filme é um gesto afetivo, que já começa a ser feito quando a gente lê o roteiro e prepara as imagens. Na mesa de edição, eu nunca deixo o montador sozinho. Monto junto, porque eu preciso ser o primeiro espectador das cenas que rodei”, disse Costa-Gavras.

Roman Polanski e Haifaa Al-Mansour

Mesmo bagunçada com a chegada avassaladora de “Coringa”, a competição pelo Leão de Ouro tem dois títulos com maior relevo na geografia afetiva dos cinéfilos locais: “J’Accuse”, de Roman Polanski (França), e “The perfect candidate”, da diretora Haifaa Al-Mansour (Arábia Saudita).

Crítica ao machismo, o longa de Haifaa narra o périplo de uma jovem médica para ser eleita a um cargo administrativo público em seu país, pautado pela intolerância. Seu roteiro é um ímã de elogios.

“Quando um cineasta homem faz um sucesso de público ou de crítica, seu filme seguinte já tem produção garantida ou, no mínimo, uma conversa garantida com fontes de financiamento. O mesmo já não posso dizer sobre a sorte das mulheres diretoras, em uma indústria de disparidades”, diz Haifaa, forte candidata ao prêmio de melhor roteiro.

Já o filme de Polanski inflamou e encantou a plateia por seu requinte visual (em especial nos rigorosos enquadramentos da fotografia de Pawel Edelman) e pelo contundente debate que abre sobre deveres, direitos e intolerâncias na Lei.

Escrito pelo autor best-seller Robert Harris a partir do seu romance “An officer and a spy”, o longa revive o Caso Dreyfus: um escândalo que assolou a França no fim do século XIX. Em 1894, o oficial Alfred Dreyfus (papel do galã Louis Garrel) foi preso, sob uma falsa acusação de traição, alimentada por uma histeria antissemita no exército francês.

Novo filme de Roman Polanski, 'J’Accuse'. O ganhador do Oscar Jean Dujardin está no elenco — Foto: Warner Bros./Divulgação

Um ex-professor dele, o coronel Georges Picquart (vivido pelo ganhador do Oscar Jean Dujardin, de “O Artista”), faz de tudo para provar que sua prisão é injusta. Seus esforços vão mobilizar o notório escritor Émile Zola (1840-1902), que escreve uma carta pública contra a postura intolerante da Justiça.

Polanski não compareceu ao evento, devido a um processo judicial movido contra ele, pela Corte dos EUA, acerca de um caso de abuso sexual contra uma menor, registrado no fim dos anos 1970. Grupos feministas questionaram a presença do longa dele em concurso, mas, depois de sua projeção, na sexta, dia 30/8, adjetivos elogiosos à sua direção se espalham nas redes sociais e nos papos de corredor do Lido.

Nas sessões paralelas à briga pelo Leão, a maior atração até agora veio de terras espanholas. Vivendo uma fase de apogeu no streaming e na TV, o novo audiovisual da Espanha fincou a bandeira da excelência aqui, na mostra Orizzonti, com o folhetim "Madre", de Rodrigo Sorogoyen. É drama estilo Douglas Sirk em uma versão "La Casa de Papel", um exercício rigoroso de estudo sobre fraturas afetivas. Sua trama: uma mulher que passa anos atrás do filho desaparecido (o guri some numa praia) monta um restaurante no local onde seu moleque foi visto pela última vez e, lá, trava amizade com um adolescente muito parecido com seu rebento.

Brasil representado

No domingo, Veneza confere, na competição, o esperado “Wasp Network”, um thriller de espionagem baseado no livro “Os últimos soldados da Guerra Fria”, do mineiro Fernando Morais, produzido pelo carioca Rodrigo Teixeira (e sua onipresente RT Features, representada no Lido também por “Ad Astra”, com Brad Pitt) e dirigido pelo parisiense Olivier Assayas. Wagner Moura integra o elenco com Penélope Cruz, Edgard Ramírez, Ana de Armas e Gael García Bernal. A trama é sobre cubanos que teriam imigrado para os EUA como espiões infiltrados.

Na terça, a atriz gaúcha Bárbara Paz exibe por aqui o documentário “Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou”, sua estreia da direção de longas. A produção faz um balanço sentimental da vida e da obra de Hector Babenco (1946-2016), diretor de sucessos como “Carandiru” (2003), com quem Bárbara foi casada. Ela assina o roteiro ao lado de Maria Camargo, autora de sucessos da TV como “Dois Irmãos” (2017) e o recente “Assédio”.

Veneza chega ao fim do no dia 7 de setembro, com a entrega de prêmios e a exibição fora de concurso do drama anglo-italiano “The Burnt Orange Heresy”, de Giuseppe Capotndi, com o "rolling stone" Mick Jagger no elenco.

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