Por Isabela Leite, GloboNews — São Paulo


Mulheres estupradas não conseguem apoio legal em São Paulo

Mulheres estupradas não conseguem apoio legal em São Paulo

Vítima de estupro, Maria Clara (nome fictício) teve o aborto legal negado por três hospitais na capital paulista e só conseguiu realizar o procedimento com ajuda da Defensoria Pública de São Paulo em outro estado.

Atualmente, o aborto é permitido em três situações no Brasil: se o feto for anencéfalo, se a gravidez impuser risco de vida para a mãe ou se a gravidez for fruto de estupro - que é o caso de Maria Clara. Porém, um projeto de lei está em tramitação na Câmara para equiparar o aborto após 22 semanas ao crime de homicídio simples, colocando em risco o direito das mulheres (leia mais abaixo).

A primeira barreira que a vítima encontrou foi no Hospital da Mulher, referência da rede estadual em casos de violência sexual. À reportagem, a vítima contou que descobriu a gravidez somente quando completou 24 semanas.

"Não tive nada de diferente, não tive barriga, não tive sintoma, não tive nada", relata.

"Eu fiz o exame de sangue, fiz o ultrassom e passei na médica. Ela me falou que como a gestação estava muito avançada, eu teria que procurar outra unidade e ajuda na Defensoria. A médica só falou que não poderia fazer e pronto. Depois ela me encaminhou para assistente, e a assistente me disse que eu teria que procurar ajuda. Só me passaram o endereço da defensoria e eu fui por conta própria", relembra.

Com ajuda da Defensoria Pública, ela conseguiu um encaminhamento para realizar a interrupção da gravidez no Hospital Municipal do Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo e mais uma vez teve o procedimento - que é garantido por lei - negado.

"Fiz a triagem e ele [médico] relatou a mesma coisa: que não poderia fazer no hospital [o aborto] porque estava muito avançada a gestação. Eu já estava perdendo as esperanças. Já não estava muito bem psicologicamente e saí de lá mais abalada. Até então, eu estava achando que eu estava errada em tudo".

Em dezembro de 2023, a Prefeitura de São Paulo suspendeu o serviço de aborto legal do Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte da capital. A unidade era a única do estado que realizava o procedimento em casos em que a gestação ultrapassa as 22 semanas - como o caso de Maria Clara.

Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha é referência para gestação de alto risco — Foto: Paula Paiva Paulo/G1

Para agravar a situação, em 3 de abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou uma resolução que proíbe a assistolia fetal - um procedimento recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para casos de aborto legal acima de 22 semanas de gestação.

Com essa resolução, a Justiça suspendeu o encaminhamento da vítima. Entretanto, seguindo a orientação da Defensoria Pública, Maria Clara seguiu para a terceira e última tentativa: o Hospital Municipal Tide Setubal, na Zona Leste da capital.

Na peregrinação para conseguir o aborto legal, Maria Clara conta que recebeu o pior atendimento no Hospital Municipal Tide Setubal, onde ela foi obrigada a ouvir os batimentos cardíacos do feto.

"Como o atendimento estava agendado, achei que eu ia chegar e iam estar me esperando. O atendimento foi péssimo, tive que falar perto de pessoas e o pior de tudo foi precisar ouvir o coração do feto. Eu pedi para ele [profissional de saúde] parar e tirar, levantei e saí da sala", desabafa.

A equipe médica ainda tentou convencê-la a não realizar o aborto. "Me falaram para tentar segurar o neném até nove meses, que eles me dariam laqueadura, que iam cuidar de mim e me buscar para fazer a cirurgia e tudo mais. Eu fui embora para casa acabada, não sei nem explicar. Eu já estava pensando como fazer em casa sozinha porque eu não tinha condições".

A vítima só conseguiu realizar o procedimento em outro estado. "A defensoria me falou sobre um projeto que entrou em contato comigo e explicou como seria feito em outro estado. Foi tudo muito rápido e muito bem explicado. Nossa parecia que eu estava fora do Brasil. Foi ótimo. Desde a abordagem do começo, os exames… Foi super respeitoso", conta.

Caso de tortura

Para a defensora pública do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, Paula Sant'Anna, o atendimento médico que Maria Clara recebeu no hospital pode ser equiparado a tortura.

"Há uma tendência de culpabilizar que aquela menina ou mulher demorou para procurar o sistema de saúde. Na verdade, muitas vezes elas procuram, mas recebem informações equivocadas, agendamentos longínquos, precisam de ajuda para chegar até o serviço de referência e não conseguem. Então, é sobre isso que a gente tá falando quando a gente fala de barreiras para acesso a esse abortamento", explica a defensora.

A diretora-executiva da ONG Vivas, Rebeca Mendes, aponta que os serviços de saúde não estão preparados para atender vítimas de violência sexual.

"O que a gente tem encontrado são mulheres passando situações de violência. Elas chegam em serviços que estão totalmente despreparados para atendê-las em várias situações, entendimento do que é violência sexual, entendimento do que a lei pede. Então a gente tem serviços onde o boletim de ocorrência que não é necessário é pedido", afirma.

O que diz a Secretaria Municipal da Saúde?

"A Secretaria Municipal da Saúde (SMS), da Prefeitura de São Paulo, informa que atende às demandas de procedimentos com determinação legal em observância à legislação. A SMS reforça seu compromisso com o acolhimento da população sem discriminação e com responsabilidade humanitária.

A SMS pontua ainda que o Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha segue em pleno funcionamento, realizando outros serviços voltados à saúde da mulher. Atualmente, em São Paulo, o programa segue disponível em quatro hospitais municipais da capital. São eles: Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio (Tatuapé); Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo); Hospital Municipal Tide Setúbal e Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mário Degni (Jardim Sarah)".

Manifestantes se reunem na Avenida Paulista a favor do aborto legal — Foto: Reprodução/TV Globo

PL do aborto

O projeto de lei, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), da bancada evangélica, altera o Código Penal e estabelece a aplicação de pena de homicídio simples nos casos de aborto de fetos com mais de 22 semanas nas situações em que a gestante:

  • provoque o aborto em si mesma ou consente que outra pessoa lhe provoque; pena passa de prisão de 1 a 3 anos para 6 a 20 anos;
  • tenha o aborto provocado por terceiro com ou sem o seu consentimento; pena para quem realizar o procedimento com o consentimento da gestante passa de 1 a 4 anos para 6 a 20 anos, mesma pena para quem realizar o aborto sem consentimentos, hoje fixada de 3 a 10 anos.

A proposta também altera o artigo que estabelece casos em que o aborto é legal, para restringir a prática em casos de gestação resultantes de estupro.

Conforme o texto, só poderão realizar o procedimento mulheres com gestação até a 22ª semana. Após esse período, mesmo em caso de estupro, a prática será criminalizada.

A proposta é assinada por 32 deputados, incluindo o segundo vice-presidente da Casa, Sóstenes Cavalcante, e o presidente da bancada evangélica, Eli Borges (PL-TO).

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