Por Isabela Leite e Inderson de Oliveira, GloboNews — São Paulo


Polícia de SP recebe mais de 680 queixas de stalking em um mês

Polícia de SP recebe mais de 680 queixas de stalking em um mês

No primeiro mês desde a criação do crime de perseguição, ou "stalking" (em inglês), no Brasil, o estado de São Paulo teve 686 boletins de ocorrências registrados por vítimas nas delegacias do estado. O número equivale a uma média de 23 queixas por dia.

De acordo com dados exclusivos obtidos pela GloboNews, pouco mais da metade (50,6%) dos registros foi feita pela internet, o mesmo caminho mais usado pelos criminosos para perseguir e ameaçar.

A nova lei começou a valer no dia 1º de abril no Código Penal. Ela prevê a pena de seis meses a dois anos de prisão para quem for condenado, mas pode chegar a 3 anos com agravantes, como crimes contra mulheres. Existe ainda a previsão de multa contra o "stalker".

A delegada Jamila Ferrari, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher do estado de São Paulo, acredita que ao ser considerado crime, muitas vitimas entenderam que podiam procurar ajuda e denunciar.

"Talvez elas nem imaginavam que isso poderia ser um crime. Realmente surpreende quando a gente verifica que tem um número expressivo de boletins de ocorrência. Eu acredito que é justamente por agora ter o crime, o delegado de polícia que registra mais. Afinal de contas, a gente tem que proteger essas mulheres. A gente sabe que essa perseguição, essa recorrência nessa perseguição, nesse stalking, coloca em risco a vida das vítimas", diz.

Moradora do interior de São Paulo, a artesã Adriana Falcão sempre foi ativa nas redes sociais. Sua paixão por fotografia abriu caminho para diversas amizades pela internet. Uma delas foi com um estrangeiro, residente de Portugal. A princípio, o relacionamento entre os dois foi saudável, até que a postura dele mudou.

"Isso começou ano passado. Uma pessoa que me seguia já há alguns anos no Instagram. A pessoa nunca agiu dessa forma. Aí, a partir do momento em que a gente começou a conversar, ter amizade, a pessoa começou a achar que tinha liberdade e começou a entender a situação de forma errada. Quando eu percebi certas atitudes, e eu tentei dar um basta", conta.

Os pedidos, no entanto, não surtiram efeito. "Começaram a se repetir essas atitudes. Diversas vezes eu tentei conversar educadamente. A pessoa dizia que entedia, e no dia seguinte voltava a agir da mesma forma. Então ai eu tentei bloquear. Quando bloqueei, a pessoa começou a criar outras contas falsas para poder ver o meu perfil e mandar mensagens."

"Chegou a um ponto de eu responder bem grosseira para ver se a pessoa entendia. Tinha que entender que ela tinha que respeitar. Como ele é de fora do Brasil, eu cheguei a falar: 'eu não sei como é ai no seu país, mas aqui no Brasil é crime fazer isso, o que você está fazendo é crime'."

O stalker chegou a criar 20 perfis falsos no Instagram para perseguir a artesã, além de amigos e familiares dela. A solução foi fechar suas contas nas redes sociais.

"Afetou de todas as formas, porque eu tive que desativar as minhas contas. Eu interagia com meu perfil de fotografia que gosto bastante. Eu tive que parar com isso. E eu tive que desativar as contas que eu usava pra trabalho. Tive que abrir mão disso pra poder ter um pouco de paz."

A promotora de justiça Silvia Chakian, do Ministério Público de São Paulo, pontua que o crime de stalking afeta sobretudo meninas e mulheres no Brasil.

"Não só a perseguição clara, aquela na rua, do sujeito que fica à espreita, mas também a que acontece no ambiente virtual está prevista nesse tipo penal. Sempre que houver a restrição na capacidade de locomoção, ou a perturbação da esfera de liberdade, de privacidade. Não só da liberdade clássica, mas também da liberdade de se expressar. Impactando, de forma mais grave, com uma pena mais grave, crianças, adolescentes, pessoas idosas, mulheres, por razões da condição do sexo feminino no contexto de violência doméstica familiar", diz.

Adriana Falcão, vítima por meses de perseguições online, diz ter ficado aliviada ao saber que poderia pedir ajuda da polícia e registrar queixa na delegacia com a tipificação do "stalking" como crime.

"A gente ouve falar sempre aquela coisa: 'acontece com os outros, mas não vai acontecer comigo' ou 'se acontecer comigo eu vou reagir ou agir de certa forma', mas quando acontece a gente fica sem reação, a gente fica com medo e o medo não deixa a gente raciocinar, o medo não deixa a gente reagir com clareza".

Mapeamento das vítimas

Mesmo antes de o stalking virar crime no Brasil, a ONG Safernet já vinha mapeando vítimas e ofereceu um canal de ajuda. De de 2015 e 2020, foram 87 casos de vítimas de ciberstalking que buscaram ajuda da SaferNet.

Entre os relatos reais, está o de um homem de 44 anos que dizia não saber o que fazer em relação a uma pessoa que o perseguia.

"Eu não estou sabendo como proceder em relação a uma pessoa obcecada por mim. Ele fica me enviando mensagens. Eu bloqueio, ele cria um fake. Começou a aparecer nos lugares que eu frequento, forçando conversa. (...) Eu queria saber se posso procurar a polícia."

Outra vítima, uma jovem de 24 anos, relata situação semelhante. "Estou sofrendo cyberstalking. Eu sei quem é, já o vi uma vez e já documentei o que ele faz, sempre é através de fakes. (...) Isso tudo me deixa em pânico. Já conversei com ele algumas vezes pedindo para que ele parasse. Ele diz que vai parar, mas a situação perdura há anos."

Nesses cinco anos, a ONG diz que as mulheres eram maioria nos atendimentos (75,9%), mas uma parcela considerável também é formada por homens (24,1%).

Dos 87 casos, três vitimas tinham menos de 17 anos. Vinte uma delas tinham entre 18 e 25 anos, e a maior parte delas (63 vítimas), com mais de 25 anos.

Marcela* vive no sul do Brasil e também foi perseguida e exposta por um ex-namorado nas redes sociais.

"As perseguições iniciaram depois que eu terminei o relacionamento. A partir daí começaram essas ameaças via Facebook, principalmente, e via WhatsApp. Eu bloqueei, e ele fazia novas páginas e convidava outras pessoas para serem amigos em comum. Convidava pessoas que eram minhas amigas para fazer parte do círculo de amizades dele. Ele começou a postar fotos minhas com xingamentos, com palavrões de baixo calão. Aquilo me chocou de uma forma que me paralisou. Eu não tomava nenhuma atitude por medo. Ele ameaçava ir na casa da minha mãe, já idosa, falar com ela."

Durante dois anos, depois de dois boletins de ocorrência e a contratação de uma advogada, ela conseguiu uma medida protetiva contra o ex-companheiro.

"Ele dizia: 'nenhum policial vai me fazer parar, eu sou homem e faço o que eu quiser'. Ele jogava dessa forma. E a gente acaba ficando com medo. Ele ameaçava ir na minha casa. Eu moro em condomínio, então ia ser difícil ele chegar na minha porta, mas ele queria fazer eu passar vergonha lá em baixo, com o pessoal da portaria. A partir do segundo B.O. a gente começou a obter resultados. Tivemos uma primeira audiência com uma juíza. Ali ela já me deu medida protetiva com duração de seis meses. E se houvesse qualquer outro incidente ele renovaria por mais seis."

Mesmo assim, Marcela* diz que a vida dela mudou para sempre. "A gente fica marcada. Eu não tenho mais vontade de conhecer ninguém, me relacionar com ninguém, porque estou sempre desconfiando das pessoas. Parece que vai acontecer tudo de novo. É muito difícil superar uma situação assim."

Para a promotora Silvia Chakian, mesmo com a inclusão do crime de stalking no Código Penal, ainda há vários obstáculos a serem vencidos para protegermos as vítimas.

"Ainda se tem a tendência de minimizar, achar que é coisa passageira, insatisfação pelo rompimento de uma relação e que faz parte essa frustração, e não é. Não é natural, causa consequência. Esse avanço de mentalidade, de avanço de posturas e concepções é o que a gente precisa fazer para entender que quando uma relação acaba, ela tem que terminar ali, e não em uma vara criminal, uma delegacia."

'Me sinto impotente, um número'

Renata* vive um drama desde 2016, após voltar de um intercâmbio na Europa.

"Logo após retornar ao Brasil e assumir um relacionamento, esse agressor começou a me perseguir com a justificativa de que a gente teria um relacionamento, o que nunca ocorreu. Eu acho que a partir do momento em que ele começou a ser insistente demais e a demostrar que não iria parar, eu já comecei a ficar com medo."

Em três meses, o stalker, que mora na Espanha, enviou 800 e-mails com ameaças e importunações para Renata e ainda tentou por cerca de cem vezes invadir contas de e-mail e redes sociais dela. Os pedidos de ajuda para as autoridades policiais no Brasil demoraram para surtir efeito.

"Eu já havia procurado a polícia, já havia feito um boletim de ocorrência simples. As próximas tentativas, logo depois de conversar com a família dele e ver que não ia cessar, foi tentar buscar formas jurídicas pra tentar resolver isso. Fui até a delegacia da mulher, fui até a Policia Federal, fui até o MP e só a partir daí que a gente conseguiu desenvolver um processo", conta.

Em 2019, o Ministério Público de Minas Gerais assumiu o caso e pediu a prisão preventiva do stalker. Quase quatro anos depois das primeiras ameaças, a Justiça mineira decretou a prisão, mas na decisão o juiz determinou que a ordem só teria validade se o investigado entrasse no Brasil e que o caso não deveria ser remetido à Interpol.

A defesa da vítima recorreu e só assim, três meses depois, o mesmo juiz autorizou que o mandado de prisão fosse comunicado ao sistema de imigração no Brasil, o que não impediu que o stalker continuasse perseguindo e ameaçando a vítima pela internet, da Espanha.

"Eu ouvia que não era possível fazer algo. Cheguei a ouvir coisas, por exemplo, de que eu não deveria ter feito amizade fora. E a todo tempo eu enfrentei também o machismo, que é sempre muito forte. A todo tempo todos queriam saber se eu tive relacionamento com ele, se o relacionamento que eu estava terminou ou se continuou. Isso era meio a prova para os policias de que eu estava certa ou errada", lamenta Renata, que afirma nunca ter tido qualquer relacionamento afetivo com o stalker.

A Interpol é representada no Brasil pela Polícia Federal. Mas, segundo a corporação, a cooperação internacional em casos como esse depende de um pedido dos investigadores do caso ou da Justiça.

"Em tese o crime de stalking é um crime da esfera da competência da justiça estadual, depende de uma investigação da polícia civil, uma vez que não ofende bens da esfera da União. Por sua vez, nada impede que a Interpol coopere na investigação justamente por termos a rede de contatos com 194 países. Quando envolve um pedido de prisão de um criminoso que está fora da jurisdição gera um problema, porque depende justamente de um acordo de extradição e a inclusão no canal vermelho da Interpol", afirma o coordenador-geral de Cooperação Internacional da Polícia Federal, Luiz Roberto Ungaretti de Godoy.

A GloboNews procurou o TJ de Minas Gerais para confirmar por que o caso não foi compartilhado com a cooperação internacional e se há intenção de fazê-lo.

Em nota, o tribunal alega que o processo corre em segredo de justiça, e que, neste caso, não tem autorização para repassar informações "para preservar as partes incluídas como vítimas bem como as indiciadas em procedimentos investigatórios, ou beneficiadas por sursis ou transação penal da Lei 9099, evitando-se a publicidade da informação".

O posicionamento Ministério Público mineiro foi semelhante. O comunicado afirma que o processo é sigiloso, que a Promotoria "preserva a intimidade das pretensas pessoas ofendidas e não comenta casos em andamento, em nenhuma hipótese".

Enquanto isso, a vítima Renata* continua desprotegida e com medo. "Não adianta nada a gente ter tecnologias, que são usadas pelo mundo inteiro e que crimes são cometidos ali, mas que não existem formas de punir esses crimes. Então acho que precisaria de uma cooperação internacional muito maior. Hoje em dia eu não vejo a internet com os mesmos olhos que eu via antes. Pra mim ela é terra de ninguém ainda, ela não é um espaço onde você pode dividir tudo, onde você tem segurança. Pelo contrário, é um espaço super inseguro, que não existem leis para punir possíveis crimes".

"Eu me sinto sem saber o que fazer, porque eu já fiz de tudo, sabe? Eu me sinto impotente, me sinto um número. Apenas mais um número para eles poderem contar lá: 'vítima de stalker'. Mais uma, ponto."

O que é "stalking"?

Conhecido popularmente como "stalking" (perseguição, em inglês), o ato definido agora por lei consiste em seguir alguém reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando a integridade física ou psicológica da vítima ou invadindo sua liberdade ou privacidade.

A prática é mais conhecida nos meios digitais, mas a lei prevê condenações para quem cometer o crime em qualquer meio, seja digital ou físico. A lei também diz será enquadrado no crime quem restringir a capacidade de locomoção da vítima. Antes, a prática de “molestar alguém ou perturbar a tranquilidade” era considerada contravenção penal, e não crime, e tinha como pena a prisão de 15 dias a dois meses, ou multa.

Os nomes Renata* e Marcela* são fictícios e os locais de residência das vítimas foram ocultados nesta reportagem para proteger as vítimas.

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