Por Carol Prado, g1


Como Ravel Andrade se preparou para cena chocante de série do Globoplay

Como Ravel Andrade se preparou para cena chocante de série do Globoplay

Para contar a história do crime organizado no Rio de Janeiro, "O Jogo que Mudou a História" mescla cenas corriqueiras do dia a dia nas comunidades com sequências que revelam ambientes de violência extrema. Ravel Andrade, um dos protagonistas da trama, aparece em alguns dos momentos mais chocantes (assista ao vídeo acima).

Na nova série do Globoplay, ele interpreta Egídio, um jovem de classe média, sem histórico no crime, preso depois de atropelar a filha de um general durante a ditadura militar. No presídio de Ilha Grande, região no sul do estado para onde foram levados adversários de governos autoritários brasileiros, o personagem vive os horrores de um sistema carcerário precário e brutal.

Ravel se aprofundou em histórias de jovens presos em cadeias muito violentas para criar a identidade de Egídio. Nos ensaios, fez exercícios para experimentar as sensações de agonia e angústia vividas por seu personagem, já desde o primeiro episódio.

"Eu fui muito protegido para não ter nenhum tipo de trauma psicológico, para não me afetar com aquilo. Quando a gente assiste à cena, tem muita veracidade porque tem muito trabalho anterior", diz, em entrevista ao g1.

Outro elemento que ajudou na construção do papel foi o próprio repertório de vida do ator. Ou, mais exatamente, a falta de repertório sobre a realidade mostrada na série -- estranha para ele, assim como para o seu personagem.

Nascido em Porto Alegre, Ravel, que é irmão do também ator Júlio Andrade, viveu a maior parte da vida numa cidade do interior da Serra Gaúcha. "É uma realidade completamente oposta porque é uma cidade muito pacata, onde as crianças caminham na rua. Não tem problema de tráfico, tem pouquíssima violência."

Para filmar os episódios, ele entrou pela primeira vez em um presídio, cenário que só conhecia por fotos e vídeos. "Essa novidade foi muito importante para mostrar o Egídio entrando num presídio, também pela primeira vez."

Na entrevista abaixo, Ravel Andrade relembra a experiência intensa de fazer "O Jogo que Mudou a História". Também reflete sobre a relação entre criminalidade e estado, conta o que aprendeu durante as gravações e fala da conexão com o irmão, que faz uma participação na série.

Ravel Andrade em cena de 'O Jogo que Mudou a História' — Foto: César Diógenes/TV Globo

g1 - Como foi a pesquisa para esse personagem?

Ravel Andrade - Eu foquei minha pesquisa nos jovens presos. O meu personagem é um rapaz de classe média, vivendo numa época de ditadura. E ele não é um criminoso. É um sujeito que estuda, trabalha e é super comportado, vive na linha. Ele vai preso em Ilha Grande, por atropelar uma garota, que acaba morrendo. Ela é filha de um general, e esse general meio que se vinga colocando ele lá. Então, fui atrás desses jovens presos, que nunca haviam tido a experiência do crime e que foram para presídios já muito violentos.

Fiz uma pesquisa grande com documentários e bebi muito do livro "Estação Carandiru", do Drauzio Varella. Quando fui para os ensaios e a preparação, eu já tinha absorvido muita coisa do sistema carcerário.

g1 - E como foram esses ensaios?

Ravel Andrade - Na sala de ensaio, encontramos Fátima Domingues, que é uma preparadora [de elenco] maravilhosa e tem um trabalho muito físico. Ela misturou, ali na sala, ex-agentes penais, ex-policiais, pessoas que foram presas, cumpriram pena e foram reinseridas na sociedade, além de atores e não atores. E, assim, fomos simulando as cenas.

"Para uma cena de estupro do primeiro episódio, fizemos um exercício em que todos eles me cercavam e eu sentia ali a agonia, a angústia dessa agressão. Eu me lembro que eu ia para o chão e vinha um de cada vez em cima de mim."

Claro que tudo isso foi feito com um respeito e uma consciência muito grandes, porque a Fátima tem um limite que nos protege. Fizemos a preparação física de todas as cenas e, ao mesmo tempo, fomos criando uma intimidade uns com os outros.

Me lembro do exercício de uma outra cena, em que estavam um ex-agente penal e um egresso, que já tinham se encontrado na cadeia. Houve essa troca de experiências com pessoas que viveram coisas reais e, quando chegamos para filmar, já estávamos muito preparados.

g1 - A cena de estupro que você citou é muito violenta, assim como outros momentos do seu personagem. Como isso te afetou durante as gravações?

Ravel Andrade - É tudo muito físico e muito técnico, o mais importante é a preparação. Na hora da cena, a gente ensaia muito. O Heitor Dhalia [diretor da série], que é muito sensível, conversou comigo e explicou como o personagem fica atônito e sem reação naquele momento.

Eu fui muito protegido para não ter nenhum tipo de trauma psicológico, para não me afetar com aquilo. Quando a gente assiste à cena, tem muita veracidade porque tem muito trabalho anterior. Mas ali, na hora, não tem violência.

"O que acontece no nosso corpo é um trabalho de respiração, oxigenação. Para mim, pelo menos, em sequências assim, há um formigamento, uma energia pós-cena. Você precisa parar, sentar e tentar voltar àquele estado neutro do corpo."

Mas trauma de ter pesadelo, de depois ficar pensando naquilo, acontece muito pouco. Eu já tive isso no início da minha carreira. Quando era mais jovem, eu era mais visceral, queria sentir tudo. E tinha lembranças, pensamentos e pesadelos. Para esse trabalho, amadureci nesse sentido.

Ravel Andrade e Claudia Mauro em cena de 'O Jogo que Mudou a História' — Foto: César Diógenes/TV Globo

g1 - As gravações aconteceram em presídios reais. Como foi essa experiência?

Ravel Andrade - Houve gravações em Bangu [atual Complexo Penitenciário de Gericinó, na Zona Oeste do Rio], um presídio que ainda funciona, mas o meu personagem não tem cenas lá. Eu filmei tudo no Frei Caneca, um presídio desativado, que fica no Centro do Rio de Janeiro.

Era um presídio enorme, que tinha uma ala feminina, uma masculina, uma para policiais que eram presos e outra para pessoas com doenças mentais. Então, imagina... quando esse presídio funcionava, ele englobava todas essas pessoas, todos esses gêneros.

Quando gravamos, ele estava desativado. Mas ainda estava lá: as celas todas iguais, as camas... Eu nunca tinha entrado em um presídio, só tinha visto por imagens na pesquisa. Inacreditável a veracidade da coisa.

g1 - Vi uma entrevista do Babu Santana, seu colega de elenco, em que ele fala sobre como retratou, na série, algumas coisas que já fizeram parte do dia a dia dele na vida real, como morador do Vidigal. Você veio de uma realidade bem diferente. Como foi entrar em contato com essa realidade, não só na ficção, mas também nos relatos dos colegas?

Ravel Andrade - Eu acho que isso tem muito a ver com meu personagem. Não à toa, o [criador e produtor da série, José] Junior me convida para fazer, porque ele tem essa sagacidade de entender como o ator pode contribuir para o personagem.

Eu nasci em Porto Alegre, mas morei a maior parte da minha vida em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha. É uma realidade completamente oposta porque é uma cidade muito pacata, onde as crianças caminham na rua. Não tem problema de tráfico, tem pouquíssima violência.

"Eu assistia a essas coisas pela televisão. Só quando eu fui morar no Rio de Janeiro e em São Paulo, comecei a entender um pouco dessa realidade das favelas, do tráfico, dos acordos entre a polícia e os traficantes."

Essa novidade, que foi para mim entrar em um presídio e conhecer aquela densidade, foi muito importante para mostrar o Egídio entrando num presídio, também pela primeira vez.

A minha cabeça tinha outra visão da sociedade, não era dessa sociedade violenta. Eu sou um cara branco. Eu caminho na rua e não sou parado pela polícia, eu quase não sou parado. E, quando sou, a abordagem é completamente diferente. Então, para mim, chegar ali e ouvir todos esses relatos foi ótimo para a construção do meu personagem e da minha consciência como cidadão.

"Tem muita gente que vive numa bolha, num mundo mágico dos Ursinhos Carinhosos, e que acha que a vida é isso. Principalmente as pessoas que têm um pouco mais de dinheiro."

Rômulo Braga e Ravel Andrade em cena de 'O Jogo que Mudou a História' — Foto: César Diógenes/TV Globo

g1 - Por que é importante entender a gênese do crime organizado no Brasil de hoje?

Ravel Andrade - Porque o crime organizado nada mais é do que a carência do estado. As milícias, o tráfico muito violento, tudo tem a ver com isso. Onde o estado não está, as pessoas, por sobrevivência, precisam se organizar. Não quero justificar: há pessoas que são do mal mesmo, assim como há pessoas com dinheiro que fazem maldade.

Mas a gênese do crime organizado tem a ver com a busca por direitos, por dignidade dentro da cadeia. Tem um personagem que fala isso na série: os caras querem que vocês [presidiários] se matem. O estado quer mais é que essas pessoas se matem, continuem se matando. O crime surge dessa necessidade de dignidade, de organização.

g1 - Você contracenou com seu irmão, Júlio Andrade, na série "Betinho - No Fio da Navalha" e ele também faz uma participação especial em "O Jogo que Mudou a História". Vocês conversam sobre atuação nos eventos de família?

Ravel Andrade - Sim, a gente conversa muito, desde sempre. Quando eu era pequeno, o meu irmão já estava fora de casa e, quando ele vinha para almoçar ou passar o final de semana, o assunto sempre era esse: os trabalhos dele, os filmes que ele fazia. E, mais do que isso: ele me levava para as coxias dos teatros, para os sets de filmagem. Então, desde pequeno, a gente troca sobre arte.

Quando ele foi convidado para fazer o filme do Paulo Coelho ["Não Pare na Pista - A Melhor História de Paulo Coelho", de 2014], eu morava e fazia teatro em Porto Alegre. Tinha uns 19 para 20 anos. Ele me falou que estavam com dificuldade para achar o Paulo Coelho jovem, e que tinha sugerido meu nome para um teste.

"Tive esse privilégio do meu irmão abrir as portas para mim, e foi a primeira vez em que sentei com ele, pegamos um texto e contracenamos juntos."

Hoje em dia, estamos mais amadurecidos. Já temos discussões mais profundas sobre atuação. Mas, sempre que eu pego um trabalho ou que ele está em um novo projeto, debatemos e pedimos a opinião um do outro. Eu sou muito privilegiado de ter um irmão que é também um ídolo. E um guru, porque ele também me dá visões da vida, para além da arte.

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