Parabéns também para nossa Curva das Expectativas Flutuantes

qui, 27/09/07
por Zeca Camargo |
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Passada a euforia das comemorações, e depois de ter aberto todos os presentes (como eu resolvi classificar cada comentário deixado aqui sobre o último post – aliás, muitíssimo obrigado), retomo aqui as energias para o blog ano 2! Considerando que escrevo este post no meio de uma longa viagem de trem por este país que vou explorar por esta e mais duas semanas (calma, as pistas sobre ele só virão semana que vem), depois de alguns dias bastante intensos de gravação, onde as horas do relógio teimam em não falar a mesma língua do meu metabolismo, não sei bem onde vou buscar essas energias…

Mas é preciso correr atrás delas, pois é tempo de uma nova Curva das Expectativas Flutuantes – e, ao pensar num título para hoje, me ocorreu que ela já está na sua décima segunda edição mensal (é a décima primeira, na verdade, mas permita-me uma licença poética…). Logo, parabéns para ela também. Aos que chegam agora (e não são poucos o que se declararam, nos comentários anteriores, como freqüentadores recentes deste blog), vale lembrar a origem desse despretensioso exercício de reflexão sobre nosso tão volátil interesse pela produção cultural.

Inspirado (ou melhor, descaradamente copiado) da revista “New York”, ela não pretende julgar os eventos culturais, mas apenas medir o nível de entusiasmo e/ou rejeição ao que está acontecendo na temporada. Assim, algo que aparece na categoria “bochicho” não é necessariamente bom – mas está sendo bastante aguardado. E o que acaba classificado como “ressaca” não é necessariamente ruim – só que ninguém agüenta mais ouvir falar, ou, de repente, depois que ele foi visto/lido/escutado/assistido, deixou a impressão que não era tudo aquilo que se esperava.

E não se trata de nenhuma palavra final. Desde o início, convido os próprios internautas a dar palpites, concordando ou discordando – sempre de acordo com o que eles estão percebendo no boca-a-boca das filas de cinema, teatro, noites de autógrafo, ou mesmo em conversas na frente da TV. Se você der uma olhada na primeira curva, vai ver como nossa expectativa é realmente flutuante (descontando o fato de, vejam só, “O ano em que meus pais saíram de férias” ter voltado às manchetes por causa do Oscar).

Enfim, como a Curva é baseada em comentários – e não nos próprios eventos que nela aparecem -, dou-me o luxo de fazer esta edição longe do território nacional. Mesmo distante, os e-mails não param – e uma passadinha diária pela internet ajuda a dar uma atualizada no que está sendo mais ou menos falado. Nesse sentido, nada supera a pergunta “quem matou Taís?”. Já experimentou dar um google nela? Na minha última tentativa, encontrei 218 mil links. Eu sei, eu sei: esse mistério vai ser desvendado amanhã (e se você estiver lendo isso depois de sábado, minha colocação nem vai fazer mais sentido). Mas hoje, quinta, quando vai ao ar o penúltimo capítulo de “Paraíso tropical”, essa discussão está no ponto de saturação – a um passo de se tornar um ruído irrelevante nas conversas informais. Porém, conto com a astúcia de Gilberto Braga para que o tópico de discussão dos próximos dias seja: “Você viu quem matou a Taís?”.

Ainda falando de TV, acho que, à essa altura, posso falar bem de um quadro do “Fantástico” sem ser cabotino, certo? Um ano depois, todo mundo já entendeu que isso aqui não é um instrumento de propaganda do programa onde eu trabalho, certo? Se restar alguma dúvida, é uma pena, pois eu não tenho como não falar de algo que é uma unanimidade quanto às ótimas críticas: as reportagens de Regina Casé nas periferias pelo mundo. Não vou me alongar (porque aí sim vai parecer esquisito), mas se você já viu pelo menos um episódio, vai concordar. E, de certa maneira ainda na periferia (pelo menos no que diz respeito aos ouvidos mais cosmopolitas), não faltam elogios também para o novo disco de Manu Chao, “La radiolina”.

Como prova de que uma mesma atração pode começar numa ponta e terminar na outra, a montagem brasileira de “Os produtores”, impecável adaptação que esteve em alta conta no “pré-bochicho”, está agora tirando a paciência da platéia no segundo ato – um fenômeno que não é exclusivo, diga-se, desse espetáculo (vide o exemplo recente do não menos impecável “Sweet charity”). Será que a platéia brasileira nunca vai se acostumar ao ritmo de um musical da Broadway? Vem aí (ou melhor, vem aí “por Nova York”) uma versão para os palcos de outro filme de Mel Brooks (autor de “Os produtores”): “Young Frankenstein”. E o bochicho, mesmo antes da estréia, é tão intenso que dá para ouvir daqui – de onde eu estou -, e no Brasil também!

Porém, voltando à montagem de Miguel Falabella, deixo aqui os mais sinceros votos de que ela atravesse essa fase e chegue logo à etapa “ressaca da ressaca” – exatamente onde está “A cidade do sol”, de Khaled Hosseini, que superou toda a saturação de livros sobre o Oriente Médio e conseguiu conquistar não só os leitores (que corriam o risco de ficar com implicância permanente ao tema), mas também a crítica.

Com esses exemplos todos, deu para entender o espírito (se é que você é da “geração” que não pegou o início da Curva lá no final do ano passado)? Muito bem, então fica fácil agora falar do resto. Dá para sentir que, com a estréia oficial do filme finalmente por aqui, mencionar “Tropa de elite” (que está no “ponto de saturação”), sem ter algo novo para dizer pode ser um passo em falso social? E que é evidente que “High school musical 2″ não despertou exatamente a febre da história original, não é mesmo? Preciso explicar porque dois dos diretores independentes americanos mais queridinhos de todos os tempos, Wes Anderson e Todd Haynes, já estão criando um pré-bochicho para seus filmes, respectivamente “The Darjeeling train” e “I’m not there”?

Então aí está a Curva deste mês. E repito, o convite feito há quase um ano: comente, critique, acrescente – ou faça agora sua própria lista e mande para cá. Ah! E na segunda-feira, prometo: você vai encontrar aqui uma foto inédita e uma pergunta já conhecida: “onde eu estou”?

Nesta data querida!

seg, 24/09/07
por Zeca Camargo |
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A caminho de um novo destino (sobre o qual ainda quero fazer algum suspense), passo por Londres e logo surgem as tentações: um novo disco de Manu Chao (“La radiolina”); uma exposição de Matthew Barney, na Serpentine Gallery; em cartaz nos cinemas, uma adaptação do sensacional livro de Ian McEwan, “Reparação”; nas prateleiras, um promissor novo título de J.M. Coetzee, “Diary of a bad year” (como resistir a um livro com esse nome: “Diário de um ano ruim”?); e que tal uma adaptação do clássico de Almodóvar, “Tudo sobre minha mãe”, no palco do sempre instigante teatro Old Vic?

Com tantas coisas preciosas para escrever, por que ser auto-referente e falar sobre… este próprio blog? Bem, em primeiro lugar, porque, para quem liga para datas (e eu tenho de confessar que eu me encaixo nesse grupo), amanhã ele completa um ano. Um ano! Para ser coerente com minhas observações passadas, se, quando cheguei à marca dos seis meses, em março passado, eu dizia que, em tempos de comunicação virtual, meio ano de existência na internet já poderia ser considerado um aniversário, doze meses então equivalem praticamente a um jubileu de prata.

Mas de que valeria se eu celebrasse aqui apenas a sobrevivência (por 12 meses neste ambiente tão selvagem como é a internet) deste que vos escreve – que possui, inclusive, uma queda especial por textos, digamos, insistentemente longos para uma mídia como esta, e que insiste, de maneira quase teimosa, em falar apenas sobre cultura (e, pior, segundo alguns internautas mais belicosos, faz questão de se debruçar apenas sobre coisas que gosta, refletindo a intenção explícita de não desperdiçar este espaço precioso com uma gratuita malhação, seja de alvos fáceis ou de vacas sagradas)? Que graça teria cantar o “Parabéns” para uma pessoa só?

Embora eu consiga até imaginar uma “festa” tão contemporânea como essa – alguém na frente do computador fazendo o “pique pique” para si mesmo (talvez até com um grupo de amigos o acompanhando on-line pelo msn…) -, tenho outros planos para marcar “essa data querida”. E esses planos incluem você!

Surpreso? Surpresa? Então talvez você tenha descoberto este blog hoje – nunca é tarde! Mas você, que já ciscou aqui uma vez ou outra – e não vou nem falar de você, caríssimo ou caríssima, que me prestigia aqui com certa freqüência – sabe do que estou falando. O que eu faço questão de comemorar é a singela longevidade de um espaço onde a discussão floresce, esse pequeno oásis onde, no último ano, foi possível não apenas colocar meus pontos de vista muitas vezes bastante idiossincráticos, mas também conhecer a sua opinião. E não estou falando apenas de elogios breves (sempre muito bem-vindos) ou dos incansáveis (e invariavelmente anônimos) críticos de plantão (que até hoje não entenderam que o que eu escrevo aqui tem bem menos a ver com o local onde eu trabalho do que com o que se passa dentro da minha orgulhosamente imprevisível cabeça).

Me refiro a você que, com rara dedicação, sempre parte do que é escrito aqui e sugere caminhos para que a discussão vá além. Você que deixa aqui não apenas um comentário breve, mas uma prova de que nesse meio tão injustamente rotulado de “raso”, que é a internet, é possível encontrar argumentos estimulantes e desenvolver, ainda que como um esboço, uma argumentação mais… interessante (quando não profunda). Sim, os parabéns vão para você que, não só “mordeu a isca” – já que, depois de um ano, me sinto na obrigação de revelar que um dos meus objetivos pessoais com esse blog era ver se esse exercício era possível -, mas foi capaz de superar (e muito!) a minha expectativa.

Os exemplos abundam… Para pegar alguns recentes, veja o que foi dito sobre o post recente sobre “Tropa de elite”: “P/ mim o filme pode ser alvo de várias discussões sociológicas, pois aborda a visão de ricos e pobres sobre o tráfico e violência; o financiamento do tráfico, q se expande por atitudes de vários setores da sociedade e, também, toda uma rede de poder e interesses q está presente na polícia (como em várias outras categorias profissionais)” – comentário enviado por Fabiane. Ou ainda: “Esse discurso sobre pirataria me parece um pouco hipócrita, muitas dessas pessoas que dizem que é ilegal ver um filme pirata não tem a menor vergonha de comprar drogas e alimentar o crime organizado” (Joana).

Ao serem provocados sobre a existência de Deus, veja o que responderam alguns internautas: “Fico pensando em tudo que acabei de ler… se Deus não existe, por que estou aqui? Por que ainda acredito no ser humano? Por que saio de casa bem cedo, ralo pra caramba e chego à noite ainda agradeço pelo dia infernal que tive?” (anônimo); “Eu (ainda) me espanto a ver quantas pessoas continuam preferindo eleger qualquer idéia absurda -a de que Deus existe – a encarar sua finitude como um fato natural. Como pensar que cada indivíduo é eterno? Que sua alma permanecerá (individualizada) para sempre?” (AMOY). Isso para dar apenas dois exemplos.

O debate, felizmente, não fica restrito aos chamados “grandes temas”. Vamos um pouco mais para o “passado”, em maio deste ano, quando Cris Nicolotti dominava as paradas musicais do nosso subconsciente, com o sucesso “Vai tomar no cu”. “Será que fui a única pessoa que achou esse ‘Hit’ do momento uma falta de criatividade? Pois é, foi o que pensei, tô ficando crítico demais (sem falar em velho gagá).
Somos internautas, eu diria, veteranos… “, escreveu o Thiago Hedler (“veterano” aos 20 anos!). Na defesa do “hit”, um outro Thiago mandou: “ainda ontem mostrei pra um amigo de no máximo 22 anos e ele me chamou de retardado, que só achava baixaria na internet, mas antes disso, domingo passado num almoço de família quando encontrei o vídeo e mostrei pra minha tia, de uns 40 e muitos, ela perdeu as forças das pernas e caiu, chorando de rir na minha cama, mandou eu passar o link pro e-mail dela pra ela passar para as amigas quarentonas dela.. Comédia pura, quem não entendeu quer dar uma de puritano ou ainda não possui o dom de rir do que é simples…”.

Rock n’roll também deu boa discussão – pode conferir nos posts sobre The Gossip e Bonde do Rolê. Ao falar sobre o choque de gerações que vivi ao entrevistar a banda Arctic Monkeys, Patrícia Silva descreveu sua experiência: “Também passo por essas crises diariamente. Tenho 28 anos e faço faculdade de jornalismo com uma turminha de 18, 19, 20 aninhos e apesar da diferença de 8 a 10 anos, parece que vivo em outro mundo. Falo de coisas que eles não viram, só escutaram falar. Mas acaba sendo legal, justamente a troca de experiência entre todos”.

“Sucesso de bilheteria X filme independente” (traduzindo, “Piratas do Caribe 3″ x “Nome de família”)? Veja algumas ponderações: “Se eu falar que das 10 salas de cinema na minha cidade aqui em Uberlândia, 4 são pra piratas, 2 pra homem aranha (isso pq quando estreou tinha 4 salas tb) vc acredita?” (Paula Arantes); “Filmes simples, sem grande efeitos e sem grande elenco conseguem me mudar para sempre – revejo meus conceitos, minhas verdades e saio alguém melhor, ou no mínimo diferente” (Henrique); “É aquela coisa da indústria cultural falada por Adorno (!!) que faz a gente, consumidores capitalistas, assistir aos filmes de grande circulação e muitas vezes esquecer que tem muita coisa interessante longe de todo esse esquema” (Sol Costa).

E quando elogiei esse espaço tão especial onde ainda é possível praticar algo ligeiramente fora de moda como uma simples conversa – um lugar chamado “livraria” – as respostas foram apaixonadas: “Gosto de dizer que livros e um bom capuccino formam a química perfeita, seus aromas se misturando” (Fernanda Rabelo); “Amo a leitura, mas também a tv, o computador, os cds, os dvds. etc. … sou de uma época em que estes aparelhos só existiam na ficção, Zeca, tenho 78 anos e sou mulher, que coisa einh!” (anônima – infelizmente…); “Eu não gosto muito de mega livrarias (junto ou separado?). Vou dizer por quê. Os vendedores não entendem de livros. Pode ser só na minha cidade, mas é uma vergonha. Lugares onde o livro é tratado como simples mercadoria (o que ele não deixa de ser) não me constrangem. Em compensação, tem um sebo, pequeno, que eu freqüento, onde todo mundo me conhece e me chama pelo nome, que é uma das melhores livrarias do mundo” (anônimo).

E não vamos nem na polêmica sobre Harry Potter

Poderia citar aqui mais algumas centenas de exemplos de comentários interessantes, mas acho que você já me entendeu (além do que, eles, todos os quase 6.000 – sim, quase seis mil! – estão a apenas alguns cliques de você). O que quero realmente celebrar aqui, ao marcar a passagem do primeiro ano deste blog, é a troca – essa sim, o subproduto mais positivo de um blog. Eu sei, seu sei: a maioria das pessoas (especialmente aquelas que preferem ficar longe do formato) insiste em dizer que esse é o tipo de comunicação mais superficial que já foi inventado.

Mas, para usar aquela expressão em inglês que me é muito cara, “I beg to differ” (ou, “eu imploro para ser diferente”, em mais uma tradução “apressada”…). Isso aqui é sim um espaço precioso de intercâmbio de idéias. É, sim, uma vitrine de opiniões. É, sim, um fórum. E, sobretudo, é algo que não sobrevive se tiver só um “mané” falando do lado de cá. Obrigado a todo mundo que se prestou a ser “o lado de lá”. E que essa hidra maluca que é a cultura me traga inspiração para mais um ano – ou quem sabe mais alguns? Será que eu dou conta?

Para quando você encontrar sua alma gêmea na Nicarágua

qui, 20/09/07
por Zeca Camargo |
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Digamos que você está passeando por lá – pela Nicarágua. E um enorme vazio emocional toma conta de você. Refletindo um pouco, você percebe que finalmente chegou a hora de procurar alguém que te complete. Pronto! Você já tem uma missão na vida (quantos são os que passam por ela sem sequer pensar nessa busca?). Então, você está andando pelas ruas de Manágua e… encontra essa pessoa! O que você diz? Imagine, é o momento mais importante da existência de um ser humano – e você não tem nada para falar? Calma! Já está disponível no Brasil o incrivelmente útil “almanaque das palavras que a gente não tem”. É só você correr na página 78, no item “Coisas do coração”, e lá está: “alamnaka”! É essa palavra que, no dialeto ulwa (encontrado na Nicarágua), é usada para descrever o ato de encontrar sua alma gêmea.

“Tingo – o irresistível almanaque das palavras que a gente não tem” (Conrad editora) é um livro pequeno, mas que abre um horizonte infinto. Eu o descobri no ano passado, numa livraria em Londres. Sempre apaixonado por palavras (mais sobre isso daqui a pouco), apressei-me em comprar um exemplar, na esperança de que esse não fosse apenas mais um título indistinguível da recente onda de lançamentos para satisfazer o infindável apetite dos ingleses sobre curiosidades lingüísticas. E minha intuição estava certa! “Tingo” é uma breve e fascinante viagem a línguas e culturas estrangeiras que, ao tentar dar nomes aos vários caminhos que nossos pensamentos, sentimentos e ações tomam, acabam criando um riquíssimo mosaico do comportamento mundial.

Falar bem uma língua já é um feito e tanto – especialmente uma tão sofisticada como a nossa, o português. Mas, se você tem o mérito de dominá-la – e se orgulha (como deveria) disso – prepare-se para uma decepção: ela não contém todas as idéias do mundo…

Por exemplo, nos falta uma palavra para “parecer bonita depois de uma doença – “mahj” (persa). Ou como expressar quando se acorda revigorado depois de uma boa noite de sono? Os dinamarqueses sabem: “morgenfrisk”! Na Indonésia, uma criança sabe exatamente quanto dói um “nylentik”, ou “um peteleco da orelha com o indicador”. Nos falta, por exemplo, uma palavra para um ato tão comum, que é comer os restos de comida de outra pessoa – algo que os esquimós, em inuíte, chamam de “sunarsopok”. E que inveja dos albaneses, que têm 27 expressões diferentes para… “bigode”!

Nas suas breves 213 páginas (da edição brasileira), “Tingo” oferece múltiplas viagens pelo complexo raciocínio humano. Por que algumas expressões são tão fundamentais em algumas línguas e inexistentes em outras? Seria a existência de uma “pessoa amável, mas que se deixa enganar facilmente”, algo apenas possível no universo iídiche? Será que só no Paquistão as crianças brincam de “kabaddi”, prendendo a respiração? Apenas as mulheres grávidas do Peru (e apenas aquelas que falam o quíchua) têm sardas no rosto? Só os turcos cantarolam baixinho para si mesmos (“dizlanmak”)? Só os alemães ouvem uma música e depois não conseguem a tirar da cabeça (“Ohrwurm”)?

Quando encontrei esse livro, mal podia acreditar que alguém pudesse ter tido a paciência de compilar esse tipo de informação. Mas seu autor, Adam Jacot de Boinod, teve – e com isso deu um presente maravilhoso a todos nós, que amamos as palavras.

Não vou nem me alongar muito no post de hoje, pois quanto mais exemplos eu der, mais eu tiro seu prazer de mergulhar em “Tingo”. Quero apenas contar uma história para justificar essa minha paixão. Eu era ainda moleque – bem moleque – quando ia para a casa do meu tio Cacaso, no Rio e passava tardes “encaloradas” explorando a sua pilha de revistas. Professor e poeta, ele também tinha uma relação especial com as palavras e colecionava textos e mais textos – não foi à toa que ele era meu padrinho: anos mais tarde, eu mesmo reproduziria essa mania… Mas, enfim, foi nas páginas da revista “Veja” dos primeiros anos da década de 70 que eu descobri o escritor Millôr Fernandes – e, com ele, o encantamento das palavras.

Para ser honesto, tenho que confessar que o que me chamou atenção primeiro para seu trabalho foram aqueles desenhos tão bizarros que fazem parte (até hoje) do imaginário de Millôr – onde já se viu passarinho com dentes? Mas daí para ser seduzido por suas palavras, foi um pulo. Em 1974 (eu apenas com 11 anos), ganhei um livro chamado “Trinta anos de mim mesmo” – uma espécie de compilação de escritos do próprio Millôr. E, entre tanta coisa fascinante, me encantei com trechos batizados de “Dicionovário”. Alguns verbetes: “caligrafeia – letra ruim”; “filhosofia – sabedoria do descendente”; “miltidão – reunião de mais de 999 pessoas”; “walternativa – a opção de Walter”.

Tinha também outra parte que se chamava “Dicionário definitivo”, com entradas como: “atraso – aquilo que quando chegamos sem, os outros vêm com muito”; “etc. – forma lingüística de dar a impressão de que sabemos ainda muito mais”; “técnico – o único a saber que, daquele assunto, também ele não entende nada”. E tinha, claro, todo o resto do livro, que era fascinante (e que, para minha alegria, foi reeditado no final do ano passado, pela Desiderata – se bem que eu tenho uma saudade da minha edição original… se alguém souber onde posso encontrar uma, me ajude).

Mas faço esse registro apenas para contar que, quando me deparei com “Tingo”, naquela livraria em Londres, a primeira pessoa em que pensei foi no Millôr. Instintivamente, comprei um exemplar para ele. Não que eu o conhecesse pessoalmente – quem dera. Mas tinha a certeza de que saberia como chegar até ele. E chegou. O resto é uma história pessoal demais para contar aqui. O bacana dela porém – e é isso que quero usar para concluir – é que senti, com esse gesto, ter fechado o ciclo. Eu tinha, finalmente, dado ao cara que me fez um apaixonado por palavras, algo que pudesse despertar nele o mesmo entusiasmo que ele despertou em mim. Bingo! Quer dizer… Tingo!

Para o significado da palavra que dá título ao livro… vou fazer um suspense e convidar você mesmo a descobri-lo folheando o volume. Mas não posso me despedir hoje sem dar pelo menos a definição daquelas quatro palavras que eu mencionei no post anterior. “Farik”, em persa, serve para descrever uma mulher que odeia o marido (conhece alguém que você pode chamar assim?). “Kökochöka”, em nauátle (uma língua antiga que ainda se encontra no México) serve para definir o som produzido quando se engole em seco – quer algo mais fundamental do que isso e que o nosso português não oferece? Na Ilha de Páscoa, se alguém desaparece e não faz o seu trabalho, ele é imediatamente chamado de “kopuhia”, na língua rapanui (tenho certeza de que você conhece alguns “kopuhias”…). E “menetah”, na Indonésia, é usado para o ato de “segurar as mãos de uma criança para ajudá-la a manter o equilíbrio quando está aprendendo a andar”. O que poderia ser mais simples?

(Segunda que vem, todos convidados para a grande festa de aniversário desse blog… ao contrário do que se poderia esperar, não vou fechar para balanço, mas sim chamar a todos para uma boa reflexão. Quer começar por onde?)

Por que ainda não vi “Tropa de elite”

seg, 17/09/07
por Zeca Camargo |
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É o filme do ano – ninguém duvida. Não estreou ainda, é verdade. Mas é o filme do ano. Pelos motivos errados. Quer dizer, “Tropa de elite” vai ser o filme do ano pelos motivos certos, mas por enquanto ele é o filme do ano pelos motivos errados.

Você sabe do que eu estou falando – provavelmente até já assistiu ao filme que ainda nem estreou. E, se o fez, foi numa versão pirata. Pode ser que você tenha pago R$ 5,00 por ela num camelô, ou simplesmente tenha visto um DVD emprestado de alguém que tenha pago os R$ 5,00 por ela. Ou pode ser ainda que você trabalhe (ou conheça alguém que trabalhe) em um quartel – e aí, quase com certeza, você não pagou nem os R$ 5,00 reais por ela, mas teve o prazer de assistir a uma cópia “confiscada”.

Eu não pertenço a nenhum desses grupos. Aliás, eu pertenço a um grupo ainda mais “destransado”: aquele que “boiou” enquanto a polêmica das cópias piratas de “Tropa de elite” estava rolando forte, e só agora resolveu falar do assunto – caindo assim na minha própria armadilha, comentando alguma coisa muito depois de ela já ter passado pelo ponto de saturação de uma certa “Curva das Expectativas Flutuantes” (meu colega de blog, Bruno Medina, vai notar, em especial, essa ironia). Claro que seria fácil eu pertencer ao grupo dos que já assistiram ao filme: era só passar a “adquirir” uma cópias dessas (só neste fim de semana, topei com três barracas que a vendiam – e estou falando de zona sul do Rio de Janeiro…). Mas eu não quero pertencer a esse grupo.

Minha defesa, pode ficar tranqüilo ou tranqüila, não vai ser na linha nostálgica, tipo “não existe melhor lugar no mundo para assistir a um filme do que o cinema”… Também não vou apelar para o discurso, cada vez menos útil, sobre os malefícios da pirataria. Tentando ser ligeiramente original na minha explicação não quero ver essa versão de “Tropa de elite” simplesmente porque não é essa versão que o José Padilha quer que eu veja.

O diretor, não é, claro, meu amigo pessoal. Mas eu tenho certeza de que essa não é a versão que ele quer que eu veja – por mais que essa versão seja próxima à que vai ser apresentada no lançamento oficial dentro de alguns dias. Insisto que meu argumento não é o velho ramerrão – que, dependendo de quem o enuncia, ainda soa hipócrita – de que vivemos o prenúncio do fim da criação artística. Não vale nem a pena recontar aqui a epopéia da distribuição de música pela internet nos últimos dez anos, nem mesmo passar rápida pela aborrecida questão da crise das gravadoras.

Como todo bom fã de música sabe, elas (todas) passaram anos explorando artistas e consumidores; tiveram pelo menos duas décadas de extremas prosperidade cobrando preços abusivos por CDs que abarrotavam seus catálogos; e resistiram o que puderam às novas tecnologias, talvez achando que “essa coisa de internet, de dividir arquivos (file sharing)” seria só algo passageiro ou, na pior das hipóteses, algo que eles podiam controlar prendendo pré-adolescentes que trocavam suas coleções de música pela internet. Apesar de respeitar (e muito) todas as pessoas que trabalham em gravadoras (resumindo a defesa delas a uma frase, eu diria que o rock e o pop não seriam essa força cultural no último século se as gravadoras não existissem como tal), não tenho um pingo de dó da miopia com que elas encararam essa – para usar um termo mais… acadêmico – “mudança de paradigma”. Isso não é, claro, um elogio à subversão – o que jamais poderia vir de mim que, como você que me acompanha aqui há quase um ano já se acostumou a ler, faço parte daquela espécie em extinção: aquela que ainda gosta de ter, tocar, colecionar, e, portanto, comprar CDs.

Enfim, não tenho dó, porque, ironicamente, foram os próprios artistas que, ou cansados de um esquema que nunca os favoreceu, ou simplesmente olhando mais para frente e pensando de maneira mais inteligente sobre alternativas para o futuro da música, driblaram o assunto: aposto que você encontra, oficialmente, a música de seu artista favorito aqui mesmo na internet, sem muitos obstáculo (e sem cometer nenhum crime). Isto é, se o seu artista, ou sua banda favorita, for relativamente… jovem. Digamos, de Beck, ou dos Beastie Boys para menos – para citar apenas dois “veteranos” que souberam se reinventar nessa era digital. Caso contrário, se eles estão mais para o título de “dinossauro do rock”, a estratégia deles é inventar uma turnê tipo “revival”, como a que o Police anunciou recentemente, sob a aprovação imediata de milhões de fãs que correram para comprar ingressos (para o melhor comentário sobre essa “tendência”, afine seu inglês e clique aqui).

Portanto, essa choradeira repetitiva não cola comigo: uma vez que os próprios artistas estão disponibilizando seu material, não vejo porque os fãs não podem aproveitar. No caso de “Tropa de elite”, porém, a situação é outra. Por tudo que li, a versão do filme que está rolando por aí não é o trabalho final de José Padilha. E minha tendência é respeitar a visão autoral de um artista que produziu algo tão forte e genial como “Ônibus 174″.

Não viu? Ah… é documentário, né? Você deve achar chato… Que pena, pois você deixou de assistir a um dos melhores trabalhos do cinema brasileiro dos últimos… sei lá quantos anos! Não quero gastar muitas linhas com isso agora (apesar de reafirmar que, se você gosta de filmes, você tem obrigação de ver “Ônibus 174″), mas vou só dizer que, se você acha que não precisa revisitar esse triste episódio do cotidiano brasileiro, simplesmente porque se lembra bem do que aconteceu naquele fim de tarde tensa de 2000 no bairro carioca do Jardim Botânico, você nem sonha como é possível transformar, ou melhor, ampliar e interpretar uma realidade através de uma obra de arte.

Tenho certeza de que, com “Tropa de elite”, o diretor oferece mais um trabalho genial. Não assisti, mas colho cá e lá várias impressões de pessoas que viram (e cujo julgamento eu confio). E tento separá-las claro, de todas as implicações “sociais” que um filme sobre o Bope (especialmente do bizarro frisson que ela vem causando em turmas de “mocinhos” e também na de “bandidos” – preciso explicar as aspas?). No balanço, tudo só faz crescer meu palpite de que esse é um filmaço. E o trailer oficial do filme, que você pode conferir logo abaixo, só aumenta essa expectativa.

Só que essa expectativa pode ser perfeitamente administrada por alguns dias até que eu assista, finalmente, à versão oficial que será lançada nos cinemas, assinada pelo próprio diretor. Provavelmente não vou estar aqui quando isso acontecer, pois estou de saída para uma viagem especial (que, sim, como você já adivinhou, vai ser mais uma oportunidade para eu mandar um post na linha “onde eu estou?”) nas próximas semanas. Antes disso, outros assuntos, claro, vão passar por aqui: segunda que vem, prometo um bom balanço do primeiro aniversário deste blog; e antes disso você ainda vai saber, na próxima quinta-feira, o que significam palavras como “farik”, “kökochöka”, “kopuhia” e “menetah” – não vale mandar um google nelas agora…

Mas, quando der – quem sabe quando eu voltar da viagem – vou querer usar este mesmo espaço para comprovar que “Tropa de elite” é o filme do ano. E pelos motivos certos.

O coração

qui, 13/09/07
por Zeca Camargo |
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Termina neste domingo, em Londres, uma das exposições mais inesperadamente curiosas da temporada. Trata-se da exibição de parte do acervo pessoal de sir Henry Wellcome (1853-1936), o magnata que construiu sua fortuna na indústria farmacêutica entre os séculos 19 e 20 – mas que era também um grande explorador e um incansável colecionador, especialmente no que se referia às artes e às ciências, e que se relacionasse direta ou indiretamente com a saúde e o corpo humano. A exposição está montada no prédio da Wellcome Collection, em Euston Road, que funciona de terça a domingo, das 10h às 18h (abre às 11h no domingo; fecha às 22h na quinta). A entrada é gratuita.

Um texto como esse do parágrafo anterior é uma espécie de padrão para comunicar um evento cultural. Simples, claro, direto, correto, que sobretudo cumpre sua principal função jornalística: a de informar. Mas este blog (que em breve, brevíssimo, completa uma ano), embora sempre correto (pelo menos de acordo com as minhas idéias e convicções – sem falar, é claro, das referências que ele fornece a você), nem sempre, tenho de admitir, é claro e direto. Simples? Hummm… às vezes, vai…

Então, o que um parágrafo como aquele que abre o post de hoje está fazendo aqui? Certamente convidando os leitores para uma exposição exemplar, que, entre tantos elogios recebidos, tem o mérito de, segundo a revista “The Economist”, não sobrecarregar o visitante com informações desnecessárias nem os confundir com “a sensação preocupante de que eles deveriam ter pensamentos abstratos sobre arte”. Um convite que, claro, quase ninguém poderá aceitar sem pensar – a não ser que você esteja com uma viagem marcada à capital britânica para este fim de semana…

Mas esse não é o único intuito – nem sequer o principal. Também não quero, puxando esse assunto, esnobar meus dedicados leitores (e comentaristas!) com mais um produto cultural ao qual eles não terão acesso imediato – até porque, você que agora me lê está a apenas um clique de uma visita virtual à exposição.

Não, não, não. O motivo maior que leva este idiossincrático blogueiro a escrever sobre mais esse obscuro evento cultural (alguém quer jogar a primeira pedra e dizer que uma mostra sobre medicina não pode ser chamada de “evento cultural”?) é, como a totalidade das escolhas sobre o que aparece neste espaço, bastante pessoal.

Visitei essa exposição em julho passado, movido sobretudo pelo texto da “Economist”. O cenário artístico, na época, só falava da tal caveira cravejada de brilhantes, criada pelo sempre polêmico Damien Hirst e exibida então na galeria White Cube e posteriormente vendida por cerca de R$ 200 milhões (para um bom comentário sarcástico sobre essa peça, clique aqui). A “Economist”, sempre irônica, fazia graça dizendo que a obra de Hirst chamava atenção muito mais pelo seu brilho exagerado do que por sua conexão com o cérebro humano. Traduzindo: o que se passa por arte hoje tem mais a ver com autopromoção do que com qualquer elaboração intelectual…

Deixemos, porém, esse debate (também interessantíssimo) para uma outra hora. Basta dizer que o tal artigo me cutucou de tal maneira que venceu minha histórica antipatia por qualquer assunto ligado às chamadas áreas biomédicas. Não sei muito bem a razão – será que é por que eu sou filho de médico (na linha “casa de ferreiro, espeto de pau”)? A verdade é que esses assuntos nunca foram meu forte na escola (no meu tempo, tudo isso era chamado de “ciências”!); nunca gostei de ver sangue (nem o próprio); nunca me senti confortável num hospital (nem como visitante); e acompanho o noticiário desse universo apenas como uma obrigação (uma mulher com o rosto transplantado ou novo remédio que ofereça soluções inéditas para quem sofre de alguma doença ou disfunção – coisas assim). Passei por cima de tudo isso, reservei uma manhã inteira, fui à Wellcome Collection – e fiquei encantado.

Com o que exatamente? Talvez com o coração (de verdade) de uma baleia – tão grande que tive a impressão de que ele pode conter um corpo de um adulto humano, bem encolhido! Talvez com as várias canções (do blues ao pop contemporâneo) que discretamente saíam das paredes da exibição. Ou com os antigos manuscritos e ilustrações (antigos mesmo, tipo… Egito) que descreviam esse órgão que sempre foi um mistério para os homens. Quem sabe com os exuberantes livros medievais, registros de uma época em que a anatomia avançava a passos lentos? Ou o filme didático americano dos anos 60 que explicava num abominável tom professoral o modelo de Galen, com o qual a humanidade entendeu, por muitos séculos, a circulação sanguínea ? Certamente fiquei fascinado pelos desenhos de Leonardo da Vinci – em especial aquele com detalhes incríveis sobre um coração bovino. Também fui cativado pelo minidocumentário sobre o primeiro transplante humano, bem como pelo impressionante conjunto de obras de arte – propriamente ditas – que tinham alguma coisa a ver com o coração.

Só sei que duas horas e meia depois – bem mais do que o tempo que eu tinha planejado gastar por lá – eu saía da Wellcome Collection, como disse antes, encantado. Não só com a coleção, com a montagem, com essa ou aquela peça que ficaram gravadas na memória – mas com o fato de ter sido seduzido por um assunto que eu achava impossível me cativar. Curiosidade 1 X Teimosia 0. Ah, essa lição que a gente nunca absorve por inteiro…

“The heart” (o nome da exposição, que significa simplesmente, “O coração”) é o tema de hoje aqui neste blog não apenas porque ela está nos seus últimos dias de visitação. Como já brinquei anteriormente, não creio que ninguém que me lê vai conseguir vê-la antes de domingo (algum internauta aí em Londres, talvez?). Contudo, quis deixar o registro porque há dias, tudo que consigo pensar é no coração. E, a exemplo da mostra da Wellcome Collection, não só sobre o órgão em si, mas em tudo que ele evoca – essa infinita simbologia que resiste às mais detalhadas descrições científicas.

Penso nessa coisa que bate no seu ritmo alheio à nossa vontade. Rápido, fraco, irregular, elétrico, imprevisível. E que um dia não bate mais. Que, um dia, deixa de ser. E que passa, então, a significar tantas outras coisas, a representar tantas emoções – que passa a ser maior que o próprio peito que o continha, maior que nós, maior do que tudo que podemos sentir. Tão grande, tão complexo e tão cheio de mistérios que nem mesmo algo ambicioso e bem elaborado como “The heart” é capaz de esgotar – nem nas suas salas e vitrines, nem no maravilhoso catálogo que acompanha a exposição. Que foi o último livro que eu dei de presente para o meu pai.

Deus está no topo da lista dos livros mais vendidos. Boa notícia?

qui, 06/09/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Eu estava até estranhando o atraso no lançamento desse título no Brasil – uma vez que seu autor já tem várias obras traduzidas por aqui. Afinal, eu li “Deus, um delírio” (“The God delusion”, no original), de Richard Dawkins, há quase um ano, quando saí de férias pela última vez. Pode não parecer a leitura mais adequada para uma temporada dessas, mas, pense novamente: se você está a fim de ponderar sobre a existência de Deus, o bom mesmo é reservar todo tempo livre disponível – mesmo que seja em Hong Kong…

Isso foi, então, em novembro do ano passado. Mas só agora, há algumas semanas, comecei a ver reportagens sobre o livro e seu autor na imprensa nacional – e fiquei animado. Quando, no fim de semana passado, vi que a edição brasileira estava na primeira posição entre os livros mais vendidos no país, vibrei. Seria mesmo possível que um hábil e lúcido argumento contra a crença num ser supremo tivesse conquistado mais leitores (pelo menos por uma semana) do que o lacrimoso tributo de um dono ao seu cãozinho?

Fãs de Marley, não me odeiem (já tive problemas demais com os fãs de um outro Marley, um certo Bob, quando declarei no meu livro “De a-ha a U2″ que tenho minhas restrições ao reggae… ). A pergunta anterior não é uma provocação aos amantes de animais de estimação – nem poderia ser, uma vez que, como defendi dois posts antes deste, qualquer tipo de leitura é válida. O que me deixou fascinado com Richard Dawkins na primeira posição da lista, porém, é a constatação de como o gosto do brasileiro – pelo menos do leitor brasileiro – é flexível. Claro que eu não estou assumindo ingenuamente que os milhares de adoradores de “Marley & eu” simplesmente resolveram, de uma hora para a outra, questionar a Criação – mais que isso, a própria figura por trás dela! Mas o fato de “Deus, um delírio” ser “o best seller” nacional é algo bastante… entusiasmante. Dependendo do lado que você olha, claro.

Eu, por exemplo. Escrevo este texto sentado na cadeira de um quarto de um hospital, olhando alguém que é muito importante para mim descansando, enquanto seu corpo está ligado a pelo menos quatro máquinas. Colocando melhor, ele só está descansando porque essas máquinas estão permitindo que seu corpo funcione bem. Nesse mesmo quarto, reli alguns trechos desse último livro de Dawkins – agora na (ótima) tradução para o português, editada pela Companhia das Letras. Trechos como esse:

“A entrada sobre o purgatório na Catholic encyclopedia possui um trecho chamado ‘provas’. A evidência essencial para a existência do purgatório é a seguinte: se os mortos simplesmente fossem para o céu ou o inferno com base em seus pecados cometidos na Terra, não haveria motivo para rezar por eles. (…) E nós rezamos pelos mortos, não rezamos? Portanto o purgatório tem de existir, senão nossas orações não teriam sentido! c.q.d. Isso é um bom exemplo do que passa por raciocínio numa cabeça religiosa.”

Hummm…

Tudo bem, eu conheço a reputação de Dawkins como um biólogo evolucionista, digamos, polêmico. Seus livros – se não me engano, quase todos lançados no Brasil – causam sempre um certo desconforto – às vezes até entre os próprios darwinistas, de tão atrevidas que são algumas idéias que ele lança. Mesmo assim sinto que minha respiração fica ligeiramente alterada ao ler um comentário como esse que citei anteriormente. E mais esse (sobre os desafios da ciência):

“Esse trabalho jamais seria feito se os cientistas ficassem satisfeitos com o padrão preguiçoso como o estimulado pela ‘teoria do design inteligente’ (uma linha de pensamento que se opõe ao darwinismo nos EUA). Esta é a mensagem que um ‘teórico’ imaginário do design inteligente poderia transmitir aos cientistas: ‘Se vocês não entendem como uma coisa funciona, não tem problema: simplesmente desistam e digam que Deus a criou. Vocês não sabem como o impulso nervoso funciona? Tudo bem! Não entendem como as lembranças são depositadas no cérebro? Excelente! A fotossíntese, um processo desconcertantemente complexo? Maravilha! Por favor não saiam trabalhando em cima do problema, apenas desistam e apelem para Deus. Caro cientista, não estude seus mistérios. Traga seus mistérios a nós, pois podemos usá-los”.

E ainda arremata esse parágrafo citando Santo Agostinho: “Existe outra forma de tentação, ainda mais cheia de perigo. É a doença da curiosidade. É ela que nos leva a descobrir segredos da natureza, segredos que estão além da nossa compreensão, que nada nos podem dar e que nenhum homem deveria querer descobrir”.

Hummm…

Estou sentado, só lembrando, num quarto de hospital, fazendo companhia a alguém internado em estado grave. Não tenho como não pensar na morte. Não em termos de emocionalmente questioná-la – o grande exercício inútil ao qual nos atiramos quando ela nos confronta bem de perto. Mas penso nos sentidos que ela tem, nos seus desdobramentos, nas suas conseqüências e reverberações em nós, frágeis humanos. E logo vem a inevitável conexão com o divino. E em seguida mais perguntas. E reabro o livro.

Mas não se preocupe: não vou atormentar seu feriado com outra passagem longa. Este post não pretende – nem de longe – levar adiante a discussão brilhante de Dawkins. Mas apenas registrar a sensação que ele está causando nessa comunidade, que, longe de estar em extinção e a julgar pelas centenas de comentários que foram deixados aqui nas últimas semanas, está cada vez maior: a comunidade das pessoas que amam os livros e suas idéias.

Assim como eu acabo de aproximar a leitura de “Deus, um delíro” do meu cotidiano, quero acreditar que milhares de leitores estão passando pelo mesmo processo. E, como é minha proposta (há quase um ano!) aqui nesse espaço, quero apenas registrar esse… “momento cultural”. Que não é exatamente isolado.

No último fim de semana, fui ver um espetáculo chamado “La revelación”, em São Paulo: um palhaço – ou bufão, como ele mesmo se declara – fazendo um monólogo feroz, a princípio contra a Igreja Católica, mas, como vai se desvendando aos poucos, contra todas as religiões. O homem por trás disso é o ator italiano Leo Bassi – e se alguém duvidar que ele é capaz de levar uma platéia ao delírio pergunte a quem estava lá, na noite de sábado, o que aconteceu no final da sua apresentação, quando ele chamou todo o público do teatro Sérgio Cardoso para o meio da avenida Rui Barbosa. Sua mensagem e outras idéias não menos fortes estão no seu site.

Nos Estados Unidos, outro livro desafiando a autoridade de Deus, está há quatro meses entre os dez mais vendidos naquele país, segundo o jornal “The New York Times”. Trata-se de “God is not great” (“Deus não é grande”), de Christopher Hitchens – um contestador “de carteirinha” já citado aqui quando testei as águas para falar do último livro de Harry Potter. Resumo da obra em uma linha (tirada da própria lista do “NYT”): “Religião é uma força maligna no mundo”. Ainda não li, mas passei os olhos em várias resenhas (em especial a da “Newstatesman”) e já dá para imaginar o tom.

Percebe o “clima”?

Bem, para quem não queria estragar seu 7 de setembro, acho que estou despejando coisas demais nessa promessa de descanso, não é? Eu mesmo tenho em perspectiva preocupações que talvez até me impeçam de levar adiante aqui no blog todas essas idéias levantadas aqui na semana que vem – ou não (quem sabe?). Mas, para não te deixar só depois de tanta provocação, aqui vai só mais um trechinho de “Deus, um delírio”, no intuito de que Richards Dawkins seja uma boa companhia para os próximos dias e, de quebra, desejando que você colabore para que seu livro fique indefinidamente no topo da lista! Da página 56:

“Inteligências criativas, por terem evoluído, necessariamente chegam mais tarde ao universo e, portanto, não podem ser responsáveis por projetá-lo. Deus, no sentido da definição, é um delírio; e, como os capítulos posteriores mostrarão, um delírio pernicioso.”

Jovens, livres, solteiros, ricos, famosos, insuportáveis

seg, 03/09/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Passei o fim de semana com um livro meio ruim. Uma ironia, pois a última vez que escrevi aqui estava fazendo um elogio aos bons autores… Mas a culpa é minha, claro. Quem mandou ler um livro escrito por um baixista de uma banda pop? Calma, calma – eu sou um cara sem preconceitos: aqui mesmo já recomendei a obra de um vocalista – Alex Kapranos, do Franz Ferdinand -, que, desde então, já ganhou até tradução no Brasil (“Mordidas sonoras”, editora Conrad). Assim, foi com vontade que me debrucei sobre “Bit of a blur”, as memórias da fama, contadas por Alex James – justamente o baixista de uma das bandas mais legais que existem no mundo: Blur.

Não sou exatamente um fã de James, mas devoro avidamente qualquer coisa sobre Damon Albarn – ainda que por tabela. E é justamente sobre esse “artista do nosso tempo” que eu quero falar hoje. O quê? Não você não é fã do Blur? Quem sabe eu não acabo convencendo você?

No livro de James, ainda inédito no Brasil, 80% das histórias que ele conta tem a ver – adivinha – com ele mesmo. Tudo bem, afinal é uma autobiografia. Mas confesso que eu queria um pouco mais de Damien. Além de não ser muito bem escrito, o baixista coloca o vocalista num quase-limbo ao longo da história da banda. Graham Coxon, o guitarrista, muitas vezes aparece como figura principal na versão de James, especialmente nos primeiros estágios, quando eles ainda atendiam pelo nome de Seymour. A certa altura, no auge do sucesso, o artista plástico Damien Hirst aparece mais do que qualquer membro do Blur – com insistência no detalhe de que o autor e o artista (um dos nomes mais conhecidos da arte contemporânea) eram amigos desde os tempos da escola de artes.

Aliás, o que não falta a James é um nome de alguém famoso para jogar displicentemente… Apesar do tom exagerado, “Bit of a blur” tem alguns momentos interessantes. Como quando ele explica o “britpop” (pseudomovimento musical do qual eles eram supostamente os maiores representantes junto com o Oasis): “Era um monte de bandas não muito brilhantes copiando duas ou três boas, e as boas nunca se olharam mesmo olho no olho”. Ou quando ele descreve, com simplicidade, como nasceu a faixa mais conhecida do Blur, “Song 2″: “…em torno de uma seqüência de cordas, ou um ‘riff’, ou uma melodia introduzida por Damon, quatro caras numa sala sem janelas, chutando o pau” – (em inglês, “kicking arse”).

Mas a sacada mais original mesmo são os seis adjetivos que eu peguei emprestado para usar no título deste post – e que define com perfeição a atitude de uma molecada de 20 e poucos anos catapultada para mundo das celebridades. Em meados dos anos 90, os membros do Blur desfrutavam de tudo isso – juventude, liberdade, celibato, dinheiro, fama e… bem… arrogância! A partir da narrativa de James, porém, se alguém estava menos para os excessos dessa vida glamurosa e mais para as possibilidades que o reconhecimento artístico pode trazer, esse alguém era Damon Albarn.

Já entreguei aqui que sou fã incondicional dele? Bem, daqui para frente, isso vai ficar ainda mais claro… E não só apenas pelo seu trabalho com o Blur. Gosto imenso (como se diz em Portugal) de todos os álbuns que eles lançaram. Da ingenuidade dos primeiros sucessos (“She’s so high”, “There’s no other way”) à extrema sofisticação de composições posteriores (a brilhante “Tender” – cuja descrição da gravação é um ponto alto do livro de James), passando pela simplicidade genial de momentos realmente inspirados do pop (o clássico já citado “Song 2″, ou mesmo a faixas deles que mais fala o meu coração, a doce “Out of time”), não tem nada do Blur que eu não consiga gostar.

Podemos entrar em Gorillaz? Ah, não sabia que Damon Albarn está por trás desse grupo? Quem mais, se não um artista genial, pode ser responsável por músicas que tanto enchem as pistas de dança daquelas discotecas de mauricinho improvisadas na praia durante a temporada de verão como servem de trilha sonora para madrugadas para lá de alternativas regadas de substâncias ilícitas? O apelo pop do Gorillaz – que, como todo bom fã sabe, é uma banda que só existe como “desenho animado” – é tão grande que ultrapassa qualquer demografia, qualquer rótulo.

Aliás, rótulo não é com Damon. Como classificar, por exemplo, “Mali music”, seu disco de colaborações de 2002? No papel, parece mais um projeto pretensioso de um artista mimado, que foi a um “exótico” país africano gravar com músicos “primitivos”, para depois colocar um verniz de modernos recursos de estúdio, para faturar os créditos de “descolado”. Nos seus ouvidos, porém, “Mali music” é a viagem sonora mais moderna já proposta até agora neste século 21 (“Volta”, de Björk, também exaltado aqui vem colado em segundo lugar, não se preocupe). Como eu gosto de dizer, seria necessário um outro post só para falar desse álbum. Quero só registrar aqui a bizarra combinação que me fez colocar esse disco na minha lista de álbuns para levar a uma ilha deserta (hummm… boa idéia para outro post…): você se lembra dos horários dos jogos do Brasil na Copa de 2002? Pois bem, era “Mali music” que me fazia companhia nas madrugadas solitárias, quando eu substituía a narração convencional pelas incríveis sonoridades propostas por Mr. Albarn no meu iPod. E que prazer que era comemorar um gol do Brasil ao som de “4 AM at Toumani’s”!!

Alguém acompanhou o frisson que The Good, the Bad and the Queen, causou no começo desse ano? Sim, mais um projeto alternativo de Damon, com legendário baixista do The Clash, Paul Simonon, que, se não disse muito bem ao que veio, pelo menos fez seus fãs – e especialmente os mais dedicados, como eu – se debruçarem sobre o enigmático álbum lançado por eles como se fosse uma esfinge. Ainda não “captei” direito, mas se é dele, eu gosto.

E foi por pouco que não assisti à ópera que ele compôs. Sim, ópera! Quase fiz uma loucura, no finalzinho de junho, e fui para Manchester, Inglaterra, só para ver a estréia por lá de “Monkey: journey to the west”. Um megaespetáculo que mistura a animação do Gorillaz com teatro de bonecos – e performances “de carne e osso” -, “Monkey”, foi elogiadíssima pela crítica, em mais um sinal de que esse cara não faz nada errado! Não que eu esperasse algum passo em falso dele, mas, convenhamos… ópera? Se alguém quer se arriscar mesmo, pelo menos no campo musical, essa é a última fronteira – que, aparentemente, Damon cruzou com louvor (um trecho dessa performance em Manchester pode ser visto aqui).

Eu falo desse artista com tanta devoção, mesmo tendo vivido com ele um dos momentos mais constrangedores da minha carreira de jornalista. Como eu conto no livro “De a-ha a U2″, uma desastrada entrevista com ele na Cidade do México, colocou à prova minha admiração por ele. Sem a menor paciência e jogando farpas sobre o pobre entrevistador sentado à sua frente (exemplo: “não consigo me dedicar mais à música porque tenho que ficar dando entrevistas para TVs brasileiras” – que tal?), era para eu ter saído de lá com profundo desprezo por Albarn. Mas eu não consigo passar por cima de alguém que não pára de oferecer um trabalho interessante após o outro.

Há rumores de um novo álbum do Blur – que até traria Graham Coxon novamente de volta à banda. Queria ficar animado com isso, mas como quem anda espalhando a notícia é Alex James, minha tendência é a de achar que se trata de mais um truque de autopromoção. Mas pode ser que não: pode ser que Damon Albarn teve outro surto de criatividade e quer levar sua banda original a um patamar ainda mais inesperado do que “Think tank”, de 2003. Seja no trajeto imprevisível de “Caravan” ou na histeria frenética de “Crazy beat”. Mas que, sobretudo, seja para nos oferecer algo tão simples e sublime como uma “Good song” – uma música tão linda que eu simplesmente não consigo escolher uma versão só para deixa para você… A escolha é sua…