Pureza é um mito

seg, 30/07/07
por Zeca Camargo |
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Quem dera a frase do título fosse minha… Pego essa emprestada de um dos trabalhos mais conhecidos do artista brasileiro que ganhou uma excelente exposição que eu tive a oportunidade de ver num museu internacional de primeira linha – como eu escrevi no post anterior. O museu? A Tate Modern, em Londres. O artista? Hélio Oiticica.

A mostra vai até dia 23 de setembro e divide o enorme andar de exposições temporárias da Tate com uma outra retrospectiva curiosa: de Salvador Dalí. A combinação dá ao adjetivo “surreal” uma inusitada conotação. Na tarde em que fui ao museu, há duas semanas, Dalí recebia pelo menos o dobro de visitantes que a exposição de Oiticica – brilhantemente batizada de “O corpo da cor”. Mas enquanto as obras do velho (e talvez manjado) mestre catalão eram apreciadas com expressões que traduziam a pouca surpresa de quem reconhece aqui e ali imagens tão familiares do inventário visual do século passado (vazando para o 21…), as salas por onde se distribuíam os trabalhos de Oiticica eram envolvidas por um comovente silêncio.

Não era um silêncio reverente – acho que dá para fugir desse clichê. Era mais uma “não-conversa” – para usar uma expressão que talvez combinasse muito bem com os círculos artísticos por onde o próprio artista circulava nos anos 50 e 60, no Rio de Janeiro. O que seria a “não-conversa”? Bem, poderíamos debater isso pelo resto do dia… Mas, por agora, basta dizer que os visitantes trocavam olhares (e, sempre que possível, toques) enigmáticos com as obras selecionadas para a retrospectiva – e é dessa troca que vinha o tal silêncio.

Mas eu estou aqui falando de Hélio Oiticica sem antes perguntar se você tem alguma familiaridade com o artista e seu trabalho. Se você tem, fica mais fácil… Mas, se não tem, não é culpa sua. Estou louco para que alguém me corrija – ou me atualize, mas a última vez que vi uma mostra dedicada exclusivamente a ele foi na Galeria São Paulo, em 1986. Eu mesmo trabalhava em uma galeria de arte na época – a extinta Paulo Figueiredo – e visitei, com gosto, essa pequena reunião de trabalhos que, embora modesta, contava com um de seus “penetráveis” (mais sobre isso daqui a pouco), alguns “bólides”, e até, se não em engano, um “parangolé” – ou teria sido a foto de alguém usando um “parangolé”? Depois disso, soube de algumas participações em boas mostras coletivas – muitas delas descobertas numa recente pesquisa pela internet. Mas algo da dimensão do que está na Tate não registrei (e, repito, tomara que alguém me corrija).

Agora, se você também nem ficou sabendo que esse artista – possivelmente o mais revolucionário e influente que nossa cultura já produziu – estava sendo homenageado em grande escala pela Tate, também não se culpe. Uma rápida busca na rede revela apenas artigos tímidos na nossa imprensa sobre a exposição (cruzei o nome do artista com alguns dos principais veículos de comunicação nacionais, e o resultado foi… decepcionante).

Este post não pretende, nem de longe, corrigir essa injustiça. Mas não posso deixar de registrar minha modesta comemoração pessoal quando saí da Tate naquela tarde de um verão gélido, depois de ter visitado “O corpo da cor”. Há anos, perambulando por museus do mundo todo, procuro sempre por artistas brasileiros que façam parte desses acervos. É tarefa árdua. Tais obras, quando as encontro, se resumem a não mais de uma dúzia de artistas de reconhecida importância internacional – inclusive Oiticica – e só. É verdade que quanto mais nos aproximamos da contemporaneidade, maiores as chances (ainda que esparsas) de nomes brasileiros aparecerem: Vik Muniz, Rosângela Rennó, Beatriz Milhazes, Tunga, Arthur Omar – a lista está crescendo. Mas nomes que sejam unanimidade… ainda são poucos.

Por isso a minha alegria com a exposição da Tate. Por isso também esse argumento de que o barulho por ocasião dessa mostra deveria ser muito maior. Mas talvez o próprio desconhecimento da obra de Oiticica aqui no Brasil possa explicar essa falta de entusiasmo. Ninguém duvida que, nos mais intelectuais círculos artísticos, o artista seja bem reconhecido. Mas o grande público? Duvido. E é curioso um artista que estava tão ligado à cultura popular enfrente tanta dificuldade em estabelecer, hoje em dia, uma ponte entre sua obra e o público maior.

Só para dar um exemplo, Oiticica adorava levar seu trabalho para o “morro” no Rio – mais especificamente à Mangueira. Numa carta à artista Lygia Pape, de janeiro de 1969, enviada de Londres (onde ele montava uma mostra de grande repercussão na Whitechapel Gallery), ele pedia que ela localizasse Jerônimo – seu parceiro na Mangueira: “Decidi que ele vai estar no pôster que estamos preparando para minha exposição: ele é o símbolo da ‘Tropicália’.” (E você achava que a palavra surgiu com a música de Caetano, hein?). Mais adiante, ele continua: “Na verdade, Jerônimo representa toda minha idéia; ele é a síntese do meu trabalho e, além disso, um ser humano magnífico” – traduzo aqui da versão em inglês da carta, publicada no livro lançado pela Tate, junto com o catálogo da retrospectiva, “Oiticica in London”. O volume, que reconstitui com bastante entusiasmo o impacto que a exposição na Whitechapel teve na época, traz ainda um fac-símile do catálogo da mostra original onde um texto de apresentação diz que “na sociedade da Mangueira, Oiticica experimentou um alto nível de comunicação humana, do valor das ações humanas”. Enfim, cito essas passagens para poder repetir a pergunta: por que alguém que tem as raízes de seu trabalho numa interação tão popular não é hoje celebrado por mais gente – aqui mesmo em seu país?

Para “decifrar” o trabalho de Hélio Oiticica, e responder propriamente essa pergunta, seria necessário um espaço infinitamente maior do que este nosso – e uma bancada de estudiosos bem mais competente do que eu, que me arrisco aqui a comentar de maneira superficial o conjunto de uma obra tão densa (ainda que por vezes tão volátil) como a dele. Apenas para quem está se familiarizando com o artista agora não ficar muito no ar, vou só adiantar que o título da exposição da Tate é uma boa chave para introduzir o pensamento de Oiticica.

Sua exploração da cor pode ser considerada uma das motivações centrais do seu trabalho. É bem mais que isso, claro. Mas é um bom ponto de partida. A partir da cor, ele partiu para a busca do seu desdobramento no espaço – e até no tempo. Da parede, as cores saíram aos poucos para as formas tridimensionais, para os relevos espaciais, para os ambientes definidos por ela (a cor), para os penetráveis (uma espécie de labirinto sensorial onde as experiências propostas extravasavam o campo do visual), para as imprevisíveis propostas dos “bólides” (objetos que parecem só existir como uma desculpa para redescobrir a cor), para as infinitas variações dos “parangolés” (pseudo-vestimentas de múltiplas utilizações) – e sabe-se lá para onde mais iria, não fosse a morte prematura em 1980.

Nossa… resumir uma trajetória artística como a sua em apenas um parágrafo é praticamente uma heresia (sei que vou ouvir…). Espero, porém, que isso sirva de inspiração para alguém que não conheça ainda seu trabalho e, assim, sinta-se provocado a procurar um pouco mais sobre ele (como aconteceu aqui mesmo com Yves Klein). O próprio site da Tate Modern é um bom caminho – e eles são muitos, vá em frente.

Mais ainda quero negociar com você apenas mais um parágrafo da sua atenção para falar um pouco da própria exposição – que, como comentei anteriormente, me deixou desnorteado. Não pela quantidade de obras – o conjunto não chega a ser grandioso -, mas pelo impacto revelador de ver todas essas fases do artista colocadas numa perspectiva. Oiticica trouxe uma proposta tão elaborada para as artes plásticas, que é um choque perceber como sua proposta é, paradoxalmente, simples. Revolucionária, sim – não é à toa que ele é tão celebrado como um artista influente até hoje. Mas de uma simplicidade singular.

Sua trajetória, mirabolante e multifacetada, ironicamente parece caminhar em direção à pureza de uma idéia. Ah… será que alguém que batiza um trabalho com a frase que eu emprestei para o título deste post – novamente, “Pureza é um mito” – estava mesmo preocupado com isso? Jogos de palavras à parte, a pureza do trabalho de Oiticica é de outra natureza. No seu caminho criativo Oiticica foi pegando tudo – toda a limpeza de Mondrian e toda a sujeira dos morros cariocas (para dar apenas duas pontas do arco de sua inspiração). E, por uma alquimia totalmente nova, devolveu muito mais do que a soma de cada um desses elementos: pura originalidade.

Fotos: Reprodução/Site da Tate Modern

Uma estranha temporada cultural na nossa Curva das Expectativas Flutuantes

qui, 26/07/07
por Zeca Camargo |
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Mas, afinal, quando não temos uma estranha temporada cultural? Poderia justificar isso fazendo aqui uma rápida retrospectiva das últimas Curvas – mas acho melhor guardar esse exercício para outubro, quando ela completa um ano. Sendo assim, reflita comigo, se esses são ou não são tempos estranhos – lembrando sempre que os registros aqui não espelham exatamente minha opinião pessoal, mas um comentário geral sobre essas, digamos, manifestações.

Começando pela música: num buchicho quase inaudível, está uma dupla de Seattle que, a se acreditar nas críticas, é o novo Velvet Underground. O nome deles: Arthur & Yu. Já fazendo um barulho maior (literalmente), uma outra dupla – essa, de franceses – é a grande promessa da música eletrônica: Justice, cujo álbum de estréia tem, como nome, apenas o símbolo de uma cruz! Por falar nisso, ele, que agora voltou a se chamar Prince (depois de ter passado por alguns nomes “simbólicos”), está brilhando novamente. Você pode até achar que é só porque ele está dando seus CDs de graça para quem comprar um ingresso da sua turnê atual, mas “Planet earth”, seu último trabalho, é bom mesmo.

Mas, entre Justice e Prince, há um grande elenco: New Young Pony Club, também com ótimas críticas – provavelmente uma das coisas mais divertidas no pop atual (descontando o Bonde do Rolê – mas não quero me estender sobre isso agora…). Pato Fu, também com um bom trabalho, mas ligeiramente superpromovido – nesse esforço que parece cada vez mais desesperado das gravadoras de ganhar em cima de nomes já consagrados. Na mesma situação – e também com um ótimo CD – está o White Stripes. “Icky thump” é tão inesperado quanto satisfatório – uma nova razão para idolatrar a dupla Jack e Meg.

No cinema, uma animação promete ser o sucesso “cult” de 2007 – e não estou falando de “Ratatouille”, que já é um sucesso, mas não exatamente “cult”. Pense em “Persépolis”, a obra em quadrinhos da iraniana Marjane Satrapi. Ela e o diretor Vincent Paronnaud transportaram a história da menina que sai de uma educação rigorosa no Irã para o mundo de possibilidades na Europa de uma maneira tão sedutora, que só leio elogios na imprensa européia. Será que as nossas mostras de cinema do segundo semestre vão nos agraciar com essa surpresa?

Mais perto de estrear, está “Cidade dos homens”. Não preciso nem me alongar sobre isso, preciso? Vai ser um belo refresco para essas semanas em que quase afogamos em trilogias (“Piratas” etc.). Será que agora podemos confessar que elas estão no ponto de saturação? Espero que sim – e que elas nos dêem um descanso até, quem sabe, 2010?

E ainda nas expectativas, sou só eu que escuto as pessoas dizendo que o terceiro filme do Harry Potter ainda é o melhor? Quer dizer… “Harry Potter e a ordem da fênix” não é tão decepcionante quanto o filme anterior, mas eu tenho impressão que tem mais gente entusiasmada com o livro que encerra a saga do bruxo do que com o que é apenas mais um filme da série. Reflexos da superexposição, talvez – e que o longa-metragem dos Simpsons precisa saber evitar. Eu ainda acho graça toda vez que vejo, no trailer, Homer cantando a trilha sonora do “porco-aranha” – mas o bombardeiro do resto da mídia está insuportável…

Boas notícias na pequena tela – que não tem vivido uma das temporadas mais brilhantes. Um ótimo elenco e uma idéia engraçada colaboram para criar uma grande expectativa em cima de “Toma lá dá cá” – aguarde mais comentários quando a série estrear. E Bebel, a personagem de Camila Pitanga em “Paraíso tropical” é simplesmente a coisa mais divertida da TV atualmente. Ela, que já correu o risco de ficar exposta demais, encontrou um equilíbrio perfeito: engraçada, linda, leve, safada – e até meio burra, quando precisa! Um ótimo personagem para uma ótima atriz.

Para os que ainda se interessam pelas artes visuais – essa brava minoria! -, a mostra no MAM de São Paulo, com a coleção de fotografias do Deutsche Bank, é um excelente colírio. Capaz até de fazer você esquecer que não vai ter muitas chances de visitar, na própria Alemanha, uma outra exposição importante – que geralmente é elogiada, mas que nessa edição só incitou críticas desfavoráveis: a Documenta de Kassel. Não muito diferente da reação à última Bienal de Veneza. Melhor assim: dois destinos a menos para a gente desejar ir – como se o caos aéreo permitisse essa mobilidade para nós, pobres passageiros…

Mas, amantes das artes, não desanimem! Segunda que vem, no próximo post, vou falar justamente de uma excelente exposição que eu tive a oportunidade, num museu internacional de primeira linha, sobre um artista brasileiro que é cada vez mais celebrado – aqui e lá fora. Algum palpite?

Animados!

seg, 23/07/07
por Zeca Camargo |
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Lá pelos idos de 1992, mais perto do final do ano, eu saía do cinema extasiado. Tinha acabado de ver “Aladdin”. Sim, o desenho. E mal conseguia disfarçar meu entusiasmo por ter tido a chance de assistir a um trabalho tão sofisticado. Me lembro, meio ainda sob o efeito mirabolante da produção, de me encantar por viver numa época em que uma técnica tão antiga podia oferecer um espetáculo tão inovador, surpreendente e… excitante! Aliás, para traduzir bem meu estado de espírito naquela tarde (era o tempo em que eu ainda conseguia ir ao cinema de tarde…), eu precisaria de mais algumas exclamações. Tipo… !!!!!!!!!!!

Mesmo descontado meu já declarado fascínio por temas orientais, “Aladdin” havia superado todas as minhas expectativas. Não me refiro, claro, à história – talvez uma das mais manjadas daquele repertório que os pais contam para os seus filhos (ou, pelo menos, contavam). Mas à maneira como ela era apresentada, os planos inesperados usados para desenvolver a ação se desenrolava, a riqueza dos detalhes de cada quadro, a interação entre a narrativa e os números musicais (acho que gostei até daquela seqüência no tapete mágico, com a canção que, se não me engano, se chamava “A whole new world” e ganhou um Oscar) – enfim, tudo naquele desenho de longa metragem indicava que estávamos diante de uma nova era na animação.

Daí, meros três anos depois, veio “Toy story”… Quem tem menos de 20 anos talvez tenha assistido a essa produção no cinema – talvez não: é bem provável que uma criança de oito anos tenha não só sido levada ao cinema para ver “Toy story” como também infernizou a vida de algum adulto para ver o mesmo título pela segunda, terceira, quarta, quinta – e sabe-se lá quantas mais – vezes. Mas essas crianças talvez fossem pequenas demais para avaliar o impacto dessa estréia. Alguém se lembra das “polêmicas”? Galões de tinta foram usados para imprimir artigos sobre o futuro da animação. Seria o fim do traço imortalizado pela Disney? Algum dia a computação gráfica iria dominar o mercado? O computador limitava a criação humana? E não vamos esquecer da hipótese mais mirabolante (ou talvez lúcida) de todas: será que um dia ainda vamos precisar de atores?

Bem, você já experimentou rever “Toy story” recentemente? Mesmo que você não tenha sido um dos mais entusiasmados na época em que o DVD ainda era uma novidade a ponto de correr para comprar um só para você, o filme (bem como “Toy story 2″) cumpre com louvor o circuito de reprises das TVs abertas e a cabo – quem sabe você não pegou alguma delas? Pergunto porque eu fiz esse teste recentemente e a experiência foi, no mínimo, decepcionante. Uma vez conhecida a história (que, convenhamos, não é das mais inspiradas), as piadas envelhecidas não colaboram para renovar o entusiasmo de quem assiste. E mesmo a animação… para o olhar apurado de quem já passou por “Monstros”, “Nemo” e “Shrek” (para citar apenas os mais populares), parece um trabalho de faculdade.

Por isso, fiquei um pouco preocupado quando, há apenas alguns dias, me vi novamente com aquela excitação dos tempos de “Aladdin”. Será que o motivo de um grande entusiasmo (renovado) no gênero, também ficaria ultrapassado? Se você ainda não adivinhou, estou falando de “Ratatouille”.

Vai desistir da leitura? Por que eu vou escrever sobre um filme “para crianças”? Ou (motivo ainda mais… sórdido!) por que eu vou escrever de um filme sobre um rato? Em qualquer um dos casos, será um pena, pois, se você ainda não assistiu, esta minha argumentação seria uma boa chance de espantar esses preconceitos.

“Ratatouille” é sobre um rato, sim. Aliás, sobre um rato, não – sobre dezenas, centenas deles. Mas, para efeitos narrativos, a história se concentra principalmente no talento de um deles, Remy, para a cozinha. Com um olfato apuradíssimo, ele descobre que esse seu dom pode ser usado em benefício do paladar – inclusive, e principalmente, o humano (já que seus colegas ratos só se preocupam em saber se a comida está ou não envenenada).

Tranqüilizando mais uma vez você que me lê (e que por ventura não assistiu ainda ao filme): não vou entregar a história. Fiz apenas essa apresentação de Remy, para mostrar que ele não é exatamente um rato… nojento. Chamar de bonitinho seria exagero (se bem que, em uma cena ou outra, ele faz uma carinha que até parece o Gato de Botas escudeiro do Shrek…). Mas ele é bastante tolerável aos olhos, e quase encantador.

Suas aventuras na cozinha daquele que é apresentado como um dos restaurantes mais famosos (ainda que com seu prestígio arranhado) de Paris são espertamente elaboradas para conquistar o público – menos pelo heroísmo (estratégia tão comum nos filmes que querem seduzir ao mesmo tempo crianças e adultos) e mais pela astúcia.

A inocência de Remy nas suas tentativas de melhorar as relações entre roedores e humanos – um ideal romântico demais, e bastante arriscado, como alerta de maneira dramática o rato-pai – são comoventes mas não melosas. E o resultado é que você segura a sua boa vontade até o final. Quando, no clímax da história, o restaurante vai passar por um grande teste diante de um dos críticos gastronômicos mais temidos da França, você não tem outra opção a não ser torcer pelo ratinho.

A preparação desse jantar, já adianto, é uma das seqüências mais engraçadas que já vi numa tela de cinema. E digo isso baseado apenas em 60% ou 70% das suas cenas, uma vez que no restante delas eu ria tanto que mal conseguia abrir os olhos (ainda tenho de voltar para assistir à seqüência toda). Mas, piadas à parte, esse “gran finale” (e o “piccolo finale” que vem em seguida) traz também uma mensagem de escape para qualquer pessoa que já ouviu um “não”.

Me lembrei do primeiro “Shrek” – onde a “moral da história” ainda chamava mais atenção do que as incontáveis sátiras à nossa cultura pop. Se, naquele filme, resumindo bem, a mensagem poderia ser traduzida por “é legal ser diferente”, em “Ratatouille” o “conselho subliminar” é: “se você acha que é bom em alguma coisa que todas as outras pessoas insistem em dizer que você não pode fazer… vai em frente e faz!”.

A lição não é muito sutil, mas eu não tenho dúvidas de que funciona com a criançada. Assim como funciona, bem lá no finalzinho, o recado de que às vezes, é mais legal fazer sucesso com um grupo que gosta de você, ainda que pequeno, do que ser “o maior” para um grande público que você nem conhece.

Essa é, claro, uma leitura bem particular do desfecho de “Ratatouille”. Tenho certeza de que você também tem a sua (que você já está convidado a registrar aqui nos comentários). Ninguém sai do filme indiferente… nem que seja pelas incríveis novidades na animação – que, não demora, certamente serão coisa do passado…

(Em tempo: vem aí um filme que, muito provavelmente, vai fazer um enorme sucesso contradizendo tudo que eu acabei de escrever – primeiro porque retoma a velha definição de “desenho animado”, e depois, porque “moral da história” não é o forte dos personagens dessa história. Estou falando, claro, de “Os Simpsons” – que, só de ver o trailer, eu já estou me candidatando a fazer fila para pegar a sessão de estréia. O quê? Ridículo? Olha que eu chamo o Krusty para me defender…)

O som do verão

qui, 19/07/07
por Zeca Camargo |
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Um nada tímido arco-íris cobria parte de São Paulo ontem, quarta-feira, quando cheguei do Rio. Ele era escandalosamente visível, à esquerda da via Dutra, pouco antes de ela terminar na Marginal do Tietê, como se para cortar todas as conversas fúnebres de quem chegava à cidade pelo aeroporto de Guarulhos – gente que, como eu, tentava voltar para casa por uma rota ironicamente mais prática do que a outrora tão simples conexão Congonhas-Santos Dumont. Tais conversas (eu podia acompanhar, claro, apenas a do táxi que me conduzia, mas não tenho dúvidas de que o assunto nos outros veículos que nos cruzavam girava quase que exclusivamente em torno disso) – tais conversas, enfim, eram sobre o pior acidente aéreo ocorrido no Brasil, terça passada, aqui mesmo, na maior cidade do país.

Era mesmo um arco-íris teimoso, não apenas aquelas meias curvas mais comuns, mas um risco colorido completo, de uma ponta a outra da cidade, como se quisesse trazer uma boa notícia. Mas veio mais chuva – isso era por volta das 14h30. Depois veio até um pouco de sol. E depois veio o frio, como uma moldura precisa para a contagem de corpos que iam sendo resgatados até a chegada da noite.

O acidente era, claro, chocante demais, presente demais, gráfico demais, próximo demais, revoltante demais e – alguns insistem – previsível demais para demandar qualquer reflexão sensata. Como um antídoto de eficiência duvidosa, me vi forçado a encaminhar meu próprio pensamento – talvez inspirado até pelo arco-íris – a viajar por outros céus. E em questão de minutos estava de volta à Tunísia – um lugar de onde voltei há pouco mais de uma semana, mas que me deu a impressão de pertencer a um passado meio distante.

Não só o país, como todas as experiências que tive por lá, que comecei a recolecionar, me lembrando de que tinha me comprometido a escrever aqui, entre outras coisas, sobre a trilha sonora que me acompanhou nessa viagem. Para isso, cheguei em casa e dei um “shuffle” no playlist “Tu-tu”, no meu iPod. Você se surpreenderia se eu dissesse que a seleção não tinha nem sequer uma música tunisiana?

Ocorre que eu juntei essas músicas na escala anterior que fiz para chegar no país africano. Parei em Londres por dois dias e, lá, “enchi o tanque”. Quase 90% das músicas que levei na bagagem vieram de duas das minhas lojas favoritas de lá, a Sounds of the Universe e a Sister Ray. Mas, devo confessar que duas faixas fundamentais para minha trilha de verão eu achei na “boa e velha” Virgin Megastore, de Tottenham Court. Vamos ver se você adivinha quais eu encontrei por lá…

Mas antes, um esclarecimento: talvez você tenha tropeçado com a aparente contradição do título deste post, repetida no parágrafo anterior. Como assim – som do verão, trilha do verão em pleno julho? Ah… mas lembra daquela apostila de geografia que explicava que as estações são invertidas nos hemisférios da Terra? Pois bem, enquanto aqui atravessamos um inverno, é o verão de lá – de lá dos Estados Unidos, de lá “das Europa” (e até de lá do norte da África, claro) que produz alguns dos mais adoráveis (e descartáveis) produtos culturais a cada ano.

É por isso que, por exemplo, sempre nessa época, são despejados em nossas telas, produções de gosto duvidoso, critérios artísticos ainda mais suspeitos, mas que são absolutamente deliciosos de se ver. Pensou em todas as trilogias que estrearam nos cinemas nas últimas semanas, pensou certo. Pensou em “Ratatouille” (que eu fui ver esta semana e fiquei completamente extasiado – aguarde post aqui mesmo sobre isso), pensou certo. Algo parecido acontece na música pop, quando artistas batalham para emplacar “o som do verão” – repetindo, o verão… deles.

Essa briga – apaixonante de se acompanhar – produz canções tão descartáveis quanto os filmes lembrados acima, mas que vão certamente fazer parte do registro de férias inesquecíveis – namoros, noitadas, um dia na praia, uma noite de sexo, ou simplesmente um pôr-do-sol, vão estar para sempre conectados a um certo refrão (que você repete, muitas vezes sem ter idéia do que aqueles versos querem dizer).

Nós também temos isso por aqui – ainda de uma maneira menos institucionalizada. Pense em “Musa do verão”, de Felipe Dylon. Ou “Só love”, de Claudinho e Buchecha. Ah, você tem mais de 40 anos? Então pense em “Pintura íntima”, do Kid Abelha (no tempo em ele ainda se orgulhavam de carregar umas “abóboras selvagens” no nome). Como se diz em Portugal… percebeu? Pois então, lá no hemisfério norte, a disputa é acirrada, e todo ano produz, pelo menos um bom par de “clássicos”.

A minha trilha sempre é um pouco mais alternativa, como você já vai ver. Mas, como eu não acredito em pureza… sempre pego algo emprestado das paradas mais surradas, mais óbvias. Essa escolha, em 2007, foi “Umbrella”, de Rihanna. Sei que já falei tanto dela que vocês começam a desconfiar que minha relação com a cantora é pessoal… Mas o que eu posso fazer se, de fato, ela estava em todo lugar – na internet, em qualquer biboca de Londres e até nos quiosques de chá de menta em Túnis? Sua onipresença era tão grande na minha viagem que me fez lembrar de outro verão, o de 2004, quando eu fazia a Fantástica Volta ao Mundo e ouvia “Trick me”, de Kelis, em qualquer canto desse planeta – literalmente.

Se você me permite só mais um parágrafo sobre o tema, eu queria tentar explicar porque “Umbrella” é tão perfeita: porque ela parece passar uma flecha em mais de quatro décadas de música soul, tem uma letra que é ao mesmo tempo sacana e romântica, um refrão que parece simples, mas é extremamente elaborado (te desafio a acompanhá-lo sem errar nas primeiras três vezes que você a ouvir), e… bem e ainda tem Rihanna! OK? Posso passar adiante, para as outras músicas que eu levei na viagem?

Conhece Tiombe Lockhart? Nunca tinha ouvido falar também (e olha que eu leio a “Fader”…) até me deparar com a capa de CD mais bizarra dos últimos tempos, bem na Sounds of the Universe. Tudo bem, o disco estava entre os recomendados… mas mesmo assim eu não poderia deixar de ouvir alguém que se apresentava daquela maneira. E quando dei o “play”… bem, veio vindo aquele violão, depois aquela batida surda, um prato rouco e em seguida a voz. Que voz é aquela? Não sei – só sei que você se vê induzido a acompanhá-la por essa estranha canção que mal tem refrão, mas que é simplesmente genial: “Tip of my tongue”. Como as chances de você ouvir isso em qualquer FM brasileira são insignificantes, tente procurá-la agora na internet – ou aproveite e compre logo o CD todo, “The Tiombe Lockhar bootleg #1″. Sua vida vai mudar – para melhor.

Outra preciosidade que ouvi na mesma loja é menos recente. Na verdade, foi gravada em 1967. Chama-se “Beggin’”, de Frank Valli & The Four Seasons. Nasceu depois dos anos 80? A wikipedia está aí para isso mesmo. Ou então tente escutar diretamente esta faixa, já que você está na internet, e veja se isso não é mais uma prova definitiva de que o pop é divino – e não uso o adjetivo como uma hipérbole, mas no seu sentido mais puro: de algo que vem “do Homem”! Como é possível alguém criar algo assim? Só mesmo uma devoção infinita pode fazer isso brotar da imaginação humana.

O que nos leva a outra música da trilha deste meu verão – essa ainda um pouco mais antiga… tipo século 17… 18… Tipo Vivaldi, “Nisi Dominus”. Explicações – rápidas, antes que você desista de ler. Eu dancei essa música, lá nos anos 80, num espetáculo muito especial (que fiz, claro, com Ivaldo Bertazzo), chamado “O cavaleiro da rosa”. Ouvi esse trecho dessa composição religiosa de Vivaldi por uma temporada inteira… e, depois, nunca mais. Cheguei a procurar aqui e ali, sem sucesso, até que encontrei sua introdução (inconfundível) no filme “Dogville”, de Lars von Trier. Mas quem disse que eu achava essa trilha? Mas eis que, sem querer, me deparo com um CD de “Manderlay” (o filme seguinte do diretor) – com trechos das músicas usadas em “Dogville”! Com ele, fui até a seção de Clássicos e, depois de breve investigação… lá estava “Nisi Dominus” (mais especificamente a faixa 15, “Cum Dederit Dilectis Suis Somnum”), em todo seu esplendor. Foi para o iPod, óbvio!

Assim como foram também “I used to dance with my daddy”, do Datarock (prova de que o futuro está logo ali); “Overpowered”, da Róisín Murphyn (prova de que o futuro vai beber nos anos 80); “What’s a girl to do”, do Bat for Lashes (prova de que o futuro é atemporal); e todo o novo álbum do Manic Street Prechers, “Send away the tigers” (prova de que o futuro é irrelevante). Ah, e “Tio Bitar”, o novo disco da minha banda obscura favorita, Dungen (que merece um post só para ela um dia desses). Mas, em altíssima rotação mesmo, só Rihanna, Tiombe Lockhart, Frankie Valli & The Four Seasons e Vivaldi. E é com Vivaldi que eu volto à lembrança do arco-íris de ontem e à tragédia de anteontem.

Nessa coisa fantástica que é o infinito do YouTube, encontrei uma performance justamente dessa música que me marcou tanto, que por um feliz acaso me acompanhou à Tunísia e que, de maneira mais forte, não me sai da cabeça desde terça. Está logo aqui embaixo. E é com ela, celebrando o “fructus ventris” (esse sim, para sempre), na voz do ótimo contra-tenor Andreas Scholl, que eu faço votos de este seja um fim de semana sereno. Acho que estamos todos precisando disso.

Lendo Bolaño em Túnis

seg, 16/07/07
por Zeca Camargo |
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Eu falei que estava em uma “esquina alternativa”… Sobretudo porque confunde nossas referências: as ruínas que faziam o cenário da foto no post anterior eram de inspiração romana – que sempre podem ser confundidas com ruínas gregas. Eu ainda dizia que estava no Mediterrâneo – outra “pista” fácil de confundir, porque a gente nunca se lembra que esse mar não banha apenas a Europa… mas também a África. E o resto das referências que coloquei no último post – junto com a pergunta “onde eu estou?”- se encaixam perfeitamente, como é possível ver agora, numa descrição da Tunísia!

Por uma falha na aprovação dos comentários, três pessoas que acertaram o lugar acabaram aparecendo aqui antes da hora – mas como o palpite geral apontava a Grécia (e também a Turquia), tudo bem… Bravo para elas – em especial para Fernanda Rabelo, que acertou até o nome daquela comida que eu sugeri que lembra o nosso pastel, o “brik” (mas errou a cidade), e para a Thay (Kelly?), que foi na mosca: eu estava nas ruínas do antigo teatro de Dougga, um dos mais belos patrimônios históricos da humanidade, “assinado”, claro, pela Unesco.

Por que Tunísia? Boa pergunta. “Por que não?” seria a “resposta” mais fácil. Mas se você é um leitor assíduo deste blog, já pode imaginar que a escolha do destino tem a ver com uma certa “queda” que eu tenho por lugares que são (ou já foram) capazes de concentrar várias culturas. Por tudo que eu descrevi acima (e no post anterior), acho que fica claro que muitas culturas se cruzaram (e ainda se cruzam) por lá. Disse anteriormente que não falava a língua nativa – o árabe – mas que me virei bem em inglês e especialmente em francês. Isso era uma pista relativamente fácil, se alguém se lembrasse de que a Tunísia foi colônia da França entre os séculos 19 e 20. Calma… isso não vai virar uma aula de história. Só estou falando da língua porque quero citar uma conversa que tive com um motorista de táxi local, mais precisamente do trecho em que ousei perguntar qual é o árabe que eles falavam por lá…

Eu me referia mais a um sotaque ou mesmo alguma diferença sutil entre o árabe falado lá e o que se ouve, por exemplo, na Arábia Saudita ou mesmo no Egito. “O árabe é o árabe, monsieur”, me retrucou o taxista, mal disfarçando uma certa indignação (e com razão, como concluí depois). O que ele queria dizer é que, além de uma identidade muçulmana – religião que predomina no país -, a língua significava uma conexão com um universo maior do que poderia as fronteiras políticas que marcavam o lugar que ele nasceu (e onde passou praticamente toda sua vida – só viajou por alguns dias para visitar a irmã, que tinha casado na vizinha Líbia, mas detestou…). Ao mesmo tempo, como ficou claro ao longo da conversa, ele não deixava de destacar sua identidade tunisiana, soltando algumas alfinetadas para os argelinos e praticamente ignorando a Líbia (o Egito, quando aparecia na conversa, tinha nuances de uma terra muito mais distante do sugere o mapa-múndi).

O que é essa “identidade tunisiana”? Digamos que ela começa nas portas – tão típicas – pintadas de cores fortes, com desenhos delineados por tachas enormes que conduzem seu olhar àquele arco tão inesperado – um traço se espalha por todas as ruas estreitas da medina (cidade antiga) de Túnis. E termina, quem sabe, no belo instrumento de percussão chamado “derbouka” (ou “darabuka”). Os “souqs” – os mercados antigos – estão cheios de souvenires como esses: vidrinhos de perfumes, oliveiras de prata, narguilés, caixinhas de temperos – tudo que pode fazer você lembrar, quando olhar para esse ou aquele objeto lá comprado (hoje pegando poeira na sua estante), de um lugar chamado Tunísia.

Como é possível conciliar aspectos culturais tão abrangentes e peculiares a mesmo tempo? Ah… esse é o segredo dos lugares mais interessantes do planeta. E, nesse sentido, minha viagem não me decepcionou. Passei menos de uma semana no país – e já faço planos para voltar, pois ainda ficou faltando todo o deserto para explorar. E, quem sabe, nesse retorno, consigo me misturar um pouco mais nesse “caldo” tão interessante.

Caldo este em que não só me banhei com prazer – seja passeando pelas ruas quase desertas de Dougga, com suas plantas baixas dilapidadas sugerindo cenas cotidianas de vidas muito antigas, ou admirando a praia de Cartago, com aquelas centenas de pessoas vestidas com uma quantidade de roupas impensável em qualquer faixa do nosso litoral brasileiro – mas que também fiz questão de contribuir, ainda que perifericamente, para que ele se tornasse um pouco mais diverso.

Refiro-me ao livro que me acompanhou nessa viagem, “A pista de gelo”, de Roberto Bolaño (que não deve, em hipótese alguma, ser confundido com o ator mexicano mais conhecido como Chaves, cujo sobrenome é Bolaños). Bolaño (sem o “s” no final) é, como alguém que acompanha as idiossincrasias da imprensa literária talvez se recorde, o autor latino-americano “da hora”. Nascido no Chile, mas baseado boa parte da sua vida na Espanha, o escritor morreu em 2003, e, nos últimos anos vive uma espécie de redescobrimento – sem dúvida impulsionado pelo lobby editorial americano.

Recém-lançada nos Estados Unidos, sua obra maior, “Os detetives selvagens” (editado, no Brasil pela Companhia das Letras), conquistou uma rara unanimidade entre os críticos de lá. O livro foi aclamado como um “clássico contemporâneo” – e, de repente, Bolaño, é o queridinho das conversas eruditas. Bom para Bolaño, claro, bom para a reputação de seu trabalho, mas bom sobretudo para quem simplesmente quer ler um bom autor.

Não levei “Os detetives selvagens” para a viagem, acredite, por uma questão de peso. Com mais de 600 páginas, ele acabou “perdendo” para “A pista de gelo”, do mesmo autor (também editado pela Companhia das Letras), com suas modestas 200 – bem mais acomodável na bagagem de mão. Mas, encantado com a “amostra”, já coloquei “Detetives” nas minhas prioridades.

“A pista de gelo” pode ser considerado um trabalho menor (foi seu primeiro livro publicado), mas não menos interessante. Com uma estrutura quase lúdica, ele reveza depoimentos de três homens superficialmente conectados no dia-a-dia de uma cidade catalã, mencionada apenas como “Z”. Os testemunhos dão conta de um crime, cuja solução, assim como a seqüência de ações que levou até ele – e mesmo seus motivos -, nunca fica totalmente esclarecida. Essa estratégia é parte do jogo para o qual Bolaño convida o leitor. E não há quem resista participar dele, depois de atravessar apenas as primeiras páginas.

Traduzido do espanhol por Eduardo Brandão, o livro traz momentos belíssimos. Como esse em que o personagem Enric Rosquelles (um dos que dão seu depoimento) descreve seus encontros com Nuria, a patinadora:

“Ela tinha uma maneira… não sei… única, de comer fruta, com os olhos perdidos no horizonte. Aqueles horizontes de autêntico privilégio. Quase não falávamos. Eu me acomodava um degrau abaixo e olhava para ela, mas não muito, às vezes olhar demais para ela era doloroso, e tomava meu chá com deleite e parcimônia.”

Outra descrição preciosa surge na cena do crime, lá pelo final do livro:

“Nós dois estávamos tremendo. Meus braços, que envolviam seus ombros, se mexiam como cabos, e meus dentes castanholavam produzindo um som condizente com o cenário.”

Li isto, só lembrando, durante minha viagem à Tunísia, onde parte do cenário, por conta de outras conexões, também parecia pedir um som de castanholas – ainda que não produzidos com os dentes… Quem sabe uma lembrança de uma passagem pelo Alhambra, em Granada – na Andaluzia espanhola? Ou talvez fossem as primaveras explodindo das sacadas brancas de Sidi Bou Saïd, outra pontinha para o Mediterrâneo, colada em Cartago (também na Tunísia), que me fez lembrar das flores nos penteados das dançarinas de flamenco?

Vou parar por aqui antes que corra o risco de me perder em referências – tentando absorver mais uma vez a lição que aprendo desde que saí por esse mundo: a de que a diversidade de manifestações que somos capazes de produzir não são nunca menos que inspiradoras. Ter conhecido a Tunísia acompanhado por Bolaño (e mais por uma trilha sonora bastante especial, sobre a qual vou escrever aqui quinta-feira, no próximo post) foi uma aventura das mais especiais, fruto, como sempre, de uma feliz coincidência – mais uma obra do acaso. Que, só lembrando, nunca nos decepciona…

Agradecimentos e… bem… não resisto: onde eu estou?

qui, 12/07/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

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Não, este ainda não é o retorno “oficial”. Combinamos na segunda-feira, lembra? Mas traí a mim mesmo e não agüentei ficar sem passar por aqui, mesmo que rapidamente (para não interromper a viagem…) por dois motivos. Primeiro, agradecer a significativa participação de todos que mandaram (e, quem sabe, ainda vão mandar) sua foto para o projeto “Eu vou morrer”. Ainda vou voltar à essa reflexão mais a fundo, mas já deu para ver que a idéia (adaptada do obra do artista chinês Yang Zhenzhong nesta Bienal de Veneza) foi preservada: ao contrário de desdenhar ou fazer pouco caso da morte, o exercício de reconhecer que vivemos com essa certeza pareceu tão libertador a todos que enviaram sua contribuição quanto foi para mim. Em breve desenvolvemos isso melhor.

O segundo motivo é simplesmente uma vontade de dividir com você o esplendor dessa viagem que estou fazendo. Para isso, lanço mais uma vez a pergunta: onde eu estou? Algumas pistas: já disse que estou numa esquina “alternativa” do Mediterrâneo – agora a foto acima pode ajudar um pouco mais. Ela foi tirada numa cidade antiga, numa região que já viveu um grande cruzamento de culturas. Apesar de não falar a língua nativa (que está na minha lista das que ainda quero aprender), consigo me virar bem em inglês e, especialmente em francês. Até nos táxis, cujos motoristas dirigem como uns loucos nas ruas estreitas da parte antiga da capital desse país (que fica mais ou menos a 90 minutos de onde a foto foi tirada).

Aqui experimentei o melhor carneiro assado da minha vida e algo muito parecido com o nosso pastel (que só não conto o nome oficial para o desafio não ficar fácil demais). Como qualquer canto do Mediterrâneo, o pôr-do-sol é fantástico, e a luz no fim do dia fica ainda mais bonita quando refletida nas casas brancas com janelas azuis, tão típicas daqui. Ver a noite chegar ao som da lindíssima música tradicional deste povo, que às vezes se mistura ao inevitável (e sempre bem-vindo) “hit” do momento (aparentemente em todo o hemisfério norte), “Umbrella”, têm sido uma experiência única.

Já deu para ter uma idéia? Então está aberta a temporada de palpites – lembrando que valem as mesmas regras da última vez: tem que falar a cidade e o país onde a foto foi tirada e, se você acertar, vou segurar sua resposta até a semana que vem, para que as outras pessoas poderem continuar tentando adivinhar.

E vamos ficar por aqui porque, não sei exatamente que horas isso está sendo postado aí no Brasil, mas por aqui a tarde já está caindo e lá vou eu de novo assistir ao espetáculo do anoitecer por aqui. Até segunda!

Bravo! Essas pessoas vão morrer. E você?

qui, 05/07/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

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Essas pessoas clique aqui para ver as fotos são bem-vindas no projeto apresentado no post anterior. Quer participar? Mande sua foto para cá junto com a frase “fatal” – e quando eu voltar de viagem conversamos mais. Saudações dessa esquina alternativa do Mediterrâneo (quer brincar de ‘onde eu estou?’ de novo?).

Obs.: para ver as fotos, desative o bloqueador de pop-ups do seu navegador.

Eu vou morrer

seg, 02/07/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Este post é ligeiramente diferente dos outros que eu tenho escrito nos últimos (nossa!) nove meses. É diferente porque, daqui a pouco, eu vou pedir para você participar de um projeto que vai justificar o título acima. Tem a ver com um artista que participa da famosa (e sempre superdivulgada) Bienal de Veneza. Mas antes eu queria falar de uma outra exposição que abriu na semana passada, aqui mesmo, no Brasil – mais precisamente no Rio de Janeiro. Sobre ela, você não viu nenhuma capa de caderno cultural de jornal, nem alguma grande matéria num noticiário de televisão. Talvez ela tenha merecido algum destaque num bom roteiro. Mas o mais provável é que você – mesmo você que mora no Rio – não tenha nem percebido esse evento. Eu mesmo, que me considero bastante informado (pelo menos no que se refere à cultura) mal teria sabido da exposição não fosse a insistência de uma boa amiga para que eu fosse visitá-la.

Estou me referindo a uma pequena preciosidade chamada “A presença do invisível”, que desde a última quinta-feira está aberta ao público no Museu do Índio carioca. É provável que, devido à forte resistência que nós sempre temos com nossa própria cultura, você abandone este post neste momento. Para evitar essa atitude automática, quero apenas esclarecer que não vou fazer aqui um libelo em favor de uma “pobre cultura minguante” (as aspas são para ressaltar o clichê com que a maioria das pessoas olha a cultura indígena). O Brasil está cheio de antropólogos que escrevem muito melhor sobre essa questão do que eu (e, para citar apenas um, de cabeça, lembro de Roberto Gambini, autor do ótimo “Espelho índio”, que participou de um episódio da série que fiz recentemente, “Novos Olhares”). Mas quero registrar que fui visitar essa exposição – quase “sem querer”, como já comentei – e fiquei surpreendido como algo tão simples pode falar tão alto com a gente.

Não é uma mostra grande, mas a passagem pelas salas pequenas do museu (transformadas em inesperados universos de informação sobre uma cultura que nós – sempre tão urbanos – desconhecemos) tem um efeito duradouro e mágico. “Mágico” é um daqueles adjetivos fáceis de usar quando você não sabe como descrever uma experiência – mas, nesse caso, estou empregando-o com grande acuidade. Seu enfoque é o resgate da cultura dos povos indígenas do Oiapoque – um lugar tão distante na nossa imaginação que muitas vezes o citamos sem ter certeza exata de onde ele fica. É lá no alto do Amapá – e as tribos representadas na exposição, Karipuna, Palikur, Galibi-Marworno e Galibi-Kali’na estão bem ao norte do estado. Vivem numa região inundada pelas águas de vários rios, e têm um estilo de vida que reflete essa adaptação nem sempre fácil à natureza que os cerca.

Pelas imagens de vídeo exibidas em telas planas (nunca fui para esse canto do país), a paisagem é lindíssima. E a arte feita por lá não fica atrás. No Museu do Índio (e, de outra maneira, também no seu endereço virtual, www.museudoindio.org.br), é possível ver até o final do ano, pinturas, cerâmicas, adornos (principalmente os chapéus exuberantes), objetos e até construções inteiras relacionadas a essas tribos – fiquei especialmente encantado em “descobrir” o “turé”, um espaço ritual para os índios se relacionarem com o sobrenatural. A maior parte dos trabalhos é recente, fruto de um trabalho de resgate da cultura local. E a montagem, ainda que compacta, é digna de várias mostras internacionais que estou acostumado a ver mundo a fora.

E quem vai visitar “A presença do invisível”? Centenas de estudantes cariocas, graças a uma programação intensa organizada pelo próprio museu (que também pode ser acessado pelo site). E nós?… Bem, são tantas coisas para ver, não é mesmo? Esse nosso grande “ennui”, essa nossa tendência em olhar em volta e achar que não há nada interessante para fazer – uma conseqüência, sem dúvida, da nossa tão “transada” vida contemporânea – nos impede de nos abrirmos para surpresas como a que eu tive no Museu do Índio. Nós já vimos tantas coisas, já fomos em tantas festas, tantos “vernissages”, tantos desfiles, tantas estréias, tantos eventos “exclusivos” – o que nos resta? Talvez uma outra exposição, bem longe daqui, tenha a resposta.

Retomando a Bienal de Veneza – que nunca tive a oportunidade de visitar (quem sabe este ano?) -, também na semana passada me deparei com uma curiosa crítica sobre a influente mostra, na revista “New Statesman”. Como sempre, em grandes coletivas, o tom geral era de que o conjunto era irregular – algo inevitável quando se junta artistas de vários países de maneira apenas superficialmente ordenada. Não quero, porém, escrever sobre a Bienal – ou pior, escrever sobre o que estão escrevendo sobre a Bienal, já que não vi de perto. Mas na resenha citada acima, a descrição de Alice O’Keffe sobre o trabalho que considerou um dos favoritos também mexeu comigo: “”, do artista chinês Yang Zhenzhong.

Trata-se de uma vídeocolagem, numa sala onde seis telas mostram ao mesmo tempo dezenas de pessoas, de várias idades, etnias, nacionalidades, olhando para uma câmera de vídeo e dizendo, cada um à sua maneira, a frase “eu vou morrer”. Segundo O’Keffe, o trabalho é um poderoso lembrete de que nossa humanidade atravessa culturas e continentes. Com esses poucos detalhes, já fiquei fascinado pela obra. Fui à internet saber mais e encontrei outros tantos fragmentos de informação sobre o artista e o trabalho. Mas a idéia original é tão sensacional que nem precisei ir longe para me entusiasmar com o projeto – que eu disse que iria sugerir lá no início deste texto. A simples sugestão de que podemos nos lembrar (se é que em algum momento esquecemos) de que vamos morrer me pareceu de uma subversão absurda – e ao mesmo tempo linda. Pode parecer um exercício deprimente, mas também pode ser bastante libertador.

Assim, tomando uma enorme liberdade poética com o trabalho de Yang Zhenzhong, queria convidar você a mandar para cá uma foto sua com a frase “eu vou morrer” sobre um canto da imagem – exatamente como eu fiz aqui. Vai encarar? Bem, você tem dez dias para pensar. Isso mesmo: dez dias – exatamente o período que vou estar fora do Brasil, e distante deste blog. No seu devido tempo, vou contar para onde fui e o que fui fazer. Por agora, porém, quero apenas fazer novamente o convite para você participar desse projeto – quem sabe não conseguimos fazer um painel aqui mesmo só com essas colaborações?

Não estou exatamente sugerindo que vai ter um efeito terapêutico – não foi bem isso que aconteceu comigo. Mas a mera reflexão de que nós vamos passar e a conjunto de coisas que fizermos nessa vida (também conhecido como “cultura”, como aquela que encontrei no Museu do Índio) vai ficar é… rejuvenescedor! Ao pensar nesse idéia, fiquei ainda mais motivado a partir nessa viagem pelos próximos dias.

Estou fazendo um certo mistério, mas quem disse que isso não é bom de vez em quando? Só nos encontraremos aqui novamente no dia 16 de julho. Vamos ver para onde vai nossa conversa então…