Pureza é um mito
Quem dera a frase do título fosse minha… Pego essa emprestada de um dos trabalhos mais conhecidos do artista brasileiro que ganhou uma excelente exposição que eu tive a oportunidade de ver num museu internacional de primeira linha – como eu escrevi no post anterior. O museu? A Tate Modern, em Londres. O artista? Hélio Oiticica.
A mostra vai até dia 23 de setembro e divide o enorme andar de exposições temporárias da Tate com uma outra retrospectiva curiosa: de Salvador Dalí. A combinação dá ao adjetivo “surreal” uma inusitada conotação. Na tarde em que fui ao museu, há duas semanas, Dalí recebia pelo menos o dobro de visitantes que a exposição de Oiticica – brilhantemente batizada de “O corpo da cor”. Mas enquanto as obras do velho (e talvez manjado) mestre catalão eram apreciadas com expressões que traduziam a pouca surpresa de quem reconhece aqui e ali imagens tão familiares do inventário visual do século passado (vazando para o 21…), as salas por onde se distribuíam os trabalhos de Oiticica eram envolvidas por um comovente silêncio.
Não era um silêncio reverente – acho que dá para fugir desse clichê. Era mais uma “não-conversa” – para usar uma expressão que talvez combinasse muito bem com os círculos artísticos por onde o próprio artista circulava nos anos 50 e 60, no Rio de Janeiro. O que seria a “não-conversa”? Bem, poderíamos debater isso pelo resto do dia… Mas, por agora, basta dizer que os visitantes trocavam olhares (e, sempre que possível, toques) enigmáticos com as obras selecionadas para a retrospectiva – e é dessa troca que vinha o tal silêncio.
Mas eu estou aqui falando de Hélio Oiticica sem antes perguntar se você tem alguma familiaridade com o artista e seu trabalho. Se você tem, fica mais fácil… Mas, se não tem, não é culpa sua. Estou louco para que alguém me corrija – ou me atualize, mas a última vez que vi uma mostra dedicada exclusivamente a ele foi na Galeria São Paulo, em 1986. Eu mesmo trabalhava em uma galeria de arte na época – a extinta Paulo Figueiredo – e visitei, com gosto, essa pequena reunião de trabalhos que, embora modesta, contava com um de seus “penetráveis” (mais sobre isso daqui a pouco), alguns “bólides”, e até, se não em engano, um “parangolé” – ou teria sido a foto de alguém usando um “parangolé”? Depois disso, soube de algumas participações em boas mostras coletivas – muitas delas descobertas numa recente pesquisa pela internet. Mas algo da dimensão do que está na Tate não registrei (e, repito, tomara que alguém me corrija).
Agora, se você também nem ficou sabendo que esse artista – possivelmente o mais revolucionário e influente que nossa cultura já produziu – estava sendo homenageado em grande escala pela Tate, também não se culpe. Uma rápida busca na rede revela apenas artigos tímidos na nossa imprensa sobre a exposição (cruzei o nome do artista com alguns dos principais veículos de comunicação nacionais, e o resultado foi… decepcionante).
Este post não pretende, nem de longe, corrigir essa injustiça. Mas não posso deixar de registrar minha modesta comemoração pessoal quando saí da Tate naquela tarde de um verão gélido, depois de ter visitado “O corpo da cor”. Há anos, perambulando por museus do mundo todo, procuro sempre por artistas brasileiros que façam parte desses acervos. É tarefa árdua. Tais obras, quando as encontro, se resumem a não mais de uma dúzia de artistas de reconhecida importância internacional – inclusive Oiticica – e só. É verdade que quanto mais nos aproximamos da contemporaneidade, maiores as chances (ainda que esparsas) de nomes brasileiros aparecerem: Vik Muniz, Rosângela Rennó, Beatriz Milhazes, Tunga, Arthur Omar – a lista está crescendo. Mas nomes que sejam unanimidade… ainda são poucos.
Por isso a minha alegria com a exposição da Tate. Por isso também esse argumento de que o barulho por ocasião dessa mostra deveria ser muito maior. Mas talvez o próprio desconhecimento da obra de Oiticica aqui no Brasil possa explicar essa falta de entusiasmo. Ninguém duvida que, nos mais intelectuais círculos artísticos, o artista seja bem reconhecido. Mas o grande público? Duvido. E é curioso um artista que estava tão ligado à cultura popular enfrente tanta dificuldade em estabelecer, hoje em dia, uma ponte entre sua obra e o público maior.
Só para dar um exemplo, Oiticica adorava levar seu trabalho para o “morro” no Rio – mais especificamente à Mangueira. Numa carta à artista Lygia Pape, de janeiro de 1969, enviada de Londres (onde ele montava uma mostra de grande repercussão na Whitechapel Gallery), ele pedia que ela localizasse Jerônimo – seu parceiro na Mangueira: “Decidi que ele vai estar no pôster que estamos preparando para minha exposição: ele é o símbolo da Tropicália.” (E você achava que a palavra surgiu com a música de Caetano, hein?). Mais adiante, ele continua: “Na verdade, Jerônimo representa toda minha idéia; ele é a síntese do meu trabalho e, além disso, um ser humano magnífico” – traduzo aqui da versão em inglês da carta, publicada no livro lançado pela Tate, junto com o catálogo da retrospectiva, “Oiticica in London”. O volume, que reconstitui com bastante entusiasmo o impacto que a exposição na Whitechapel teve na época, traz ainda um fac-símile do catálogo da mostra original onde um texto de apresentação diz que “na sociedade da Mangueira, Oiticica experimentou um alto nível de comunicação humana, do valor das ações humanas”. Enfim, cito essas passagens para poder repetir a pergunta: por que alguém que tem as raízes de seu trabalho numa interação tão popular não é hoje celebrado por mais gente – aqui mesmo em seu país?
Para “decifrar” o trabalho de Hélio Oiticica, e responder propriamente essa pergunta, seria necessário um espaço infinitamente maior do que este nosso – e uma bancada de estudiosos bem mais competente do que eu, que me arrisco aqui a comentar de maneira superficial o conjunto de uma obra tão densa (ainda que por vezes tão volátil) como a dele. Apenas para quem está se familiarizando com o artista agora não ficar muito no ar, vou só adiantar que o título da exposição da Tate é uma boa chave para introduzir o pensamento de Oiticica.
Sua exploração da cor pode ser considerada uma das motivações centrais do seu trabalho. É bem mais que isso, claro. Mas é um bom ponto de partida. A partir da cor, ele partiu para a busca do seu desdobramento no espaço – e até no tempo. Da parede, as cores saíram aos poucos para as formas tridimensionais, para os relevos espaciais, para os ambientes definidos por ela (a cor), para os penetráveis (uma espécie de labirinto sensorial onde as experiências propostas extravasavam o campo do visual), para as imprevisíveis propostas dos “bólides” (objetos que parecem só existir como uma desculpa para redescobrir a cor), para as infinitas variações dos “parangolés” (pseudo-vestimentas de múltiplas utilizações) – e sabe-se lá para onde mais iria, não fosse a morte prematura em 1980.
Nossa… resumir uma trajetória artística como a sua em apenas um parágrafo é praticamente uma heresia (sei que vou ouvir…). Espero, porém, que isso sirva de inspiração para alguém que não conheça ainda seu trabalho e, assim, sinta-se provocado a procurar um pouco mais sobre ele (como aconteceu aqui mesmo com Yves Klein). O próprio site da Tate Modern é um bom caminho – e eles são muitos, vá em frente.
Mais ainda quero negociar com você apenas mais um parágrafo da sua atenção para falar um pouco da própria exposição – que, como comentei anteriormente, me deixou desnorteado. Não pela quantidade de obras – o conjunto não chega a ser grandioso -, mas pelo impacto revelador de ver todas essas fases do artista colocadas numa perspectiva. Oiticica trouxe uma proposta tão elaborada para as artes plásticas, que é um choque perceber como sua proposta é, paradoxalmente, simples. Revolucionária, sim – não é à toa que ele é tão celebrado como um artista influente até hoje. Mas de uma simplicidade singular.
Sua trajetória, mirabolante e multifacetada, ironicamente parece caminhar em direção à pureza de uma idéia. Ah… será que alguém que batiza um trabalho com a frase que eu emprestei para o título deste post – novamente, “Pureza é um mito” – estava mesmo preocupado com isso? Jogos de palavras à parte, a pureza do trabalho de Oiticica é de outra natureza. No seu caminho criativo Oiticica foi pegando tudo – toda a limpeza de Mondrian e toda a sujeira dos morros cariocas (para dar apenas duas pontas do arco de sua inspiração). E, por uma alquimia totalmente nova, devolveu muito mais do que a soma de cada um desses elementos: pura originalidade.
Fotos: Reprodução/Site da Tate Modern