Musa? Que musa? O contorno das coisas por vir

seg, 30/10/06
por Zeca Camargo |
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Musa? Que musa? O contorno das coisas por vir

Um domingo estranho. E não apenas pelo fato de eu ter entrevista com o Beastie Boys.

Logo depois de votar, ouvi no rádio, numa estação FM daquelas que só tocam música brasileira, logo que entrei no carro, “Como Nossos Pais”, na gravação clássica de Elis Regina. “Hoje eu sei que quem deu a idéia de uma nova consciência e juventude…” – você sabe o resto. E, logo em seguida, entrou Chico Buarque, com “Apesar de você”. Você também conhece a letra. Coincidência? “Timing”? Oportunismo? O que teria feito o DJ da tal rádio programar as duas músicas, uma em seguida da outra – e justo neste dia? Mensagem subliminar? Ou será que eu estava vendo coisas onde elas não existem? Ou existem?

Que motivos tenho eu para achar que só porque o programa de “músicas aleatórias” (a tradução um tanto lusitana para a tecla “shuffle” do meu iPod) toca “Che meraviglia”, com Elza Soares, e depois “Ódio el amor”, com o roqueiro argentino Rubin – e, na seqüência, “Labirinto dos carrascos”, com Os Carrascos (trecho da letra: “No labirinto dos carrascos, as fofuchas tão cercadas/ desce até embaixo e vem dançar com seu carrasco”) – eu tenho que tirar alguma lição disso?

Como você vê, eram muitas perguntas importantes passando pela minha cabeça a caminho da entrevista com os Beastie Boys. Mas nenhuma mais importante do que aquela levantada por dois artigos assustadores que li esta semana: será que o acaso vai deixar de fazer parte da nossa experiência cultural?

Encontrei o primeiro deles no caderno de artes do jornal “The New York Times” do domingo, 22 de outubro último. Sob o título de “A estética Starbucks”, a reportagem detectava, de maneira bastante lúcida, a tendência de a rede de cafeterias americana (que, parece, está prestes a chegar ao Brasil) estender seu conceito para muito além das doses duplas de capuccino (descafeinado, por favor!). Começando experimentalmente com CDs e depois com livros e filmes (os DVDs devem ser introduzidos neste Natal, segundo o artigo), a Starbucks oferece, cada vez mais aos seus clientes, produtos culturais que seriam uma espécie de continuidade do espírito (ou seria, da filosofia?) das bebidas que vende.

Que espírito é esse? Bem, o Brasil ainda vai levar um tempo para se familiarizar com ela – mas não um tempo muito longo, já que, depois que chega em algum lugar, ela se espalha como capim selvagem! Mas, acostumado a me deparar com suas lojas nas viagens internacionais, arrisco aqui dizer que é um espírito alternativo-comportado. Exemplos? Recentemente, Aimee Mann fez um “pocket show” numa Starbucks de Nova York. E entre os artistas que têm seus CDs à venda nas lojas, estão Alanis Morrisette, Bob Dylan (mas não Bruce Springsteen: seu álbum “Devils and dust”, de 2005, não foi vendido nas cafeterias por causa de uma música que falava sobre sexo anal com uma prostituta) – se bem que nomes mais ligados ao jazz, como Herbie Hancock, Ray Charles e até a “nova” sensação vocal, Madeleine Peyroux, estão à venda.

Nenhum problema com essa seleção diga-se. Meu problema é com o fato de uma rede de “coffe shops” escolher o que você quer ouvir. Eu sei, eu sei. Ninguém é obrigado a comprar o que eles têm para oferecer. Mas você sabe como funcionam as coisas… Uma vez que alguém conseguiu vender (ou emplacar) comercialmente uma imagem ligada a um tipo de produto (e pode ser uma xícara de café ou uma grife de roupa, uma linha de cosméticos, de lingerie, de “fast food”, ou qualquer outra marca consagrada em vários países), por que não estender essa influência? É isso mesmo que as pessoas querem? O que as pessoas querem?

A pergunta remete ao outro artigo não menos temerário que li esta semana – esse, na “The New Yorker”, escrito pelo sempre esperto autor do livro “Blink” (uma boa fonte de inspiração recente), Malcolm Gladwell. O título do seu texto é “A fórmula”, onde ele comenta dois métodos desenvolvidos recentemente para prever sucessos. Prever sucessos? Isso mesmo: Platinum Blue é um programa capaz de dizer se uma música nova vai fazer sucesso com o público; e uma matrix desenvolvida por uma companhia que se chama Epagogix é capaz de analisar o roteiro de um filme e dizer, com pouca margem de erro, que bilheteria ele terá nos Estados Unidos.

Como? Resumindo bem, Platinum Blue dividiu um número astronômico de músicas em partes matemáticas (acredite: isso é possível). Organizou as que entraram nas paradas americanas em sub-grupos e, a cada música nova que analisa, o programa a compara com esse arquivo de sucessos e diz se ela vai ou não estourar. Já a matrix do Epagogix, também chamada por seus criadores de “rede neural” (tradução para “neural networks”), “quebra” os elementos de um roteiro em itens quantificáveis, que são traduzidos em arrecadação de bilheteria.

Não tente entender – até porque, mesmo no artigo de Gladwell, nenhuma fórmula é explicada a contento (afinal… algum segredo tem de ser mantido para que a “receita” continue a ser preciosa…). O que me inquietou foi o fato de existir a possibilidade de a criação de uma música ou de um filme ser “monitorada” para agradar o grande público. É ou não é assustador?

Imagine que ao tentar escolher um filme para ver no cinema você só tenha diante de si títulos, atores, atrizes, cenários, tramas e desfechos que você já sabe que vai gostar. O prazer de ser surpreendido por uma virada na história? Isso também pode ser programado. A sensação de descobrir um talento desconhecido na tela? Só se a “equação do gosto popular” permitir. E é fácil imaginar a mesma coisa no mundo da música. Para que perder tanto tempo ouvindo centenas de músicas que “não batem fundo”, se você pode ir direto numa que já foi programada para você gostar? Musa? Quem precisa de musa? Bem-vindo a mais um novo admirável mundo novo: o do inesperado, empacotado.

Claro que, no final de seu artigo, Malcolm Gladwell tem o cuidado de fazer aquela média e dizer que os executivos de Hollywood não estão muito a fim de adotar a “matrix” do Epagogix (se bem que os executivos de gravadoras estão mais em cima do muro com relação ao Platinum Blue…). E ele termina exaltando o poder incalculável da criação humana de surpreender. Mas seu argumento convincente que afaste de vez o fantasma de um dia o futuro da música e do cinema ser dominado por fórmulas previsíveis. Ou, como na matéria do “New York Times”, um futuro onde os outros escolhem o que eu quero ver, ler e ouvir baseado no café que eu tomo ou na roupa que eu visto.

Ainda que para oferecer uma frágil resistência, faço aqui uma minúscula campanha pela criatividade humana – pela sua capacidade infinita de tirar do acaso sons, palavras, imagens, idéias que nunca se esgotam em sua originalidade. Uma campanha que é também pelo gosto humano, que, acredito, não se cansa de ser surpreendido também pelo acaso. Este sim, o acaso, o mesmo que “programou” as músicas que tornaram a manhã do meu último domingo meio estranho – o acaso é que é a grande fórmula. Eu tenho que acreditar nisso – até para celebrar a genialidade de artistas como aqueles três malucos do Beastie Boys que eu entrevistei nesse mesmo dia “estranho”.

Sobre eles, falamos na quinta.

Gisele Bündchen x Fergie Ferg

qui, 26/10/06
por Zeca Camargo |
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Imagine que você está numa banca de revista e duas capas muito parecidas chamam a sua atenção. Numa delas, Gisele Bündchen, linda – com o perdão do pleonasmo. Pose de rebelde, um sexto do seio esquerdo exposto e aquela barriga… Na outra, Fergie Ferg, a primeira da consagrada banda Black Eyed Peas – menos rebelde, usando um biquíni careta, um pouco menos bonita, mas também cheia de charme. Qual dessas você compraria na hora?

A com Gisele, claro! Por impulso. E, aos poucos, com a revista na mão, você começa a perceber que, apesar de o visual das capas ser realmente muito parecido e o título delas virtualmente idêntico, a que você comprou tem todas as chamadas em português – na sua língua? Você achou que estava comprando a “Rolling Stone”. E estava comprando a “Rolling Stone”. Mas era a primeira edição da segunda encarnação da revista americana no Brasil.

Então você volta até a banca e pega novamente a que tem Fergie na capa. Percebe que é o número especial anual da “RS” com a lista do que é “hot” (quente) na temporada. E compra também. Então, você decide comparar as duas revistas. Uma com mais de 30 anos (a americana), já na sua edição de número 1.011, a outra trazendo estampada um singelo número 1. Você dá uma folheada. Dá uma geral no visual de ambas. Confere as matérias principais. E desiste da comparação.

Entrar na discussão de que uma é melhor que a outra é o exercício mais fútil que tenho visto atualmente, pelo simples fato de que a mera publicação da “Rolling Stone” no Brasil é algo que deve ser muito comemorado. E ponto.

Na apresentação desse primeiro número, Ricardo F. Cruz, o editor-chefe, já começou mandando bem ao citar a frase curta que ouviu do fundador da “RS”, Jann Wenner, quando esteve nos escritórios da revista, em Nova York. “Opinião é o que importa, filho”. Disse tudo.

Pensar que a “RS” é uma publicação apenas de música é um grande equívoco. Desde seus primórdios, ela sempre caprichou na cobertura do assunto, mas as pessoas geralmente esquecem que ela era também (e continuou a ser ao longo do tempo) uma revista com excelentes artigos políticos (alguém se lembra, por exemplo de uma capa recente, da edição americana, com uma ilustração de George W.Bush sentando num canto da sala com um chapéu de burro e a manchete: “O pior presidente americano”?). Matérias de comportamento, perfis de celebridades, reportagens sobre tecnologia, esportes, moda – tudo sempre pareceu se ajustar perfeitamente em suas páginas.

Com a versão brasileira, não parece ser diferente. Entre as dezenas de críticas de discos que importam, notas musicais, a reportagem sobre Gisele (ou seria, sobre a expectativa de encontrar Gisele?) e um diário alucinado de estrada da banda Cansei de Ser Sexy, você encontra um lúcido (e assustador) retrato do circo político em Brasília (por Ricardo Soares), uma reportagem sobre as malhas do crime organizado em São Paulo (por Claudio Tognolli) e – sim – um ensaio fotográfico maravilhoso com casais motoqueiros.

Eu nunca vi uma revista assim por aqui…

Precisava esse tipo de informação chegar para nós com a moldura de um título americano. Quem sabe não precisava? Nem que fosse apenas pela iniciativa de criar um gosto, no leitor brasileiro, pela reportagem que foge da miopia do noticiário do dia-a-dia, que ofereça textos longos (mais longos do que esses que eu escrevo aqui neste blog – imagine que absurdo!). Nem que fosse pela nostalgia de se lançar uma revista em tempos em que todo mundo só pensa em mídia virtual. Nem que seja para agradar meia dúzia de leitores – se bem que eu sei que a “RS” brasileira está agradando bem mais que meia dúzia….

(Uma outra revista nessa linha, curiosa – e também celebrada no meio jornalístico -, que pretende valorizar ainda mais o texto de seus colaboradores, também acaba de ser lançada. Chama-se “Piauí”. Vou esperar o segundo número para falar um pouco dela.)

E a edição americana com Fergie na capa? Eu tenho um especial fetiche por listas – especialmente essas… “hot”! Assim, devorei com gosto as recomendações – mesmo sabendo, por experiência própria, que menos de um terço das coisas que a revista indica anualmente sobrevive a próxima estação… Achei até graça ao descobrir que a própria Gisele já tinha sido a garota da capa da lista “hot” de 2000. Seis anos atrás! A boa e velha “Rolling Stone”… Não muito diferente da boa e nova “Rolling Stone” – a brasileira.

Vai mudar sua vida? Para pegar emprestado a frase de uma das resenhas de discos nesse número de estréia (a de Sergio Azman, sobre o CD do Art Brut, “Bang Bang Rock & Roll”), não. “Não vai mudar sua vida, mas pode torna-la um pouco mais divertida”.

Mas isso é arte? Reflexões sobre dois tipos de tobogã

seg, 23/10/06
por Zeca Camargo |
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Mas isso é arte? Reflexões sobre dois tipos de tobogã

Para provar que estamos realmente de volta a 1981 (pelo menos na música), por pouco não escrevo pela terceira vez consecutiva sobre música. Ia falar de uma banda norueguesa (esse pessoal nórdico…) chamada 120 Days que é a reencarnação do Joy Division que o The Rapture sempre sonhou ser. Mas deixa para uma outra hora (se você não agüentar esperar, tente baixar o faixa “Come out (Come down, fade out, be gone)” agora!). Assim, consigo driblar a impressão de que este blog é só sobre esse assunto – e ainda evito topar com comentários (que eu continuo lendo religiosamente, apesar dos alertas de vários colegas contra tal atitude) na linha “esse cara acha que entende de música, mas quem entende sou eu e eu vou provar isso agora”… (já fiz isso quando eu era pequeno, sei como é…).

Então vamos falar de artes plásticas! Não, não é ainda o prometido comentário sobre a atual Bienal de São Paulo. A essa, ainda estou devendo uma visita adequada (estou? se você já visitou, me ajude a decidir). Mas, apesar de o título desta entrada até se aplicar às pirotecnias dessa exposição (ou, a bem dizer, de qualquer grande exposição coletiva dos últimos 30 anos – talvez até mais antigas, mas só consigo lembrar das que visitei dos anos 70 pra cá…), vou falar de uma instalação genial que visitei numa apressada passagem por Londres – voltando de Liverpool (de onde pretendo falar em outra oportunidade), a caminho do Brasil, na última sexta-feira.

Ela preenche o que é um dos espaços mais “malditos” para a arte – mas também um dos mais prestigiosos. Ser convidado para fazer um projeto para o “Turbine Hall” da Tate Modern é uma consagração. Basta ver a lista de artistas que passou por lá desde sua a inauguração em 2000: Louise Bourgeois, Juan Muñoz, Anish Kapoor (ele, de novo!), Olafur Eliasson, Bruce Nauman (com uma surpreendente obra acústica) e Rachel Whiteread (uma rápida amostra dessas instalações pode ser vista aqui). E agora, Carster Höller.

Quem?

Carster Hollër, alemão, criado na Bélgica, especialista em perturbar a percepção do espectador de suas obras. Você visitou a 24ª Bienal, em 2002? Talvez você se lembre de seus trabalhos (eu, apesar de ter ido a essa exposição, não me lembro; e o site da própria Fundação Bienal, que atesta que ele participou do evento, lamentavelmente não tem uma imagem das suas instalações para mostrar…). Mas eu só comecei a prestar mais atenção a seus trabalhos de três anos para cá. E, coincidências à parte, mais ainda depois de ter encontrado um de seus trabalhos na Bienal de Berlim deste ano (que visitei acidentalmente em maio último). Como um curioso apêndice de um dos prédios pelos quais a mostra estava distribuída, uma rampa de escorregador, parcialmente coberta, levava os visitantes de um andar a outro num breve convite ao abandono. Divertido – até que vinha a pergunta: “mas isso é arte?”.

Para a Tate Modern, na instalação que ficará montada até 7 de abril de 2007, Höller multiplicou e estendeu as rampas. Na tentativa de preencher aquele espaço gigantesco (que um dia já conteve enormes turbinas elétricas), ele instalou cinco escorregas – na verdade, enormes tobogãs. O maior dele, com um trajeto de 56 metros, numa queda de quase 30 metros, do último andar do museu até o solo. Divertidíssimo! – mas… posso fazer aquela pergunta?

A vontade de “cutucar” com o simples questionamento sobre a propriedade artística desse trabalho de Carster Höller não é privilégio meu, claro. Da venerada crítica de arte da “Time Out” inglesa, Sarah Kent, a todos que escrevem sobre o assunto nos diversos tablóides londrinos, a pergunta ressurgia. E ficava cada vez mais irrelevante. Nas entrevistas com o artista que pude colecionar na internet, ele faz questão de repetir que “Test Site” (o nome do trabalho) é mais uma brincadeira sua com a nossa percepção. Que não há nada como se entregar ao semi-controlado abandono “abismo abaixo”. Que as pessoas deveriam levar uma escorregada dessas mais a sério filosófica e artisticamente. E que é impossível não deslizar num de seus escorregas sem sorrir.

Não pude comprovar essa última afirmação pessoalmente. Para pegar uma senha para as filas que te levam à experiência é preciso pegar chegar com certa antecedência, já que a atração é definitivamente o sucesso da temporada da Tate (eclipsando inclusive uma brilhante retrospectiva dos suíços Fischli & Weiss). E eu estava sem tempo – acredite! Mas pude ver a alegria no rosto de todas as pessoas que desciam, de todas as idades – aquela expressão que dizia: “quero de novo!”. Só isso já não vale? Já não é arte?

Alguns críticos ingleses tentavam, não sem uma ponta de ironia, analisar a obra pelas suas propriedades arquitetônicas. Afinal, são cinco lindas espirais metálicas se desenrolando por aquele vasto hall. Mas nem o mais cínico dos críticos consegue esconder que a melhor maneira mesmo de apreciar os escorregas é… atirando-se em um deles. Entregar-se à queda, viver uma “pequena morte” (como diriam os franceses?) e depois pedir para voltar.

Não muito diferente do que se experimenta ao assistir ao novo filme de Almodóvar, “Volver” – agora completando a última etapa de festivais nacionais (na atual Mostra de Cinema de São Paulo) antes de enfim ser lançado comercialmente. No mais honesto intuito de não deixar este texto muito longo (se bem que… você já me conhece…), não vou me aprofundar. Até porque, qualquer trabalho de Almodóvar encontra sempre infinitos voluntários para análises que nem sempre deveriam ser profundas. Taí um coro que não precisa de mais uma voz…

Quero apenas aproveitar a analogia do tobogã para dizer que, depois que você assiste àquela cena de abertura de “Volver” – um longo “travelling” pelas tumbas de um cemitério no interior da Espanha onde mulheres limpam freneticamente as lápides num duelo inglório contra o vento e a poeira que assolam a região (na verdade uma das cenas mais lindas que eu vi no cinema neste século XXI) -, enfim, depois de ver isso, você sabe que a descida vertiginosa por uma narrativa alucinada é inevitável.

“Volver” fala, claro, de memórias. De mulheres, de paixões, de fantasmas, de famílias – de fantasmas na família. Fala de coisas que não se falam. E mais uma vez fala de tudo, com cada um de nós. Elogiar aqui a performance de Penélope Cruz, sempre tão desperdiçada em todas as tentativas que fez de brilhar em Hollywood é inútil. Sabemos o que o diretor pode fazer com ela. Invejar (especialmente sendo um homem) a maneira como Almodóvar penetra na alma feminina também já virou quase um clichê – se bem que, é preciso dizer, dessa vez ele alcançou uma intimidade ainda mais impressionante. Dizer que, novamente, a comédia (pontual, mas sempre bem-vinda) torna-se cada vez mais em sua obra um apoio para uma grande tragédia… para quê? Explicar o que faz nossa garganta apertar ao ver, na cena final aquele hall da casa vazio (já que falei aqui de espaços que precisam ser preenchidos)? Impossível. O fato é que mais uma vez o diretor consegue nos lançar (ou seria melhor dizer “nos empurrar”?) num vértice de emoções.

Mas isso é arte?

Coisa boa é poder fazer essa pergunta indefinidamente. Para onde será que vamos escorregar na quinta-feira?

Haçienda, finalmente…

qui, 19/10/06
por Zeca Camargo |
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Escrevo de Manchester, Inglaterra, onde vim fazer uma reportagem. E visitei um lugar que sempre sonhei – com ligeiros 20 anos de atraso. Como sempre estive ligado na possibilidade de viajar, gosto de associar cada década da minha vida com um lugar no mundo que eu gostaria muito de visitar.

Agora, no começo do século 21, meu objetivo era o Butão, para onde eu consegui viajar no ano passado. Nos anos 90, era fixado em Istambul, Turquia – que só fui conhecer quase no final da década. Nos anos 70, o sonho era conhecer o Studio 54, em Nova York – não deu.

Pulei os anos 80? Foi para, estrategicamente, poder me alongar mais sobre eles: o destino mais cobiçado nessa época foi justamente Manchester. E por causa de uma certa banda chamada New Order. Ah, e uma certa banda chamada The Smiths.

Primeiro, o New Order. O QG deles era justamente este clube chamado Haçienda. De lá vinha a melhor música dançante da minha juventude – não apenas os (hoje) clássicos do New Order, mas todos os sons que ajudaram a redefinir o que enchia a pista de dança, inclusive os sucessos tardios de bandas como o Happy Mondays (mais sobre eles, daqui a pouco).

Pois não é que o Haçienda virou um prédio de apartamentos? Meu coração partiu-se em mil pedaços quando o guia que fazia o roteiro turístico musical da cidade me contou isso. O templo da modernidade, cedendo ao poder do mercado imobiliário: Manchester ficou mais rica e mais “transada” nos últimos anos, e o clube, que nunca foi um primor no quesito prestação de contas, estava quase quebrando. E fechou.

O tal “tour” musical pela cidade é curioso: como você ilustra o talento das bandas de Manchester sem a presença dos próprios artistas? Uma história aqui, um lugar de shows ali, uma lojinha de discos acolá (onde, por exemplo, Morrisey, líder dos Smiths, arrumou um trabalho que detestava tanto que o imortalizou na música “Heaven knows I’m miserable now”: “Eu procurava um emprego / e achei um emprego / E os céus sabem como eu me sinto miserável agora”, cantava ele – em inglês, claro…). O guia conta que existem até excursões mais específicas, como uma só para fãs dos Smiths, que vai até a casa onde o próprio Morrisey nasceu – e arranca lágrimas dos admiradores mais devotos. Mas será que isso faz sentido? Será que isso ajuda a entender melhor a atitude da cidade que ajuda a produzir tanta música genial?

Falei de New Order e Smiths, mas a lista é enorme: vai de Bee Gees (!) a Oasis, passando por Buzzcocks, Joy Division, Stone Roses, 808 State, Inspiral Carpets, M People, o ultra-alternativo The Fall, o ultra-pop Take That, The Doves – e claro, o também já citado Happy Mondays.

Um dos produtores musicais mais importantes de Manchester, o homem por trás dos Mondays, entre tantas outras bandas, falou para um pequeno grupo de pessoas que viaja comigo. Ele é Tony Wilson – e gastou a primeira metade da sua palestra falando da diversidade e da atitude dos músicos seus conterrâneos. Mas a parte mais interessante do que ele disse veio na seção de perguntas. Ouvir suas histórias de como esses sucessos foram criados foi delicioso. Nem tudo que Wilson contou, porém, foi trivial.

Com sua experiência de mais de 30 anos na música, ele deu uma de mestre ao ser perguntado se existe mesmo o mito do “grande artista injustiçado que nunca conseguiu fazer sucesso”, ele foi categórico: “Não!”, respondeu logo. E logo pediu a ajuda de Nick Hornby, o autor de “Alta fidelidade”, que num livro anterior a esse, cujo assunto era futebol, também comprou uma briga ao dizer que não existe “o grande jogador que nunca foi descoberto por um técnico”. “Todo mundo está sendo observado por alguém”, dizia Hornby (segundo Tony Wilson). E a mesma coisa acontece com as bandas e os artistas. Quem é bom… aparece. Já ouviu isso antes? Pois agora está fechada a questão. Wilson vai adiante: “Não existe um conjunto de canções geniais que só foram descobertas décadas depois de terem sido compostas”. O que é bom é bom e acaba aparecendo.

Mais ou menos como a música que era feita no Haçienda – aquele lugar que um dia eu sonhei em conhecer. Vamos adiante… quando você ler isso eu já estou em Liverpool…

É 1981, tudo de novo!

seg, 16/10/06
por Zeca Camargo |
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Estou de saída para mais uma viagem – como da última vez, a trabalho. Londres, dessa vez. Com a correria acumulada do fim-de-semana, vou (ainda que involuntariamente) satisfazer os internautas que tanto reclamam que meus textos são talvez um pouco longos demais para um blog: aqui vai um bem curto – e falando sobre um assunto só! Quem sabe este até faça algum sentido!

Essa breve entrada é só para comemorar uma recente descoberta musical: The Legends. Apesar de o nome da banda ser em inglês, eles são da Suécia. E apesar de o disco “Facts and figures” ter sido lançado no mês passado (setembro 06), o som é incrivelmente moderno – se você acertar seu calendário para 1981. Minha recomendação é que você ignore qualquer referência a espaço e tempo e corra atrás desse som.

Se você não é da minha geração, provavelmente não viveu o choque de ter ouvido “Speak & spell” (o disco de estréia do Depeche Mode, de 1981) pela primeira vez. Antes de serem os mensageiros do som eletrônico existencialista (na fase que foi de meados dos anos 80 até o final do século 20), o DM era a banda mais divertida do planeta. A faixa mais conhecida dessa época, “Just can’t get enough” é apenas uma amostra – experimente ouvir a “alegríssima” “What’s your name”, ou a misteriosa “Dreaming of me”. Essa animação toda durou pouco, até mais ou menos 1985, quando então a banda resolveu se levar a sério. Mas a primeira impressão foi a que marcou profundamente este blogueiro ainda jovem.

O som que gerou dezenas de grupos de garotos brincando com sintetizadores… Naquela primeira metade da década de 80, o pop conheceu as variantes mais diversas: da decadência do Soft Cell ao glamour do Duran Duran; da pretensão do The Associates ao pastiche do Classic Nouveaux; da inteligência do Heaven 17 à inocência do China Crisis; da sofisticação do Japan ao esculacho do Spandau Ballet. Eu prometi que seria um texto curto – não vou entrar em detalhes sobre cada uma dessas preciosidades (e olha que a tentação é grande…).

Enumero todas essas referências apenas para poder elogiar a petulância do Legends em tentar reproduzir – com muito sucesso – essa época. Jay Jay Johanson, outro sueco que está tentando clonar o mesmo período musical desde o final dos anos 90, deve estar deprimido – nem seu álbum “Antenna” (2002), com a quase impecável versão para “Automatic lover” chegou perto da perfeição de “Facts and figures”, do Legends. E, para uma banda que mal existia há três anos, isso não é pouca coisa.

Falar de música é complicado. A gente sempre tem que fazer aquela ginástica para escapar da roleta russa dos clichês. Assim, na esperança de que você consiga achar pelo menos uma amostra da música deles na internet, listo aqui algumas das minhas faixas favoritas: “Heart”, a que abre o CD e a melhor opção atual para se abrir uma pista de dança; “Play it for today”, tão cafona que dá a volta de 360 graus e torna-se “cool”; “Closer”, balada minimalista que mais absorveu as lições de 1981; “Disco sucks”, que Justin Timberlake adoraria ter incluído no seu último disco; e “Darling”, que se cair na mão de algum produtor de “brega” no Pará, vira hit em todo o Brasil.

Fui breve? Tomara. Na quinta, notícias (mais longas, quem sabe?) do Reino Unido.

Pratos

qui, 12/10/06
por Zeca Camargo |
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Falei que ia escrever sobre a Bienal. E vou. Mas não agora. Até vou, mas “por tabela”. Vou começar pelo livro que terminei de ler, “Murder in Amsterdam”, de Ian Buruma – infelizmente ainda sem tradução para o Brasil. É o mais perfeito retrato do desafio que a Europa enfrenta hoje. Em breves linhas, Buruma, nascido na Holanda (mas mora nos Estados Unidos, onde leciona no Bard College), tenta entender o que aconteceu com seu país de origem analisando dois crimes notórios que lá acontecerem neste século: o assassinato do polêmico político (holandês) Pim Fortuyn, e o do cineasta (também holandês) Theo van Gogh.

Mais sobre o livro – e sobre as profundas reflexões que ele provoca – num outro momento. O que eu queria destacar sobre ele aqui é uma expressão que eu nunca tinha visto e que me pareceu extremamente representativa desses nossos tempos. Você já ouviu falar em “dish city” – ou “cidade de pratos”?

Buruma usa a expressão (que certamente não foi criada por ele) para descrever bairros inteiros em cidades da Holanda que não têm nenhuma relação com a cultura holandesa. Justamente por causa dos “pratos” – ou “dishes”, como é chamado, em inglês, aquele discos que recebem sinais de televisão por satélite. “Dish city”, ou “cidade de pratos”, é como se chamam os subúrbios (em sua maioria muçulmanos) das grandes cidades européias, onde todas as informações chegam pelas TVs via satélite, das emissoras do Oriente Médio. Resumindo bem, o termo designa populações inteiras que vivem completamente alheias ao cotidiano de onde moram – “bebem” todas suas informações de emissoras que falam sua língua e estão sediadas a quilômetros de distância, em países onde nasceram os pais e avós de gerações que hoje se sente extremamente deslocadas numa Europa que não sabe exatamente o que é.

Por que escrever sobre as “cidades de pratos”? Primeiro porque elas refletem um sinal dos tempos – não preciso nem me alongar sobre isso (preciso?). Segundo, porque, estranhas como parecem, elas parecem ser um antídoto à globalização cultural. Não importa o quão cosmopolita é a cidade em que você vive (São Paulo inclusive). As ligações com sua “cultura de origem”, graças à tecnologia, vão ser sempre mais fortes, e deverão sempre se sobrepor às influências externas – da cidade onde você vive.

Agora imagine que você viva numa “dish city”. Toda a informação que você recebe vem da região onde sua família, ou pelo menos a cultura dela, se originou. Será que você seria capaz de se “integrar” numa sociedade multicultural? Se o exemplo holandês parece muito distante, imagine uma analogia com o Brasil: você sai do Ceará, tentar a vida em Santa Catarina, mas você continua ouvindo o noticiário da sua cidade, as mesmas músicas que suas primas que ficaram por lá, as mesmas referências que você encontra desde a sua infância. Mas você trabalha em Santa Catarina. Onde você… “mora”? Onde você vive?

O exemplo brasileiro é só uma alegoria, claro. As conseqüências de um “intercâmbio” como esse entre a Europa secular e a crescente população islâmica européia são… eu diria “imprevisíveis” se nossa mera observação em cima dos fatos do noticiário do dia-a-dia já não nos apontassem a resposta. Nós sabemos o que está para acontecer. Ou melhor, nós o esperamos a cada noticiário. Quem não teve a certeza, num primeiro momento, que o acidente com um avião na última quarta-feira em Nova York não tinha a ver com um ataque terrorista?

Mundo complicado… E eu só queria falar de pratos… Não só os que compõem uma cidade, mas também de um outro prato, tão grande que pode ser chamado de espelho – e que está em plena quinta avenida em Nova York. Deixa eu falar dele: é uma obra do famoso escultor anglo-indiano Anish Kapoor: um enorme disco prateado que reflete o céu sobre o Rockfeller Center e inevitavelmente atrai a atenção de quem passa pela avenida mais popular dos Estados Unidos. Eu estive lá há algumas semanas e vivi essa experiência. É de mexer com seu labirinto.

A peça é gigantesca. Reflete, sem pedir licença, uma boa parte do céu (daí o título “Sky Mirror”) e uma fração ou outra do imponente Rockfeller Center. Aproximar-se dela significa deitar-se sobre um precipício infinito e entregar qualquer possibilidade de estabelecer contato com as dimensões do mundo real. É vertiginoso. E genial.

A obra de Anish Kapoor está de passagem pelo Brasil. Chegou pelo Rio de Janeiro, onde uma modesta (ainda que brilhante) retrospectiva de seus trabalhos atraiu multidões no CCBB até algumas semanas atrás – e agora pode ser visto de hoje até janeiro de 2007 em Brasília. Modesta talvez no tamanho, mas imensa na repercussão. Eu mesmo fui visitá-la no Rio e, escondido num canto do lobby central, admirei por quase uma hora a coluna de fumaça que ele criou naquele espaço – e pude ver como as pessoas que visitavam todas as galerias não conseguiam acreditar no que seus sentidos as informavam.

Da mesma maneira, mergulhei no grande prato de Nova York (que fica lá até o final deste mês). E mais uma vez me entreguei às tentações sensoriais de Kapoor. A mesma exposição que já passou pelo Rio e está agora em Brasília chegará a São Paulo em janeiro e poderá ser vista até abril de 2007. Eu reluto muito em usar esse adjetivo, mas aqui nada poderia ser mais apropriado: imperdível.

Mas, pelo menos para os paulistanos, quem não tem Anish Kapoor caça com… a Bienal! Este texto já ficou longo demais para um blog. Vou falar mais sobre a maior exposição de arte internacional no Brasil numa outra oportunidade. Até porque não a visitei de maneira apropriada. Fui correndo, enquanto tentava colocar de pé uma reportagem – que acabou não acontecendo.

De tudo que vi, porém (correndo, repito), o que me chamou atenção foi um vídeo cujo autor nem tive tempo de anotar o nome (prometo checar isso quando voltar a falar da Bienal). Mas que achei poderosa. E – veja que coincidência! – tem a ver com “pratos” também: trata-se de um vídeo projetado numa tela enorme de um gato (muito bonitinho, malhado de cinza e branco – e que até se parece com o meu) comendo um rato morto no meio da rua. Só isso. Filmado bem de perto, o vídeo permite que você observe cada detalhe da refeição (ou “prato”) do felino. Até mesmo o momento em que ele, já com a maior parte do rato no estômago, ajeita seu tubo digestivo para engolir o rabinho que falta. O engulho (do espectador) é inevitável. O gato, nada sente, a não ser a sensação de ter satisfeito sua fome. Tão fofinho. Tão nojento. Não é tudo assim?

O prato do gatuno não passa de uma ação corriqueira. Aparentemente monstruosa. Mas, para quem olha de perto (o próprio gato), normal. Como as informações que chegam por tantos pratos das “dish cities” espalhadas pelos centros urbanos. Como as estonteantes realidades trazidas pelos pratos/espelhos de Anish Kapoor.

Sirva-se!

Pobres livros

seg, 09/10/06
por Zeca Camargo |
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Não é uma reclamação. É uma constatação. Vou repetir de outra maneira para que você não ache que é pessoal: quero começar este texto com uma constatação, não uma reclamação. E a constatação é esta: de todos os comentários que li até concluir este blog, apenas um mencionava o livro que citei ao longo da argumentação sobre “Cobras e Lagartos”. Apenas um. Ainda estou tentando entender.

Fiquei feliz com as várias pessoas que se mostraram entusiastas do cinema indiano de Bollywood. Que maravilha saber que ainda é possível despertar o interesse por um gênero cinematográfico praticamente desconhecido (surpresa ainda mais prazerosa foi o número de pessoas que já conheciam Bollywood – e ainda me deram dicas!). Mas o que eu queria mesmo, além de declarar minha admiração pela novela, era chamar atenção para o livro de Uzodinma Iweala, “Feras de Lugar Nenhum”. Obviamente, não funcionou.

Injusto, claro, comparar um produto tão bem sucedido, como essa novela, que mal precisa de divulgação para chegar ao público, com um livro que mal consegue achar seu nicho de leitores. Mas eu juro que tinha esperanças. Sim, porque aqui eu também vou falar de livros. Não com o intuito de aumentar suas vendas – quem me dera eu tivesse esse poder. Mas, no mínimo para fazer com que eles se tornem mais excitantes aos olhos (e mentes) de quem não os conhecem. Missão inglória? Talvez. Só que eu acho que eu tenho que tentar – vencer meu próprio “desentusiasmo” (isso existe? meu corretor ortográfico sublinha a palavra de vermelho e diz que não…). Mas por onde?

. Se “Feras de Lugar Nenhum”, com suas curtas (e delirantes) 191 páginas já foi um “caso difícil” – a julgar por essa minha observação recente – que chances teriam “O Paraíso É Bem Bacana”, de André Sant’Anna, com suas 452? Nada que eu li este ano (nem mesmo “Feras”) me pareceu tão original – ou “pertinente”, ou “interessante”, ou “instigador”, ou qualquer outro adjetivo daqueles fáceis de tirar da manga quando se escreve uma resenha, inclusive “engraçado”.

Se, no mesmo raciocínio, as chances de “Paraíso” chegar ao grande público, o que dizer do “monumental” (outro adjetivo fácil de resenha, mas que nesse caso vem muito a calhar) “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves que só conclui sua narrativa na nonocentésima quadragésima sétima página? (apenas para registro, meu corretor ortográfico também sublinhou em vermelho a primeira palavra do ordinal para 947 – será defeito?). Eu mesmo tive de respirar fundo antes de encará-lo – e encontrar todas as recompensas que Millôr Fernandes anunciou no texto da orelha do livro.

E estou apenas nos lançamentos de ficção. Quais as chances, repito, de a reedição de um clássico como “Sagarana”, de Guimarães Rosa, numa lindíssima edição que beira o fetiche, entrar para a lista dos mais vendidos? Estou lendo um excelente livro de não-ficção, “Murder in Amsterdam”, de Ian Buruma (“só” 262 páginas, ainda sem tradução no Brasil), sobre a morte do diretor de filmes Theo van Gogh (holandês) e os limites da tolerância (como resume o subtítulo) e, mesmo antes de acabá-lo, lamento que ele nunca vai atingir seu potencial de leitores no Brasil.

Esta semana fiz uma reportagem sobre os dez anos da morte de Renato Russo e descobri, com um fã, uma carta onde o cantor, líder da banda Legião Urbana, indica uma lista de livros que foram importantes para ele – na esperança de inspirar seu exército de seguidores. De Fernando Pessoa a JD Salinger (“O Apanhador no Campo de Centeio”), todos os “suspeitos de sempre” estão lá. Jorge Amado (com “Capitães de Areia”), Aldous Huxley , Orcar Wilde, Thomas Maan, George Orwell – daí em diante (a lista completa está no site www.globo.com/fantastico). Será que o carisma de Renato Russo será capaz de fazer seus fãs entrarem em hordas pelas livrarias do Brasil atrás desse seu cânone literário? Duvido…

Reclamo aqui em vão, eu sei. E chego quase a cometer a injustiça de achar que o melhor que poderia acontecer seria esses meus autores favoritos da hora (não vamos nem falar de Jonathan Safran Foer…) virarem “bestsellers”… O melhor que poderia acontecer, na verdade era que alguém, pelo menos um, uma, pegasse um livro desses e ficasse totalmente tomado por ele. E que depois contasse para os outros. E que isso fosse adiante…

Porque cada um desses livros me inspiram a escrever uma entrada para este blog exclusivamente para ele. Talvez eu devesse fazer isso mesmo, mas como sou novo no pedaço, ainda não quebrei a equação de tempo e espaço da internet – e acabo falando de coisas demais. Tomara que eu não mude.

Vou terminar de ter “Murder in Amsterdam” ao som de “Coco on the Corner”, de uma banda chamada Takka Takka (ah… aquele assobio…) e quem sabe um dia escrevo só sobre ele… Mas, para a próxima entrada, quinta que vem, acho que vou me afundar mais ainda nessa “crise existencial”: vou dar um pulo na 27ª Bienal de São Paulo e ver o que a reação das pessoas quando eu cometer o atrevimento de falar de algo ainda mais rarefeito que os livros: as artes plásticas.

Feras, cobras e lagartos

qui, 05/10/06
por Zeca Camargo |
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Ontem eu não consegui ver o capítulo de “Cobras e Lagartos” e hoje estou um pouco preocupado. O mundo pode ter acabado e eu não sei. Ou pode ter acontecido uma chuva de caviar sobre o Saara, no Rio – e eu fiquei sem saber. Pode ser que toda a loja Luxus, o templo do consumo “sofisticado”, tenha se transformado numa grande laje para churrascos, e eu não vi. Ou então, metade dos personagens da novela perdeu a memória (ou teve a memória transplantada para a outra metade do elenco) e eu não vou entender mais nada da história. Mas quem disse que eu estava entendendo? E quem disse que é para entender?

Com uma das narrativas mais alucinadas que já apareceram no horário, “Cobras e Lagartos” (que, para o meu profundo pesar vai acabar em menos de dois meses) deu muito certo. Isso, claro, não é novidade. A novela estreou lá longe, no primeiro semestre (quando as pesquisas eleitorais… bem, deixa para lá – esta coluna é sobre cultura…), e não estou apenas chegando atrasado para elogiar algo que já é notoriamente um sucesso. Mas é que agora eu tenho este blog e não posso deixar de dividir com você a curiosa associação que fiz entre as peripécias de Foguinho, Ellen, Estevão, Leona, Milu, Marilene, Duda, Bel (e tantos outros personagens) com uma paixão antiga: Bollywood.

Não, não houve engano na grafia da palavra que fecha o parágrafo anterior. Dois cliques na wikipedia vão te informar sobre a poderosa fábrica de cinema indiano – se é que você, como eu, já não é um fã dela há tempos. Para não desperdiçar o clichê mais surrado (e, diga-se, correto), Bollywood faz da Índia o pais que mais produz filmes atualmente no mundo (tem a frenética indústria de DVDs na Nigéria, mas essa corre por fora). E são todos enlouquecidamente maravilhosos.

Explicando bem brevemente (isto é um blog, eu sei!), um típico filme “bollywoodiano” começa com um conflito familiar. Amor impossível é o mais freqüente, mas pode ser uma “crise” de liberdade dos filhos, a luta de uma mulher para ser mais independente, uma herança… Ou pode simplesmente ser um aloprado (para usar o adjetivo da moda) golpe criminoso contado como grande farsa. Qualquer que seja o argumento, a história acaba sendo só um pretexto para uma colagem de números musicais em cenários ensandecidos. Por exemplo, sem a menor explicação, a ação se transfere de Mumbai (Índia) para Machu Pichu (Peru), apenas para ilustrar uma coreografia frenética e romântica, onde um exército de figurantes se multiplica com a mesma rapidez que vai desaparecendo da cena. E a história é retomada com nova reviravolta – imprevisível e absurda.

“Cobras e Lagartos” não tem os números musicais (se bem que, com algumas semanas ainda para se desenrolar, fica aqui a dica…). Mas, no quesito “imprevisível e absurda”, a musa que inspira a novela é a mesma que semeia a imaginação dos roteiristas de Bollywood. Em menos de um capítulo (muitas vezes em menos de um bloco), quem estava comendo “fois gras” passa para uma dieta de pão velho. Quem estava com passagem de primeira classe para Paris acaba dormindo na favela. Um pai de quatro filhos descobre que é estéril. Quem curtia uma lua-de-mel é quase assassinada pelo marido. Os exemplos são inúmeros. E eu acompanho tudo deliciado. Sou carregado pelo “non-sense” da trama como quem entra numa montanha-russa de olhos vendados. E não me arrependo.

“Feras de lugar nenhum”, livro de Uzodinma Iwela, também oferece um “passeio” desses – mas o percurso é bem diferente. Ao contrario das emoções de “Cobras e Lagartos”, a narrativa de “Feras” te oferece um trajeto aterrorizante. Sem pé nem cabeça também, mas num mundo onde as coisas estão sem sentido não em nome da graça, mas do horror – aquele horror que Marlon Brando evocava no final de “Apocalypse now”.

O personagem central do livro é Agu, um garoto pré-adolescente recrutado por uma milícia independente num território não-definido da África. Viu seu pai morrer, perdeu-se da sua mãe e de sua irmã e agora se vê lutando numa guerra que não consegue entender.

Iweala, escritor de origem nigeriana, escreve usando um presente infinito, como se a história dele não tivesse começo nem fim. Liderados por um comandante tirano, os jovens soldados são apenas instruídos a obedecer cegamente e destruir o que vêem pela frente: casas, animais, pessoas. A percepção de Agu é tão distorcida que as cenas mais delirantes são encaradas como naturalidade: “Gosto do som da faca cortando TCHUM TCHUM sua cabeça e de como o sangue jorra da sua mão e de seu rosto e seus pés. Corto e corto até que olho para cima e está tudo escuro. Mais uma noite”.

E a lembrança serena de uma cena normal é vivida como um delírio. “Ouço o som do lápis escrevendo no papel e o som do giz escrevendo no quadro-negro e o som que o apagador fazia quando batíamos na pedra para tirar a poeira”, descreve o narrador em um de seus devaneios no meio da madrugada.

Impossível saber onde Agu (e cada um dos soldados-mirins de “Feras”) vai parar, o que vai ser deles quando um dia saírem desse inferno – se saírem. Tanto quanto é impossível saber qual o desfecho da vida Foguinho (de “Cobras e Lagartos”) que oscila entre a extrema pobreza e a exagerada riqueza.

Se comparo aqui uma tragédia cruel (qual não é?) com uma comédia escrachada (qual não é?) é apenas para reafirmar minha crença de que o poder de uma boa narrativa transcende qualquer gênero. Muito fácil (e “de muito bom tom”) se entregar a uma história quando ela evoca o sofrimento humano. Mas muitas vezes falta coragem para se ter a mesma atitude com algo que faz simplesmente rir.

Se você ainda vive esse impasse, eu posso recomendar uma lista de filmes de Bollywood para assistir… Mais sobre eles numa outra oportunidade, porque este texto talvez já esteja um tanto longo para os padrões da blogosfera. Mas, se sua atenção já te trouxe até aqui, não é para você que eu tenho de pedir desculpas… Aliás, só tenho que agradecer…

Das tentações de um blogueiro (e de como eu resisti a todas, menos uma)

seg, 02/10/06
por Zeca Camargo |
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Das tentações de um blogueiro (e de como eu resisti a todas, menos uma)

Muitas vão duvidar, mas escrever um blog, com uma certa freqüência, exige um certo planejamento. Hoje, por exemplo, eu ia escrever sobre duas das narrativas que mais me fascinaram neste ano, o livro “Feras de Lugar Nenhum”, de Uzodinma Iweala, e “Cobras & Lagartos”, a novela. A idéia era sim, fugir do comentário sobre o resultado das eleições (uma “narrativa” também interessante, mas por todos os motivos errados), mantendo-me fiel ao espírito deste blog.

Porém, talvez pela ressaca do fim de semana, carregado de trabalho, antes de encarar os assuntos planejados, resolvi dar uma lida mais atenta aos comentários postados para minhas duas primeiras colunas. E fui ficando um pouco inquieto.

Colegas blogueiros (sim, nós nos comunicamos, e, eventualmente, até nos reproduzimos!) já haviam me alertado para os riscos que esse mergulho me traria. Mas foi só ler os primeiros vinte comentários que uma vontade urgente de responder a cada um deles tomou conta de mim. Resisti. Pensei de novo em responder. Desisti de novo. São tantos – e tão divertidos (em todos os sentidos) – que não tinha como ignorá-los.

Resolvi dividi-los por grupos e ver se eu conseguia elaborar algumas “respostas coletivas”. Comecei pelas mensagens “positivas”. Foi bom saber que tanta gente gostou do blog e que voltaria outras vezes. Melhor ainda foi descobrir que muita gente conseguiu perceber que o primeiro texto era totalmente irônico – algo que, de fato, deve ser comemorado, uma vez que percebi rapidinho, que esse recurso de linguagem se traduz tão mal para a palavra escrita (e um pouco pior para a palavra escrita numa página da internet).

Ainda a me alegrar, vários comentários identificaram o blog pelo que ele realmente pretende ser: um espaço para falar de cultura. E… de comentários bons mesmo (amigos e familiares: não estou incluindo o de vocês…), foi só. Resisti à tentação de responder a cada um deles, primeiro porque me pareceu um exercício de extrema vaidade. Depois, honestamente… onde isso iria parar?

Passei então aos negativos, também fáceis de juntar em grupos. Dentre eles, o que me deixou mais perplexo era o das pessoas que não entenderam o que eu escrevi. Mais de um dizia que nada fazia sentido. Nada? Fui reler os textos. Nada? A tentação era responder cada um desses comentários perguntando onde exatamente eles “se perderam”… Resisti.

Tinha o grupo dos que se decepcionaram com um blog que fala só de “bobagem”. Consultei vários dicionários e não encontrei em nenhum uma definição de “cultura” que me levasse ao significado “bobagem”. Incrível, mas tem quem ache que isso não é assunto… digno! Já que eu acho – e muito! – resisti à tentação de responder a esses comentários também.

Um grupo enorme me deu a impressão de ter lido apenas o primeiro parágrafo (alguns, só a primeira linha). Quase respondi com um desaforo. Mas lembrei que a duração da atenção de um leitor médio de internet é mesmo menor que um parágrafo. Perdoei. Eles não sabem o que fazem (ou seria, “o que perdem”?).

Como uma variação desse, outro grupo deu a impressão de ter lido apenas o parágrafo onde eu perguntava se alguém ainda precisa de mais um comentarista que visse/assistisse/ouvisse tudo antes dos outros e usasse isso para se exibir. Esses confundiram tudo, achando que eu estava propondo ser mais um desses. Foi aí que eu percebi que ironia não combina com blog. E resisti à tentação de respondê-los também.

Ainda: os que achavam que eu tinha ido a Nova York apenas para ter assunto para esse blog; os que achavam que o primeiro texto era só sobre a Cicarelli; os que se baseavam na minha imagem da TV para imaginar como seria meu texto (e, obviamente se decepcionaram – não porque eu sou uma pessoa diferente lá e aqui, mas porque os espaços são fundamentalmente diferentes); os que discordam da idéia do que é cultura; os que discordam até do que é idéia! Resisti bravamente à tentação de responder a cada um desses grupos.

Resisti até às cantadas!

Não foi fácil. Tive de me segurar e entrar no espírito da saudação que uma colega blogueira (e bem querida) me enviou: “Welcome to the jungle”!

Só não resisti à vontade de escrever sobre isso. E fugir, assim, do meu planejamento. Mas agora já foi. Saiu. “Cobras & Lagartos”, Uzodinma Iweala, amigos, desafetos, admiradores e combatente, críticos em geral, até a próxima. Em breve, aqui neste espaço.