Goya e o perigo de justificar a violência com causas nobres

dom, 16/02/14
por Luciano Trigo |
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Da Espanha do tempo de Goya à realidade de hoje, muita coisa mudou, mas não o hábito de justificar a violência com motivações nobres. A ideia, atualíssima para os tempos sombrios que o Brasil atravessa, está presente no ensaio “Goya à sombra das Luzes”, de Tzvetan Todorov (Companhia das Letras, 312 pgs. R$ 49,50). ”Goya não foi somente um grande pintor, mas também um intelectual que conseguiu refletir de modo profundo sobre o que acontecia ao seu redor”, afirma o autor. Influenciado pelos iluministas espanhóis do final do século 18 e contemporâneo da invasão da Espanha pelas tropas napoleônicas – que, em nome dos direitos humanos e dos ideais das Luzes, matavam e trucidavam a três por quatro, Goya assistiu de perto a um espetáculo de horror – e registrou em diversas obras, de forma direta ou alusiva, as atrocidades cometidas tanto pelos franceses quanto pelos  espanhóis. São obras que ainda hoje assombram, nos indagando: pode-se impor o bem pela força? É possível controlar a violência com a razão?

Um exemplo é a coleção de de 82 gravuras, realizadas entre 1810 e 1815, “Os desastres da guerra”, que mostra pilhas de cadáveres de combatentes jogados em fossas comuns e fuzilamentos sumários. Os espanhóis lutavam por patriotismo e pela defesa dos valores tradicionais da religião, enquanto os franceses combatiam em nome da razão e da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Mas os horrores perpetrados pelos dois lados eram semelhantes. A tomar partido, Francisco José de Goya y Lucientes preferiu marcar posição contra a guerra.

Búlgaro de nascimento e francês por adoção, estudioso dos regimes totalitários, aos 72 anos Todorov viveu o suficiente para entender que, dois séculos depois de Goya, continuamos matando em nome dos direitos humanos, da democracia e da liberdade. Nesse sentido, seu livro fala tanto sobre a Espanha do Iluminismo quanto sobre as guerras humanitárias de hoje – e, involuntariamente, sobre aqueles que justificam a violência nos protestos em nosso país, mesmo quando ela tira a vida de inocentes. “É tão fácil matar em nome dos direitos humanos quanto em nome de Deus”, Todorov declarou recentemente numa entrevista. Também é fácil matar por 25 centavos da passagem de ônibus, ou para não termos Copa.

Goya, "Los fusilamientos del 3 de mayo"

Todorov vai além: ele considera arriscado – salvo nos casos de guerras defensivas ou de genocídios iminentes – usar a bandeira dos direitos humanos para justificar qualquer ação violenta. Para ele, estamos vivendo uma nova fase de messianismo político (a primeira foi justamente a napoleônica, retratada por Goya, e a segunda foi a do comunismo, que prometia libertar as massas). Muitos dos conflitos armados do planeta hoje não seriam senão a reprodução, 200 anos depois, do confronto entre iluministas e tradicionalistas, napoleônicos e conservadores. Nesse sentido, os retratos de Goya são como as fotos na Internet de Guantánamo ou Abu Ghraib. Mas, ainda que exista uma “parte inumana na humanidade”, a ambição de extirpar totalmente o mal pode ser pior que o próprio mal: é impossível eliminar completamente as sobras da natureza humana, as raízes do mal e da violência na sociedade.   

O ponto de partida de Todorov são as “Pinturas negras”, série de 14 quadros pintados diretamente sobre os muros de sua casa, conhecida como a “Quinta del Sordo”: o autor imagina o artista entrincheirado na sua quinta, “como os escritores soviéticos que escondiam seus textos para sobreviver”. Só bem mais tarde Baudelaire foi um dos primeiros a compreender que Goya não desenhava fantasmas e bruxas, mas uma dimensão secreta e ignorada da humanidade. Seus quadros seriam, portanto, uma premonição dos campos de extermínio e outros traumas da História recente. “Os horrores dos regimes totalitários nos ensinaram que Goya era um pintor realista, e não fantasmagórico. Somente depois do Holocausto fomos capazes de entender Goya.”

A partir da influência das ideias iluministas sobre o artista espanhol, Todorov analisa as relações entre filosofia, estética e História na gênese de suas principais obras. Todorov também analisa a transformação existencial de seu personagem. O pintor aragonês era um dos artistas favoritos da Corte espanhola. retratando reis e nobres, além de pintar temas bíblicos sob encomenda da Igreja. Em 1793, o ano em que os franceses guilhotinaram seu rei, ele contraiu uma doença misteriosa que o deixou completamente surdo, o que transformou seu modo de ver e registrar o mundo: Goya substituiu a representação da realidade objetiva e o respeito pelas convenções  acadêmicas por visões fantásticas e assustadoras, mergulhando nos subterrâneos mais obscuros da natureza humana, em séries radicais como os “Caprichos” e “Os desastres da guerra”. Muito mais que um pintor, Todorov conclui, Goya – que foi comparado por Ortega y Gasset a um operário “inculto e de mente lenta” – foi um pensador profundo de seu tempo, comparável a Goethe e Dostoievski na observação lúcida da grandeza e da miséria da condição humana.  

Concluo o post de hoje com algo que escrevi outro dia a respeito da morte do cinegrafista Santiago – o que parece não ter nada a ver, mas tem tudo a ver, com Goya e Todorov:

Numa sociedade crescentemente dividida entre nós e eles, com o tempo nós passamos a acreditar que estamos sempre certos, mesmo quando estamos errados. Aprendemos que nós podemos mentir, roubar, caluniar, corromper e mesmo assim estaremos certos, porque nós somos nós. Já eles estarão sempre errados, mesmo quando estiverem certos, porque afinal de contas eles são eles. Esta semana aprendemos que, além de mentir, roubar, caluniar e corromper, nós também podemos matar, porque mesmo quando matarmos a culpa será deles, e eles também já mataram. Um dia acordaremos e perceberemos que nós nos tornamos piores que eles.

 

 

5 Comentários para “Goya e o perigo de justificar a violência com causas nobres”

  1. 1
    Luís Carlos:

    Excelente reflexão. A conclusão do post é fantástica.

  2. 2
    Fabiana:

    Luciano, admiro seu trabalho, principalmente no tocante à “arte” ou aquilo (literalmente) que vem sendo tratado como tal. Também discordo de alguns aspectos de seu pensamento (acontece). Muito acertado seu ponto de vista em relação à conclusão do post. Infelizmente vivemos numa época amalucada que não se percebe transitória. Talvez seja esta ideia de que atingimos um ápice (morte da história, da arte) que traga a idiota sensação de que os avanços tecnológicos e medicinais chegaram a determinado ponto que somos os melhores seres humanos do mundo de todas as épocas. Mesmo que tais avanços não tenham se dado para todos as pessoas. Pelo contrário, é para um grupo seletíssimo. Vejo com pesar estarmos na iminência de brutas e brutalizantes transformações. A vida têm valido quase nada. E dá-lhe funk, Carnaval e Copa. Bora postar no face a estupidez e a debilidade da nossa sociedade…
    Continue com seu Ótimo trabalho. Apesar de receber poucos comentários em sua coluna você tem ao menos uma leitora assídua. Abraço.

  3. 3
    Cris:

    Bacana!

  4. 4
    artista plástico Quim Alcantara:

    A conclusão do artigo é fantástica!
    Como a Fabiana, também concordo com muito do que você fala, principalmente em relação à arte – e raramente discordo.
    Por sinal, sempre cito e indico A Grande Feira como um dos melhores livros de arte que conheço. E ainda reforço que os melhores livros de arte não poderiam ter sido escritos por críticos.
    Aproveitando, deixo aqui um pedido. Por favor escreva mais sobre artes visuais. Principalmente se for para redigir um novo livro!
    Obrigado, abs, Quim Alcantara

  5. 5
    Pedro Meira:

    Muito bom artigo. Excelente a reflexão sobre estes tristes tempos em que vivemos.