Fotobiografia resume a trajetória de Antonio Callado, autor de ‘Quarup’

dom, 27/10/13
por Luciano Trigo |
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Tenho a impressão de que Antonio Callado é hoje pouco lido e discutido, o que é uma pena: trata-se de um escritor que consegue harmonizar como poucos a boa ficção com as questões mais candentes de seu tempo, de tal forma que seus romances podem hoje ser lidos também como valiosos documentos sociológicos para se entender a sociedade e a política do Brasil dos anos 50, 60 e 70. Narrativas como as de “Quarup” (1967), “Bar Don Juan” (1971) e “Reflexos do Baile” (1976) são mais reveladoras sobre a realidade daquele período que muitos ensaios acadêmicos.

Callado morreu em 1997, aos 80 anos, deixando uma impressão profunda em todos aqueles que o conheceram, por sua britânica e discreta elegância e pela integridade moral e intelectual que manteve mesmo nos momentos mais confusos e conturbados. Basta lembrar que ele foi preso em duas ocasiões e teve seus direitos políticos cassados por dez anos pela ditadura militar. Por tudo isso, a publicação de “Antonio Callado – Fotobiografia” (Companhia Editora de Pernambuco, 468 pgs. R$ 80), organizado pela professora Ana Arruda Callado, viúva do escritor, merece ser celebrada quase como um ato de resistência, diante da nossa triste vocação para esquecer o passado e num momento em que a literatura brasileira parece estranhamente alienada da realidade social e política que nos cerca.

Com mais de 450 páginas, a fotobiografia traz detalhes pouco conhecidos sobre a trajetória de Callado, reunindo depoimentos (de João Ubaldo Ribeiro e Carlos Heitor Cony, entre outros) e centenas de fotografias, abrangendo as etapas mais marcantes de sua vida. Jornalista, Antonio Callado trabalhou na BBC, em Londres, durante a Segunda Guerra e, após a libertação de Paris, na Radiodifusão Francesa, até 1947. De volta ao Brasil, trabalhou no “Correio da Manhã” e no “Jornal do Brasil”. Depois de participar da cobertura da Guerra do Vietnã, foi professor nas universidades de Cambridge e Columbia.

Em 1975, decidiu trocar a rotina das redações para se dedicar profissionalmente à literatura.Além de nove romances, Callado escreveu seis livros-reportagem (um deles sobre as Ligas Camponesas lideradas por Francisco Julião, no começo dos anos 60, e outro, sobre o episódio do desaparecimento do Coronel Fawcett, publicado postumamente), sete peças de teatro (uma delas, “Pedro Mico”, foi dirigida por Paulo Francis e teve cenários assinados por Oscar Niemeyer), um livro de contos e um ensaio biográfico (sobre Portinari), além de uma letra de samba. Em 1994, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.

“Com a fotobiografia, sei que meu compromisso com a memória dele está honrado. Publicado o livro, eu me divorcio definitivamente de Antonio Callado. Que outros cuidem dele a partir de agora”, afirmou Ana Arruda no dia do lançamento, na semana passada, na ABL. A melhor maneira de cuidar de Callado é continuar lendo e aprendendo com seus livros. Que nunca falte quem faça isso.

Em ‘Meu coração de pedra-pomes’, a literatura desbocada e sem filtros de Juliana Frank

dom, 20/10/13
por Luciano Trigo |
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Não se deve buscar muito sentido ou profundidade em “Meu coração de pedra-pomes” (Companhia das Letras, 112 pgs. R$ 31), novo romance de Juliana Frank, paulista radicada no Rio de Janeiro “por indolência e lascívia”, entre outros motivos. A narradora-protagonista, Lawanda, encarregada de limpeza em um hospital, derrama em fluxo contínuo suas fantasias e pensamentos, que passeiam erraticamente entre o namorado José Junior, a chefe insuportável Lucrécia, a coleção de besouros e as borboletas que gosta de costurar em suas calcinhas, numa espécie de macumba pessoal.

É certo que Lawanda parece mais um veículo para a imaginação desbocada e sem filtros da autora que um personagem com vida própria. Mas isso não chega a ser um problema, já que Juliana Frank não está preocupada em respeitar qualquer convenção narrativa, como esclarece nesta entrevista. Namorando com elementos surreais e eróticos e bebendo em fontes variadas, de Nelson Rodrigues aos beats, ela aposta numa transgressão light, descomprometida e bem humorada, que cativa seus potenciais leitores justamente pela desambição. Essas características já estavam presentes, aliás, em seu romance de estreia, “Quenga de plástico”, as memórias imaginárias de uma “filosoquenga”, uma atriz pornô aposentada.

Mas não deixa de ser curioso – e revelador do momento atual da literatura brasileira – que Juliana e outros autores de sua geração, de vocação supostamente marginal e transgressora, sejam hoje publicados por editoras mainstream, como a Companhia das Letras, e frequentem festas literárias e páginas dos cadernos culturais da grande imprensa. Juliana, aliás, foi elogiada por um autor radicalmente marginal nas suas origens, Reinaldo Morais (cujo romance “Pornopopeia” ela está roteirizando para o cinema). Sinal de que as margens da literatura foram apropriadas pelo mercado editorial, de que não existem mais brechas? E isso é bom ou ruim? Está aí um bom tema para reflexão.

Leia aqui um trecho de “Meu coração de pedra-pomes”.

- Fale sobre o diálogo com membros de um júri imaginário na abertura do livro. De que maneira esse diálogo reflete sua opinião sobre a crítica?

JULIANA FRANK: O julgamento é um texto em que uso termos do [Wilhelm] Reich para acusar a autora, no caso eu, de ser louca. Quanto à crítica: se você não escreve seu livro desta maneira: “Nasci em …, no ano…, minha mãe morava…, nesta época eu…”!, enfim, se você não usa “e de repente” ou conta histórias mais imaginadas que autobiográficas, eles costumam dizer por aí que é literatura de demente.

- Lawanda, a protagonista de “Meu coração de pedra-pomes”, mostra um grau de articulação inesperada para uma faxineira de hospital. Fale sobre o processo de criação dessa personagem. De que maneira a voz de Lawanda se confunde com a sua?

JULIANA: Eu não saio por aí dizendo ou fazendo as coisas que ela diz e faz. Se eu pudesse eliminar meu superego, seria cada uma das minhas personagens: desceria a rua no caminhão de lixo, gritando, ou simplesmente costuraria borboletas em calcinhas. Gostaria muito que o mundo achasse natural.

- Que comparação você faria entre “Quenga de Plástico” e “Meu coração de Pedra-Pomes”? Você sente que amadureceu como escritora?

JULIANA: A personagem é totalmente diferente, e ela desenha a história. Eu continuo usando minha fórmula antiga de escrever o que me vem à mente, sem planejar. Como as ideias não formam fila na minha caixa-crânio, vou mudando de assunto muito rápido. Eu escrevo como se estivesse me lendo, me divertindo. Isso nunca mudou.

 - Sua literatura costuma ser classificada como erótica, mas você não parece escrever para despertar o desejo do leitor. Concorda?

JULIANA: Não fico muito ligada em “surtir emoções”. Cada pessoa me relata uma experiência. Planejar a reação do leitor seria uma atitude leviana.

- Ainda sobre o erotismo, você participou da coletânea de contos 50 Versões de Amor e Prazer, que me fez pensar em “50 tons de cinza”. Você leu esse livro? O que acha dessa moda de best-sellers eróticos?

JULIANA: Li. Acho um romance cor-de-rosa como qualquer outro de banca de jornal. É um livro comum, banal, com histórias sentimentaloides e trechos bastante previsíveis. Inclui, claro, alguma porradaria. De mal a pior, não deixa de ser um livro, ele exercita a mente ao ser lido, portanto, que bom que estão lendo! Faz sucesso como receita de bolo faz sucesso. A escritora criou uma espécie de príncipe encantado sadomasoquista. O cara é todo problemático, milionário, tarado e viciado na boceta da mina protagonista. Taí. Muitas mulheres queriam dominar a situação romântica sem abdicar do chororô amoroso puro, da conversa babalenta. Por isso o livro virou a realização do imaginário feminino atual. Fazer? E é normal que as pessoas sintam tesão sugestionadas por cenas descritivas de sacanagem e amor. Todos querem o amor, não é mesmo? Se vier acompanhado de bife a rolê e um chicote, então…

- Você se sente parte de uma geração de escritores? Quais seriam as características comuns dessa geração?

JULIANA: Não sei te responder isso exatamente. Cada escritor tem o seu papel que é, basicamente, sentar e escrever. Tenho amigos escritores, mas não sei se somos parte da mesma patota!

 - Que escritores a influenciaram? Nelson Rodrigues, Hilda Hilst, os beats? Com que autores você dialoga?

JULIANA: Eu leio demais e misturo tudo. Ultimamente tô lendo os russos e umas novelas pornográficas. Mês passado eu só lia os góticos. Tem semanas que passo olhando para a parede e nego até um jornal. Leio muito Nelson, sim. Hilda, sempre. Beats, claro. Filosofia e tragédia grega também.

- O que você achou das polêmicas envolvendo Paulo Coelho e Paulo Lins na Feira de Frankfurt?

JULIANA: Estapafúrdio tudo.

 - Como você virou escritora? Fale sobre sua formação, os encontros e episódios determinantes da sua carreira. E por que, sendo paulista, decidiu se radicar no Rio?

JULIANA: Eu sempre escrevi porque sempre fui rouca e tinha que fazer repouso vocal. Então passava às tardes escrevendo, já que não podia falar. Depois que eu melhorei, comecei a falar demais. Minha mãe me pedia pra escrever ou contar ônibus na janela, ou areia na praia, qualquer coisa mais a paz. Moro no Rio porque me sinto bem por aqui, porque trabalho nas produtoras aqui. E porque aqui tenho a indolência e a lascívia: Dodô e Lalá, minhas companheiras.

- Fale sobre sua experiência como roteirista e como dramaturga.

JULIANA: Trabalho há oito anos como roteirista. Já fiz programa de TV, cinema, animação. Agora escrevi uma peça “Por isso Fui Embora”, em parceria com a Renata Corrêa. Foi um surto criativo de 15 dias. Achei maravilhoso e quero escrever mais! Agora estou entrando no segundo tratamento de um longa, tenho uma série para TV e outra para internet. Quando lançar tudo, eu te conto mais.

Em ‘A civilização do espetáculo’, Vargas Llosa analisa a decadência da cultura

dom, 13/10/13
por Luciano Trigo |
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“A cultura, no sentido tradicionalmente dado a esse vocábulo, está prestes a desaparecer em nossos dias. E talvez já tenha desaparecido, discretamente esvaziada de conteúdo.” A pouca repercussão de “A civilização do espetáculo – Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura” (Objetiva, 208 pgs. R$ 34,90) dá razão ao diagnóstico feito pelo peruano Mario Vargas Llosa: em um contexto no qual a cultura se aproxima cada vez mais do entretenimento e se afasta da reflexão, qualquer empreendimento que exija algum esforço intelectual maior tende a ser rejeitado pelo leitor/consumidor em busca de prazeres fáceis e instantâneos, “que os imunize contra a preocupação e a responsabilidade”. Este é, no entanto (ou por isso mesmo), um livro necessário, ainda que o Prêmio Nobel de Literatura de 2010 exagere em seu pessimismo e pese a mão nas suas críticas algo ressentidas a determinados pensadores, como Jean Baudrillard e Michel Foucault.

Vargas Llosa começa recapitulando obras de cinco autores que, ao longo das últimas décadas, se detiveram no exame do mesmo tema, começando pelo T.S.Eliot. Em seu clássico “Notas sobre a definição de cultura”, de 1948, o poeta anglo-americano lamentou a decadência da cultura ocidental, defendendo a alta cultura das elites e rejeitando a ideia de que esta deve ser democratizada. Para Eliot, a divisão entre classes sociais e as respectivas culturas de classe é que mantém coeso e faz prosperar o conjunto da sociedade. Ele vai além: defende o legado do cristianismo, berço do pensamento europeu, e afirma que a religião é necessária, por proporcionar o arcabouço para a cultura e proteger a massa da humanidade do tédio e do desespero. Desnecessário dizer, qualquer autor que defendesse hoje essa visão elitista da cultura seria apedrejado.

Já em 1971 George Steiner dedicou um livro inteiro a refutar as teses de Eliot: em “O castelo do barba Azul – Algumas notas para a redefinição de cultura”, Steiner critica o autor de “The waste land” por ter publicado, apenas três anos após o fim da Segunda Guerra, um tratado sobre a cultura que ignorou completamente o Holocausto e seus efeitos. Depois de uma densa reflexão sobre as origens secretas da violência e a relação entre a barbárie e a modernidade na Europa (“a cultura europeia não só anuncia também deseja que venha esse estouro sanguinário e purificador que serão as revoluções e as duas guerras mundiais”), Steiner se aproxima contudo do pessimismo eliotiano ao lamentar a derrocada da tradição e a captura da cultura, já naquele momento, pelo meio acadêmico: “Uma parte importante da poesia, do pensamento religioso e da arte já desapareceu da proximidade pessoal para passar à custódia dos especialistas” – “inacessíveis em seus jargões herméticos e sua erudição asfixiante, quando não em teorias delirantes”, completa o escritor peruano, com toda razão.

Vargas Llosa examina em seguida a obra “A sociedade do espetáculo”, de Guy Debord (1967). Atualizando conceitos marxistas, Debord afirma que na nossa sociedade a mercadoria atinge tal importância na vida das pessoas que se sobrepõe a qualquer outro interesse ou preocupação de ordem cultural, intelectual ou política: o indivíduo se entrega assim, e obsessivamente, ao consumo sistemático de objetos “muitas vezes inúteis ou supérfluos, que as modas e a publicidade lhe vão impondo, esvaziando sua vida interior de preocupações sociais, espirituais ou simplesmente humanas, isolando e destruindo a consciência que ele tenha dos outros, de sua classe e de si mesmo”. Vargas Llosa concorda com o diagnóstico mas discorda do prognóstico, já que Debord pregava a ação revolucionária contra esse estado de coisas, enquanto o peruano deixou há muito tempo de acreditar nessa saída.

Já em “A cultura-mundo – resposta a uma sociedade desorientada” (2009), Gilles Lipovetsky analisa a questão pelo prisma da globalização, que apaga fronteiras e faz com que a cultura deixe de ser elitista, erudita e excludente para se transformar numa genuína cultura de massas, que, em oposição ao espírito das vanguardas, tem como meta oferecer entretenimento á maior quantidade possível de consumidores de todas as classes: “Sua intenção é divertir e dar prazer, possibilitar evasão fácil e acessível para todos, sem necessidade de formação alguma, sem referentes culturais concretos.” Para Lipovetsky, essa nova cultura de massas se caracteriza pelo predomínio do som e da imagem sobre a palavra escrita, ou seja, pela vitória da tela sobre o texto.

Finalmente, em 2010, o sociólogo Frédéric Martel publicou o ambicioso estudo “Mainstream – A guerra global das mídias e das culturas” [leia aqui uma entrevista de Martel a este blog], que fundamenta com uma exaustiva pesquisa de campo algumas das ideias de Lipovetsky. Vargas Llosa chama a atenção para o fato de que o volumoso livro de Martel praticamente não fala de livros (com exceção de “O código Da Vinci” e outras bobagens), mas apenas das indústrias criativas ligadas ao cinema, à televisão e à música de massas. Escreve Vargas Llosa, com base nas análises de Martel: “A imensa maioria do gênero humano não pratica, não consome nem produz hoje outra forma de cultura que não seja aquela que, antes, era considerada pelos setores cultos, de maneira depreciativa, mero passatempo popular, sem parentesco algum com as atividades intelectuais, artísticas e literárias que constituem a cultura. Esta já morreu, embora sobreviva em pequenos nichos sociais, sem influência alguma sobre o mainstream.”

Vargas Llosa conclui sua introdução com um parágrafo que considero iluminado, por resumir aquele que é talvez o principal traço distintivo da cultura hoje: a ligação visceral entre o julgamento de valor e o sucesso comercial: “A distinção entre preço e valor se apagou, ambos agora são um só, tendo o primeiro absorvido e anulado o segundo. É bom o que tem sucesso e é vendido; mau o que fracassa e não conquista o público. O único valor é o comercial. O desaparecimento da velha cultura implicou o desparecimento do velho conceito de valor. O único valor existente é agora o fixado pelo mercado.” O efeito disso é um estado de permanente confusão e oportunismo, no qual os maiores patifes e  embusteiros são celebrados como grandes artistas, e o descaramento e o marketing substituem o talento. Aliás já não é possível, afirma o autor, discernir com certa objetividade o que é ter ou não ter talento, “o que é belo e o que é feio, qual obra representa algo novo e duradouro e qual não passa de fogo de palha”.

Neste cenário sombrio, segundo Vargas Llosa, os intelectuais que alcançam alguma visibilidade na mídia são aqueles que estão mais preocupados com a autopromoção e o exibicionismo do que com a defesa de algum princípio ou valor: afinal de contas, na civilização do espetáculo, o intelectual só interessa quando encarna o papel de bufão. Reflexão mais que oportuna para o momento que vivemos hoje no Brasil.

Leia aqui um trecho de “A civilização do espetáculo”.

Participação brasileira na Feira de Frankfurt gera polêmicas

ter, 08/10/13
por Luciano Trigo |
categoria Literatura

Às vésperas da abertura da Feira do Livro de Frankfurt, que este ano homenageia o Brasil, duas polêmicas cercam a seleção dos 70 autores que integram a nossa comitiva oficial. Primeiro, Paulo Lins, já na Alemanha, deu entrevista classificando a lista de racista: “Eu sou o único autor negro dessa lista. Em que caso isso não é racismo?” Por sua vez, Paulo Coelho cancelou ruidosamente a sua participação, em protesto contra os critérios da composição da comitiva, declarando: “Dos 70 convidados, só conheço 20, nunca ouvi falar dos outros 50. Duvido que todos sejam escritores profissionais. São, presumivelmente, amigos dos amigos dos amigos.”

Os dois Paulos não deixam de ter razão, mas é de se perguntar por que esperaram tanto tempo para manifestar sua insatisfação: a lista dos convidados foi divulgada pelo Ministério da Cultura em março, mais de seis meses atrás. Paulo Coelho poderia ter protestado e recusado o convite naquele momento, e não se ouviu na época qualquer queixa de Paulo Lins sobre o racismo da lista – que, em todo caso, não o incomodou a ponto de impedi-lo de embarcar para Frankfurt para participar da festa.

Na década de 90, como jornalista, participei algumas vezes da cobertura da Feira de Frankfurt e nunca entendi direito por que a imprensa daqui dá tanta atenção a um evento de negócios, basicamente fechado para o público, ao qual as editoras brasileiras compareciam e continuam comparecendo, na imensa maioria dos casos, na qualidade de compradoras, e não de vendedoras de títulos. Iniciativas de difusão da literatura e da cultura brasileiras no exterior são necessárias e louváveis, mas qual será o retorno real dos R$ 18,9 milhões que estão sendo gastos nessa promoção internacional, quando no Brasil ainda se lê tão pouco e a Biblioteca Nacional vive situação tão precária?

Paulo Coelho e Paulo Lins criticaram a lista dos convidados em função das ausências (de autores profissionais jovens e de autores negros, respectivamente), mas para mim, particularmente, são mais preocupantes as presenças, ou melhor, a recorrência dos mesmos e previsíveis nomes em todos os eventos ligados à literatura, no Brasil e no exterior. Com pequenas variações, criou-se uma espécie de clube de escritores oficiais (ainda que alguns posem de marginais ou alternativos), incensados pela mídia, que passam boa parte do tempo viajando e expondo sua entediada genialidade em debates enfadonhos, inofensivos e ultralimitados em seu alcance.

Pois a dura realidade é que, com exceção do próprio Paulo Coelho, de Paulo Lins em seu primeiro romance e de mais três ou quatro nomes, a lista é composta de autores pouquíssimo lidos em seu próprio país, que vendem tiragens ridiculamente pequenas e não conseguem viver da literatura. Sem entrar no mérito da qualidade de suas obras (eu mesmo sou leitor de várias), se eles se comunicam tão pouco com seus conterrâneos, se a difusão das suas obras no nosso mercado interno é microscópica e confidencial em termos de leitura e vendas apesar do apoio da mídia, que proveito real se pode tirar do contato com potenciais compradores alemães? O Brasil precisa se tornar um país de leitores, antes de pretender exportar a imagem de um país de escritores.

PS: Li há pouco que cerca de 20 escritores que integram a comitiva oficial brasileira assinaram na Alemanha um manifesto de apoio à greve dos professores no Rio de Janeiro. Não me lembro de ter visto mobilização semelhante aqui no Brasil, onde a greve acontece. Soa a factoide feito para alemão ver.

Biografia proibida da bilionária Lily Safra esquenta o debate sobre a censura

dom, 06/10/13
por Luciano Trigo |
categoria Literatura

Desde o dia 12 de julho, por liminar de uma juíza da 7ª Vara Cível de Curitiba, está proibido vender o livro ao lado em território brasileiro, mesmo em sua versão digital. Trata-se da biografia não-autorizada da bilionária gaúcha Lily Safra, née Watkins, viúva do banqueiro de origem libanesa Edmond Safra, morto em circunstâncias misteriosas durante um incêndio em sua cobertura em Monte Carlo, em 1999 – meses depois de concluir a venda por US$ 10,3 bilhões do Republic National Bank para o HSBC. O livro foi escrito pela jornalista canadense Isabel Vincent, hoje no “New York Post”, que morou vários anos no Brasil e, superando muitos obstáculos, fez uma pesquisa minuciosa sobre a fascinante trajetória de Lily, hoje com 79 anos, uma lenda viva da alta sociedade.

A liminar determina que a editora americana Harper Collins terá que pagar R$ 100 por exemplar vendido no país, mas aparentemente a Amazon não foi informada, ou ignorou solenemente a decisão, pois qualquer leitor pode baixar “Gilded Lily” no Kindle por US$ 9,96, e é difícil imaginar que exista um mecanismo eficaz de impedir sua circulação no formato eletrônico. Como os livros se tornaram intangíveis, basta que haja demanda para os leitores interessados encontrarem maneiras de acessá-los digitalmente. E nada melhor para criar demanda do que proibir um livro de circular: censura é uma palavra mágica e traiçoeira, que tem o poder de dar visibilidade àquilo que pretende ocultar.

Não acho que biografias não-autorizadas sejam uma questão tão simples quanto parece, e não é sem razão que o desafio de garantir o delicado equilíbrio entre o direito à privacidade e o direito à liberdade de expressão e à informação é enfrentado de diferentes maneiras nos países ditos avançados, com a balança pendendo ora para um lado, ora para outro. No Brasil, o trauma da ditadura nos leva instintivamente a repudiar qualquer ação que lembre remotamente a censura, mas o fato é que vidas podem ser destruídas e danos irreparáveis podem ser causados por obras criminosas, irresponsáveis ou mal intencionadas, e depois que o estrago está feito não há indenização monetária que resolva. Por incrível que isso possa parecer hoje em dia, há coisas que não têm preço.

Quando a vida de Lily Safra foi romanceada pela escritora Lady Colin Campbell no livro “Empress Bianca”, a Justiça britânica, provocada por advogados da família, determinou que o livro saísse de circulação, e a editora Arcadia tomou a iniciativa de destruir o estoque não-vendido: na Inglaterra até a descrição do interior de um apartamento pode motivar um processo se não tiver sido autorizada pelo morador. No Brasil, nunca tivemos o mesmo zelo pela privacidade, até porque, cada vez mais, a exposição da vida íntima pelos ricos e famosos se torna a regra: chegará talvez o dia em que o país será um grande reality show, numa versão tropical-acanalhada da Sociedade do Espetáculo anunciada por Guy Débord 40 anos atrás. Paradoxalmente, o projeto de lei que tramita no Congresso Nacional com o objetivo de aumentar a liberdade dos autores e editoras enfrenta a oposição até de artistas insuspeitos, por terem sido censurados no passado, como Chico Buarque e Caetano Veloso: ambos integram o grupo Procure Saber, que defende a exigência de autorização prévia de biografados ou seus herdeiros para a comercialização de qualquer biografia. O Brasil é mesmo muito peculiar.

No livro em questão, Lily Safra é apresentada basicamente como uma alpinista social, educada desde a infância para ascender por meio de casamentos com homens ricos: Isabel Vincent pinta o retrato de uma mulher bonita, ambiciosa e determinada, com o temperamento e as qualidades adequadas para o papel principal de um roteiro sobre como agarrar um milionário. Seus quatro casamentos  são descritos por esse prisma pouco lisonjeiro: com o magnata argentino Mario Cohen, aos 17 anos, com quem teve três filhos antes de ele morrer num acidente de carro; com o empresário Alfredo Monteverde, dono da rede de lojas Ponto Frio, que cometeu suicídio em 1969, deixando uma herança de US$ 300 milhões; com o executivo inglês de origem marroquina Samuel Bendahan, casamento anulado nos tribunais; e, finalmente, com Edmond Safra, já aos 42 anos, em 1976, superando a oposição dos irmãos do banqueiro.

A autora é rigorosa, evita o sensacionalismo e procura fundamentar cada informação em documentos e depoimentos de quem conviveu com sua biografada, mas é natural que “Gilded Lily” tenha sido repudiado pelos familiares da biografada. O pedido de liminar não partiu da própria Lily, que não se manifestou sobre o assunto, mas do advogado Leonardo Watkins, sobrinho de Lily falecido em 2006, sob a alegação de que os três primeiros capítulos e o epílogo do livro sugerem que Artigas Watkins, seu pai, irmão de Lily, esteve envolvido na morte de Alfredo Monteverde. Segundo o texto da sentença: “A suposição de que Artigas possa ter contribuído para a morte do cunhado em contrariedade à investigação policial efetivada é grave, mormente porque sequer há demonstração de que se trata de material elaborado após detida pesquisa ou mesmo autorização do biografado”; (…) “A situação, não obstante o falecimento de Artigas, atinge seu filho e atinge a honra subjetiva deste”; (…) “[a liberdade de expressão] não pode afetar o direito à honra e à imagem”.