Reunindo poemas escritos entre 2007 e 2013, “Dever”, lançado pela Companhia das Letras, coroa 50 anos de poesia de Armando Freitas Filho – inciada com a publicação de “Palavra”, em 1963. A primeira parte do livro, “Suíte”, é uma espécie de continuação de seu livro anterior, “Lar”: a memória – afetiva ou familiar, resgatada e reinventada – é aqui a protagonista: Armando busca no retrovisor as marcas de casas, roupas, móveis e objetos do cotidiano, fazendo desses resíduos do passado fundamentos para uma poesia introspectiva, que tem algo de balanço e inventário. Na segunda parte do livro, “Anexo”, o autor se volta para o presente, mas sem abrir mão do registro transfigurador capaz de transformar o noticiário em poesia. Na parte final, “Numeral”, ele dialoga com poetas mais jovens, com poemas em que prevalecem reflexões sobre a vida amorosa. Nesta entrevista, Armando Freitas Filho fala sobre o seu processo de criação, seu diálogo com colegas de diferentes gerações e afirma que envelhecer é arrasador.
- Por que “Dever”? O título sugere uma aproximação da sua poesia com a reflexão ética sobre a vida, é por aí?
ARMANDO FREITAS FILHO: Não tive esse pensamento grandioso. Devia ter tido. O resultado seria melhor, sem nenhuma dúvida. O que pensei foi o que ficou expresso neste “Numeral”:
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Entreviver
imprensado, entre
dever e dever.
Entre o substantivo e o verbo
sem distinguir, na passagem
qual é um, qual é o outro
quando é vento ou evento
em constante interrogação
entrevistando-me
se não é devir o que devo
escrever – transitivo, direto
e ficar, sem dúvida, só e fugaz
na preposição simples, essencial
no perigo do pensamento impossível.
9 III 2009
E na epígrafe de Clarice Lispector: “O horrível dever é ir até o fim.”
- Quando lançou “Lar”, em 2009, você declarou que aquele era seu livro mais importante. Que comparação faz entre os poemas de “Dever” e os de “Lar”?
ARMANDO: “Lar” foi o começo de uma investigação sobre o que a memória poderia me render; não é um livro de memórias, mas da memória. Ocorreu que puxar por ela teve um rendimento maior do que eu esperava, quantitativamente falando. Pensei até em fazer um Lar, em dois volumes. Mas não consegui, na ocasião, transformar a quantidade em qualidade. Desisti, então. Mas de repente recuperei a capacidade. A primeira parte de “Dever”, por isso mesmo, chamada de “Suíte”, é composta por poemas que não se aprontaram, a tempo de entrar em “Lar”. Nem todos se aprontaram, falando mais exatamente. Posso dizer, portanto, que caminho para fazer uma trilogia involuntária. Vamos ver se consigo.
- O que o Armando de hoje diria ao Armando de 23 anos que publicava seu primeiro livro? E o que você acha que aquele Armando responderia a você?
ARMANDO: Tenho muita ternura por aquele Armando inicial. Penso que ele me diria que estava surpreso por eu ter crescido tanto.
- Aos 73 anos, como você conjuga o verbo “envelhecer”? Que impacto a passagem dos anos está tendo na sua poesia e, também, na sua vida?
ARMANDO: Envelhecer é arrasador: o túnel não tem luz no final e você já o enxerga, sem nenhuma metáfora. Na poesia que faço, não a sinto alquebrada; mas pode ser uma ilusão.
- Você já se referiu à poesia usando a palavra “fé”. Que fé seria essa, e qual o laço, se existe, entre a sua poesia e a religiosidade?
ARMANDO: Não existe laço premeditado. Deus é fugidio para mim: é part time. Como muita gente, o procuro e a seus santos quando a coisa aperta. Há em Dever um poema que retrata essa relação ambígua:
COMUNHÃO
Onde Deus começa é discernível.
Na cruz, na força parada das imagens
nos nichos das igrejas, preso, no ferro
na parede, na ferocidade da fé.
O corpo seminu, torturado e imóvel
no marfim da morte, ferido
pelo esplendor de pregos e espinhos
sob o cerco de orações e lágrimas
verte suor e sangue cenográficos
de esmalte e rubi, sob o céu pintado.
Rangido de reza, mãos postas
unhas sujas no mármore do altar
onde Ele acaba, indistinto e puro.
- “Componho/ para frente, onde o leitor se forma/ no espaço e lê, e leva o que possuiu”. Neste e em outros poemas você reflete sobre o próprio ato da criação poética, numa espécie de meta-poesia. Isso nasce de uma necessidade de entender o processo criativo? Seria também um sinal de que a poesia contemporânea se volta cada vez mais para si própria?
ARMANDO: No meu caso, sim. Me entendo no processo criativo e a recíproca é verdadeira; e aí, me estendo. “Numeral” meu poema-enguia, como disse uma vez Sebastião Uchoa Leite, não a respeito dessa composição que não tem fim, mas em geral sobre a minha poesia, é um exemplo vivo disso. Creio que não só a poesia contemporânea tem esse viés. Toda a poesia moderna, mais ou menos, apresenta essa inclinação. Não acho que seja um sinal relevante na poesia contemporânea, muito pelo contrário; o que vejo na poesia atual é a predominância de uma voz coloquial que a leva para fora de si, com um olho na rua. A minha geração estava muito mais presa ao metapoema, de variada extração, do que a de agora. No que me concerne, procuro antepor a essa tendência, uma poesia “no olho da rua”, por assim dizer, como fiz na segunda parte de Dever, que se chama “Anexo”.
- Com 50 anos de poesia, olhando para trás você enxerga uma evolução linear na sua obra ou um caminho ziguezagueante? Em que sentidos a sua poesia se transformou, ao longo de cinco décadas?
ARMANDO: Creio que o caminho percorrido não é ziguezagueante (bem que poderia ser). Ele é linear, mas sobressaltado por alguns desvios e recapitulações que procuram novos pontos de vista sobre o mesmo motivo, que são mais problemas do que temas. Essas variações, dentro de um mesmo canal, ajudaram a manter tanto mudança quanto coesão sem perder o fio, como está dito na orelha de Dever. O poema ganhou mais musculatura e alcance, visível na mancha gráfica e no seu respectivo conteúdo, que incorporou um leque de interesses maior.
- Eu percebo no livro um impulso de revisão de sua história familiar, ainda que nem sempre explícita, e lembro que a morte do seu pai, anos atrás, teve um impacto grande sobre você.
ARMANDO: Meu pai foi meu esteio, e continua sendo. A lembrança dele me fortifica muitíssimo. A sua ajuda era toda feita de grandes e pequenas ações, sem maiores declarações. Minha mãe mais distante na idade adulta foi de uma presença decisiva na minha formação: sua aspereza e ironia, como que temperava sua relação comigo. Fui mimado a seco, digamos assim.
- Por que não existem mais poetas da importância de Drummond, Cabral e Bandeira? Você considera que a poesia brasileira perdeu relevância?
ARMANDO: Se eu achasse como você, não escreveria uma linha ou escreveria broxando. É cedo para esse diagnóstico severo. Amo os meus 3 mosqueteiros e mais Gullar D’Artagnan, prova viva que vale a pena tentar. Carlos Drummond disse que “o meu ódio é o melhor de mim” e já que amor e ódio, para mim, estão misturados na mesma face da moeda, meu amor por ele é de apache, sujeito a flechas de variado veneno; a ele e aos dois outros citados. Por que você põe, todos põem, os poetas para competir? Volta e meia, aparece alguém dizendo: o maior poeta vivo é fulano de tal; com os prosadores não acontece isto. A gente precisa de todos: Carlos Drummond comeu Bandeira e João Cabral comeu Drummond. Tem sentido esse reinado amalucado, de fantasia?! A estante da posteridade é maior do que você pensa, a meu ver, ou tenho esperança.
- Com que poetas em atividade você dialoga?
ARMANDO: Infelizmente, minha geração está morrendo precocemente. Alguns dos meus mais íntimos amigos se foram: Tite de Lemos, Sebastião Uchoa Leite, Ana Cristina Cesar, novata, mas talento não tem idade, José Guilherme Merquior, Rubens Gerchman. Juntei um crítico e um pintor porque não vivo só de poesia. Mas em compensação, Heloisa Buarque, Maria Rita Kehl, Luiz Costa Lima estão firmes, me ensinando como sempre. Também não estão mais aqui, alguns companheiros de viagem: Cacaso, Leminski, Waly Salomão, Guilherme Mandaro. Mario Chamie. Com os mais moços: Eucanaã Ferraz, Antonio Cícero, Mário Alex Rosa, Alice Sant’Anna, Laura Liuzzi, Sylvio Fraga Neto, Sergio Alcides, Eduardo Coelho, Mariana Quadros (os três últimos críticos de primeira água, sendo que Sérgio também é poeta em franca ascensão), converso sempre muito proximamente e com grande proveito.
- Ana Cristina César está para ser reeditada. A poesia dela envelheceu bem? O que ela ainda tem a dizer para os leitores de hoje?
ARMANDO: Sou o coordenador editorial da Obra poética dela que a Companhia das Letras vai lançar em novembro, além de ser curador há 30 anos de toda sua obra. Ana Cristina não envelheceu nada, está nova em folha, não tem um fio de cabelo branco posso assegurar. Sei que ela tem muito a dizer, porque uma geração e meia se passou e a procura por sua poesia insinuante, que combina tão bem “ficção e confissão”, continua crescente, sempre provocadora, exigindo releituras. Nunca vi uma poeta morta tão viva!
Leia aqui um trecho de “Dever”.
LIVROS DE ARMANDO FREITAS FILHO
1963 Palavra
1966 Dual
1970 Marca registrada
1975 De corpo presente
1979 À mão livre
1982 Longa vida
1985 3×4
1988 De cor
1991 Cabeça de homem
1994 Números anônimos
1997 Duplo cego
2000 Fio terra
2003 Máquina de escrever — Poesia reunida e revista
2006 Raro mar
2009 Lar
2013 Dever