Festival do Rio mostra diversidade do cinema nacional

dom, 29/09/13
por Luciano Trigo |
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Como todos os anos, a mostra Première Brasil do Festival do Rio apresenta uma prévia da produção cinematográfica nacional que chegará às salas de cinema nos próximos meses. Entre os longas-metragens – distribuídos nas categorias Competitiva, Retratos, Hors Concours e Novos Rumos – os oito filmes selecionados abaixo refletem a diversidade do cinema nacional, nas propostas estéticas e nos públicos a que se destinam.

A ESTRADA 47, de Vicente Ferraz

Sinopse: Itália, 1944. Durante a II Guerra Mundial, uma esquadra de caçadores de minas da FEB (Força Expedicionária Brasileira) sofre um ataque de pânico. Desesperados, com frio e fome, os pracinhas têm de optar por enfrentar a Corte Marcial ou encarar novamente o inimigo. Os remanescentes do grupo rumam para outro ousado objetivo militar: desarmar o campo minado mais temido da Itália. No caminho, encontram um Italiano arrependido que quer se tornar partisan e um oficial alemão cansado da guerra. Com ajuda do ex-inimigo, conseguem realizar uma missão considerada impossível.

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL, de Julio Bressane

Sinopse: Educação sentimental narra a relação singular entre Áurea, uma professora solitária de 40 anos, e um jovem que ela acaba de conhecer por acaso – um desses encontros que a mitologia e a literatura estão fartos, uma alma sensível que se vê atraída por uma beleza que a solicita, a perturba, a move. Que a abala toda. Nos dias que se seguem ao primeiro diálogo entre os dois, ela irá mostrar todo o seu sentimento através de aulas em que ele se deixará levar até que uma história inusitada do passado se revela e transforma tudo dali por diante. Festival de Locarno 2013.

JOGO DAS DECAPITAÇÕES, de Sergio Bianchi

Sinopse: Leandro, um jovem insatisfeito com seu trabalho, a partir do seu mestrado sobre a ditadura militar no Brasil, começa uma busca pelo controverso artista recém-falecido Jairo Mendes e seu filme Jogo das decapitações, censurado em 1973.

MATO SEM CACHORRO, de Pedro Amorim

Sinopse: Deco e Zoé se conheceram quando ele quase atropelou Guto, um cachorro que desmaia toda vez que fica animado. Mas depois de um relacionamento de dois anos, Deco leva um pé na bunda de Zoé, que fica com Guto e de sobra arruma um novo namorado. Deco, revoltado, tentará tomar as rédeas da situação e, com a ajuda do primo Leléo, pegar seu cachorro de volta.

O HOMEM DAS MULTIDÕES, de Marcelo Gomes e Cao Guimarães

Sinopse: Juvenal é um maquinista de metrô em Belo Horizonte, Margô controla o fluxo dos trens. Ambos vivem em um estado de profunda solidão – cada um à sua maneira. Esse filme é uma reflexão sobre diferentes formas de solidão e amizade no universo urbano brasileiro.

O LOBO ATRÁS DA PORTA, de Fernando Coimbra

Sinopse:  Uma criança é raptada. Na delegacia, Sylvia e Bernardo, pais da vítima, e Rosa, a principal suspeita e amante de Bernardo, prestam depoimentos contraditórios que nos levarão aos recantos mais obscuros dos desejos, mentiras, carências e perversidades do relacionamento desses três personagens.

O MENINO E O MUNDO, de Alê Abreu

Sinopse: Sofrendo com a falta do pai, um menino deixa sua aldeia e descobre um mundo fantástico dominado por máquinas-bichos e estranhos seres. Uma inusitada animação, realizada com diversas técnicas artísticas, que retrata as questões do mundo moderno através do olhar de uma criança.

TATUAGEM, de Hilton Lacerda

Sinopse: Ao iniciar o esgotamento político do golpe militar no Brasil (1978), acompanhamos o romance entre um soldado de 18 anos e um agitador cultural, dono de um cabaré anarquista. Confrontos e reflexões de uma geração analisados a partir da periferia. A exceção pautando a visão da regra.

 

A ditadura vai ao cinema: 30 anos de filmes sobre o regime militar

dom, 22/09/13
por Luciano Trigo |
categoria Todas

Em “Ditadura em imagem e som – 30 anos de produções cinematográficas sobre o regime militar brasileiro”, a cientista social e pesquisadora Caroline Gomes Leite faz um inventário crítico dos filmes nacionais que problematizaram, por ângulos variados, o regime militar e a repressão ao longo de três décadas. Seu recorte não é o cinema feito sob a ditadura, mas o cinema feito sobre a ditadura, estabelecendo como marco inicial 1979, o ano da Lei da Anistia e da revogação do AI-5, início da redemocratização do país. É um trabalho ambicioso em volume e escopo, resultado de uma pesquisa acadêmica empreendida com rigor, mas é também uma leitura atraente para qualquer leitor minimamente interessado no assunto.

A conclusão que tiro da leitura, contudo, não está no livro. O que mais me chamou a atenção, ao recapitular dezenas de longas-metragens que fixaram em nosso cinema e em nosso imaginário coletivo um discurso compartilhado sobre a ditadura, foi o fato de que no Brasil não se aplica o velho adágio de que a História é contada pelos vencedores. Ao contrário, ainda sob o regime militar prevaleceu no cinema brasileiro o ponto de vista dos derrotados e das vítimas, dos perseguidos e torturados, dos inocentes e dos exilados – mesmo, paradoxalmente, naqueles filmes realizados sobre os auspícios da Embrafilme, órgão do Governo, sendo o caso paradigmático “Pra frente, Brasil”, de Roberto Farias (1982) – que, esclarece a autora, não foi o primeiro longa a tratar da tortura, como se costuma pensar, já que antes dele vieram os “esquecidos” “E agora, José? Tortura do sexo”, de Ody Fraga, e “Paula – A história de uma subversiva”, de Francisco Ramalho Jr, ambos de 1980. Patrocinado pela ditadura e proibido pela mesma ditadura durante quase um ano (até que passassem a Copa e as eleições de 1982), “Pra frente, Brasil” permanece como um exemplo notável de como eram confusas as relações entre cinema e Estado no período.

 

“O golpe civil-militar de 1964 atingiu com grande impacto o cinema brasileiro – ou ao menos sua parcela identificada com um projeto nacional com tendências de esquerda, abrigada sob o nome de Cinema Novo”, escreve a autora na Introdução, para logo em seguida lembrar que esses mesmos cineastas identificados com uma proposta radical de transformação social buscaram abrigo na “Embra”, criada pelos militares. Essa contradição aparente se prolonga após a redemocratização, na medida em que os cineastas precisaram conciliar seus projetos com a dependência do Estado e as exigências do mercado , na busca por uma audiência popular, mas não é este o foco do livro: Caroline está menos interessada em examinar as condições de existência do cinema brasileiro que os enunciados por meio dos quais este cinema “ressignificou” o regime militar, apreendendo os filmes “como intérpretes do passado a partir de seu lugar no presente”.

Essa análise é estruturada em seis capítulos temáticos, nos quais uma “panorâmica” – uma visão geral do modo como o cinema abordou determinados aspectos da ditadura – é sucedida por um “close”, no qual o olhar da autora se detém sobre filmes específicos e representativos. Os temas incluem a tortura, a visão da direita, a luta armada, a alienação da sociedade e a relação das novas gerações com o período. Em relação à tortura, por exemplo, a autora enfatiza os graus com que diferentes filmes – “O bom burguês” (1983), “Kuarup” (1989), “Corpo em delito” (1990), “Lamarca” (1994), “O que é isso, companheiro?” (1997), “Ação entre amigos” (1998), “Zuzu Angel” (2006) e ”Batismo de sangue” (2007) , entre outros – explicitam (ou não) a vinculação da tortura a uma política de Estado, vinculação muitas vezes camuflada ou atenuada.

     

Mas o capítulo mais interessante e original de “Ditadura em imagem e som” é “Direita nas telas”: aqui Caroline empreende o exame necessário de um vício recorrente em nosso cinema: a de reduzir os militares e agentes da repressão a homens essencialmente maus que, por características intrínsecas, agem com truculência e crueldade, sem qualquer contextualização histórica e, principalmente, sem discutir o ideário que referendou a ação desses vilões e sua aceitação e respaldo por boa parte da sociedade brasileira. A julgar pela maioria dos filmes que trataram do assunto, a ditadura militar não teve antecedentes nem descobramentos na nossa política e na nossa História, como se fosse um período isolado em si mesmo, um tumor a-histórico, sendo que o “povo” não teve nada a ver com isso (salvo na condição de vítima). Isso se deve em parte ao impulso de enquadrar as narrativas fílmicas sobre a ditadura nas fórmulas cinematográficas tradicionais de matriz hollywoodiana, construindo-se sempre uma “polaridade que opõe regime criminoso e vítimas inocentes, sem especificar os termos do conflito” (a frase é do crítico Ismail Xavier, muito bem citado pela autora, que completa: “(…) a caracterização dos opressores é rasa e baseada no caráter pessoal dos personagens”.

 

Cabe lembrar aqui uma exceção: o excelente documentário “Cidadão Boilesen” (2009), que explora a pouco lembrada aliança econômica e política entre empresários e militares no combate à ameaça da esquerda – aliança que tem levado historiadores a adotar com cada vez mais frequência a expressão “golpe militar-civil”. Já no último capítulo, sobre a herança do período para as gerações subsequentes, incluindo a minha, que nasceram e cresceram sob a ditadura, Caroline trata das maneiras  como o cinema retratou a dificuldade de identificação dos jovens das classes médias com os embates ideológicos de seus pais. Para essas gerações, por exemplo, as drogas e o sexo livre já eram parte do cotidiano, e não instrumentos de protesto capazes de acrescentar algum sentido à vida.  Merece destaque aqui o filme “Paula – A história de uma subversiva” (1979), de Francisco Ramalho Jr, que aborda as aflições, conflitos e desencontros amorosos de um grupo de jovens nos anos 80.

 

A vida aventurosa de Robert Capa, fotógrafo de guerra

dom, 15/09/13
por Luciano Trigo |
categoria Todas

Uma controvérsia cerca até hoje a fotografia mais famosa de Robert Capa, ‘O Soldado Caído’, feita durante a Guerra Civil espanhola e publicada na revista francesa “Vu” em 1936 (e republicada na “Life” no ano seguinte, quando ganhou repercussão internacional): desde os anos 70 vários pesquisadores afirmam que se trata de uma imagem encenada, ou mesmo que se trata do registro de um escorregão, e não do momento da morte de um soldado. Ainda assim a imagem permanece como um poderoso símbolo do absurdo da guerra, de qualquer guerra. O caso mostra como Robert Capa e o próprio fotojornalismo são temas difíceis e cheios de ambiguidades, mas Alex Kershaw enfrenta com competência o desafio de abordá-los na biografia “Sangue e Champanhe – A Vida de Robert Capa (Record, 340 pgs. R$ 42,90).

Sintomaticamente, o próprio Robert Capa batizou seu livro de memórias de “Slightly Out of Focus“ – “Ligeiramente fora de foco” – como que reconhecendo algumas liberdades e distorções no texto. Kershaw alcança um equilíbrio delicado  entre a reconstituição anedótica de uma vida aventurosa e a composição de um personagem multifacetado e cheio de defeitos, capaz de despertar ódio e desprezo, mas ainda assim digno de admiração. Como se não bastasse uma trajetória profissional marcada pela cobertura de cinco guerras e pelas amizades e/ou relacionamentos amorosos com celebridades, deixando retratos memoráveis de várias delas, Capa foi o primeiro jornalista a morrer na Guerra do Vietnã, abatido por um morteiro enquanto buscava mais uma imagem.

Nascido em Budapeste em 1913 , André Friedmann, aka Robert Capa, fugiu do país natal para Berlim, ainda adolescente,  a tempo de testemunhar a ascensão de Hitler. Ainda muito jovem, de posse de uma Leica, chamou a atenção dos colegas pela primeira vez com uma fotografia de Leon Trotsky discursando para uma multidão sobre o significado da Revolução Russa, em sua última aparição pública. Mudando-se para Paris na década de 30, passou por sérias dificuldades econômicas, vendo-se obrigado mais de uma vez a pescar suas refeições no Sena.

Robert Capa em ação no Dia D

Capa adotou seu “nome de guerra” quando decidiu partir com a namorada comunista para a Espanha, para apoiar a causa republicana. Lá ficou amigo de Ernest Hemingway, Martha Gellhorn e Herbert Matthews, correspondente do “New York Times”. Quando a namorada morreu atropelada por um tanque desgovernado, Capa afirmou: “Em uma guerra você precisar amar ou odiar um dos lados. Se você não tomar uma posição, não será capaz de suportar o que acontece.”

A cobertura do desembarque das tropas americanas na costa da Normandia, no “Dia D”, foi consagradora: as fotografias de Capa permanecem como o registro insuperável daquele momento histórico. O fotógrafo já era uma lenda quando fundou a Agência Magnum, em 1947, até hoje em funcionamento, revolucionando o mercado internacional de direitos autorais na fotografia. Capa também visitou a União Soviética de Stálin e viveu em Hollywood no pós-guerra, quando conviveu com John Steinbech, e o cineasta John Huston, sempre provocando impressões profundas.  Em 1948, estava no recém-criado Estado de Israel para registrar os conflitos entre árabes e judeus.

Depois de testemunhas os horrores de cinco guerras, e à medida que crescia sua reputação internacional, Capa se tornou mais cínico, arrogante, esbanjador (era um perdedor inveterado no pôquer) e mulherengo – Ingrid Bergman foi uma de suas inúmeras conquistas. Aos 41 anos, em 1954, partiu para a Indochina em sua última missão.

Quando foi lançada nos Estados Unidos, a biografia escrita por Alex Kershaw foi bastante criticada tanto pelos fãs quanto pelos detratores do fotógrafo, o que não deixa de ser um bom sinal: temos aqui um retrato sem retoques, como convém a qualquer biografia com pretensão de seriedade, deixando para o leitor a tarefa de formular qualquer julgamento. De qualquer forma, Capa será sempre lembrado pelas fotos que tirou, e não pela imagem que deixou.

GALERIA:

Em ‘Divórcio’, o drama pessoal é ponto de partida para a ficção

dom, 08/09/13
por Luciano Trigo |
categoria Literatura

Em agosto de 2011, casado há apenas quatro meses, o narrador do romance “Divórcio”(Alfaguara, 240 pgs. R$39,90) encontra acidentalmente o diário da mulher, onde lê: “O Ricardo é patético, qualquer criança teria vergonha de ter um pai desse. Casei com um homem que não viveu.”. “Depois de quatro dias sem dormir, achei que tivesse morrido”, o narrador desabafa, antes de mergulhar na análise de “seu desmoronamento”, em uma tentativa de compreender o que passou. A literatura e intensos treinos de corrida  funcionam como pontes para o resgate da lucidez.

O Ricardo em questão não é (ou é, se assim parece ao leitor) Ricardo Lisias – apesar da coincidência de nomes e de situações, já que o escritor também se separou após um casamento-relâmpago. Até que ponto a memória alimentas a (auto)ficção? Esse jogo entre realidade e imaginação, de limites tênues e ambiguidades várias, está mais explícito no romance, porém, que na voz do romancista: nesta entrevista, ele nega que o paralelo vá além do ponto de partida. Outro drama pessoal, aliás, já tinha inspirado outro livro seu, “O céu dos suicidas”. A literatura tem a última palavra, mas quem a interpreta é o leitor.

Leia aqui um trecho de “Divórcio”.

- Olhando para trás, você considera que existe uma linha evolutiva na sua ficção? Como “Divórcio” se relaciona com outros livros seus, como “O céu dos suicidas” e “O livro dos Mandarins”?

RICARDO LISIAS: Acho que existem pontos de convergência como, por exemplo, a tentativa de examinar a figura do narrador dentro da obra literária. Do mesmo jeito, creio que os livros discutam espaços de poder estabelecidos na sociedade. Em “O livro dos Mandarins”, observei ficcionalmente o chamado mundo corporativo; em “O céu dos suicidas”, analisei o discurso sobre o suicídio produzido pela psicanálise e pela religião; “Divórcio” discute, entre outras questões, o jornalismo.

- Em “O céu dos suicidas”, a ficção foi alimentada por um drama pessoal, o suicídio de um amigo. Qual é o grau de autobiografia presente em “Divórcio”? E qual o grau de (auto)ficção?

LISIAS: Como já afirmei em outras entrevistas, o ponto de partida de “O céu dos suicidas” e de “Divórcio” foi pessoal e traumático. Para além do ponto de partida, os dois livros são ficcionais.

- Li que seu casamento durou apenas quatro meses, e antes de lançar o romance você tratou do tema em três contos sobre separação. De que forma sua ex-mulher, os amigos em comum, a família dela e a sua lidaram com a separação e com o romance? Houve muitos conflitos?

LISIAS: A ficção e mesmo a obra de arte em geral têm como pressuposto a liberdade de seu espectador. A maneira com que qualquer leitor interpreta o meu livro é de responsabilidade dele próprio. Não tenho nenhum interesse por nada que não seja literatura.

- A exposição de episódios da vida pessoal que envolve também outras pessoas não cria uma questão ética? Como você lida com ela?

LISIAS: Como eu disse, cada leitor é livre para fazer a própria leitura. A literatura – e de novo a arte de maneira mais ampla – não é capaz de reproduzir a “realidade”. Assim, nenhum romance “expõe” a vida de seu autor ou de qualquer outra pessoa, mas sim cria personagens e situações ficcionais.

- Quando você escrevia, que leitores tinha em mente?

LISIAS: Quando escrevo, penso apenas em meu projeto estético. Creio que aos poucos e de maneira consistente ele esteja sendo percebido.

- O casamento, no romance, começa a desmoronar quando o narrador lê o diário de sua mulher. Considerando que um diário é também uma forma de literatura, dá para especular que nessa história os textos prevaleceram sobre a vida “real”, extraliterária, determinando seu rumo. “Divórcio”, nesse sentido, seria sobre o conflito entre literatura e vida, mais do que sobre uma separação. Você concorda?

LISIAS: Não creio que a literatura se refira em nenhum grau à “vida” de seu autor ou de quaisquer outras pessoas. A ferramenta da literatura é a linguagem verbal e a Linguística, entre outros campos do conhecimento, já mostrou que ela não é capaz de abarcar a “realidade”. Então não acho a relação possível.

- Qual a importância da psicanálise na sua atividade literária? Você usa a literatura como uma forma de (auto)terapia?

LISIAS: Freud, Lacan e M. Khan foram leituras muito importantes para mim e de certa forma constituem a minha rede de influências. Mas não escrevo por razões terapêuticas e sim estéticas.

 - Há pouco mais de um ano, você declarou: “Na literatura brasileira, os escritores são amigos ou filhos de alguém influente. Eles escrevem para esta gente e para um grupo de jornalistas e editores literários. A literatura que se faz aqui é um pouco o que é o Brasil. Mas os livros são ruins. É ficção de bom aluno de escola particular. Mas o crescimento do mercado reduz a pressão dessas políticas de compadres e amigos”. Continua pensando isso? O que mais teria a acrescentar?

LISIAS: Creio que haja no Brasil uma ficção bem comportada em termos formais e que não cria nenhuma tensão com a sociedade e nem discute nenhum espaço de poder. É uma ficção que, embora vista como se fosse ‘literatura’, não incomoda ninguém, o que acaba inclusive facilitando sua recepção imediata. Creio que inclusive exista mesmo quase um gênero no Brasil, o da “ficção que não incomoda”. Essa ficção também é promovida através de redes de convivência e de influências. Tudo isso, porém, está fazendo água e sendo notado por parte da crítica, sobretudo a menos imediata. Há por sua vez uma literatura de alto impacto estético sendo praticada, publicada e cada vez mais bem considerada.

- Com que escritores brasileiros em atividade você dialoga? Quais foram os últimos grandes livros de ficção nacional que você leu?

LISIAS: Gosto bastante do trabalho do José Luiz Passos, por exemplo. Achei o romance “Manual da destruição de Alexandre dal Farra” muito bom. Também, gosto do trabalho da Beatriz Bracher, entre muitos outros.

- E quais são suas influências na literatura internacional? Por exemplo, já apontaram semelhanças os primeiros livros de Philip Roth e a sua ficção, você concorda? Que outros autores ajudaram a formar a sua voz literária?

LISIAS: Li bastante o chamado “primeiro modernismo”: James Joyce, Virginia Woolf, Marcel Proust, Kafka, Gertrude Stein e Samuel Beckett. Li sem dúvida com bastante atenção os romances de Philip Roth, J.M.Coetzee, Herta Muller e Georges Pérec. Também li e continuo lendo filosofia do século 20 e contemporânea, de que aliás gosto muito. Mas o que eu gosto de verdade é de simplesmente ler.

 - Crescentemente o escritor no Brasil tem que ser também um marketeiro de si mesmo para ter uma existência social, participando de eventos como a FLIP, buscando a atenção da mídia etc. Quais são os efeitos disso?

LISIAS: O marketing que você identifica me parece ser uma das etapas da profissionalização do mercado editorial. Mas não acho que se possa separar a mídia disso, que na verdade hoje é no mais das vezes um braço desse mesmo mercado editorial. Há muitos espaços abertos e muita gente disposta a preenchê-los. Alguns desses espaços são muito interessantes, outros me parecem apenas oferecer camadas de verniz intelectual. Acho que a literatura deve colocar em questão todos os discursos de poder, inclusive o dela mesmo.

- Num país onde se lê tão pouco e é praticamente impossível viver de literatura, o que te move como escritor? O que te faz mergulhar no empreendimento de escreve um novo romance? O que você busca?

LISIAS: Gosto bastante de inventar. A literatura é um trabalho de invenção que me oferece desafios. Ela também intervém na sociedade. Quanto mais sofisticada, mais eficaz será essa intervenção. É nesse campo que procuro trabalhar.

 

‘Dever’ marca os 50 anos de poesia de Armando Freitas Filho

dom, 01/09/13
por Luciano Trigo |
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Reunindo poemas escritos entre 2007 e 2013, “Dever”, lançado pela Companhia das Letras, coroa 50 anos de poesia de Armando Freitas Filho – inciada com a publicação de “Palavra”, em 1963.  A primeira parte do livro, “Suíte”, é uma espécie de continuação de seu livro anterior, “Lar”: a memória – afetiva ou familiar, resgatada e reinventada – é aqui a protagonista: Armando busca no retrovisor as marcas de casas, roupas, móveis e objetos do cotidiano, fazendo desses resíduos do passado fundamentos para uma poesia introspectiva, que tem algo de balanço e inventário. Na segunda parte do livro, “Anexo”, o autor se volta para o presente, mas sem abrir mão do registro transfigurador capaz de transformar o noticiário em poesia. Na parte final, “Numeral”, ele dialoga com poetas mais jovens, com poemas em que prevalecem reflexões sobre a vida amorosa. Nesta entrevista, Armando Freitas Filho fala sobre o seu processo de criação, seu diálogo com colegas de diferentes gerações e afirma que envelhecer é arrasador. 

- Por que “Dever”? O título sugere uma aproximação da sua poesia com a reflexão ética sobre a vida, é por aí?

ARMANDO FREITAS FILHO: Não tive esse pensamento grandioso. Devia ter tido. O resultado seria melhor, sem nenhuma dúvida. O que pensei foi o que ficou expresso neste “Numeral”:

 126

Entreviver

imprensado, entre

dever e dever.

Entre o substantivo e o verbo

sem distinguir, na passagem

qual é um, qual é o outro

quando é vento ou evento

em constante interrogação

entrevistando-me

se não é devir o que devo

escrever – transitivo, direto

e ficar, sem dúvida, só e fugaz

na preposição simples, essencial

no perigo do pensamento impossível.

 9 III 2009

 E na epígrafe de Clarice Lispector: “O horrível dever é ir até o fim.”                                                 

- Quando lançou “Lar”, em 2009, você declarou que aquele era seu livro mais importante. Que comparação faz entre os poemas de “Dever” e os de “Lar”?

ARMANDO: “Lar” foi o começo de uma investigação sobre o que a memória poderia me render; não é um livro de memórias, mas da memória. Ocorreu que puxar por ela teve um rendimento maior do que eu esperava, quantitativamente falando. Pensei até em fazer um Lar, em dois volumes. Mas não consegui, na ocasião, transformar a quantidade em qualidade. Desisti, então. Mas de repente recuperei a capacidade. A primeira parte de “Dever”, por isso mesmo, chamada de “Suíte”, é composta por poemas que não se aprontaram, a tempo de entrar em “Lar”. Nem todos se aprontaram, falando mais exatamente. Posso dizer, portanto, que caminho para fazer uma trilogia involuntária. Vamos ver se consigo.  

- O que o Armando de hoje diria ao Armando de 23 anos que publicava seu primeiro livro? E o que você acha que aquele Armando responderia a você?

ARMANDO: Tenho muita ternura por aquele Armando inicial. Penso que ele me diria que estava surpreso por eu ter crescido tanto.

- Aos 73 anos, como você conjuga o verbo “envelhecer”? Que impacto a passagem dos anos está tendo na sua poesia e, também, na sua vida?

ARMANDO: Envelhecer é arrasador: o túnel não tem luz no final e você já o enxerga, sem nenhuma metáfora. Na poesia que faço, não a sinto alquebrada; mas pode ser uma ilusão.

- Você já se referiu à poesia usando a palavra “fé”. Que fé seria essa, e qual o laço, se existe, entre a sua poesia e a religiosidade?

ARMANDO: Não existe laço premeditado. Deus é fugidio para mim: é part time. Como muita gente, o procuro e a seus santos quando a coisa aperta. Há em Dever um poema que retrata essa relação ambígua:

 COMUNHÃO

 Onde Deus começa é discernível.

Na cruz, na força parada das imagens

nos nichos das igrejas, preso, no ferro

na parede, na ferocidade da fé.

O corpo seminu, torturado e imóvel

no marfim da morte, ferido

pelo esplendor de pregos e espinhos

sob o cerco de orações e lágrimas

verte suor e sangue cenográficos

de esmalte e rubi, sob o céu pintado.

Rangido de reza, mãos postas

unhas sujas no mármore do altar

onde Ele acaba, indistinto e puro.

- “Componho/ para frente, onde o leitor se forma/ no espaço e lê, e leva o que possuiu”. Neste e em outros poemas você reflete sobre o próprio ato da criação poética, numa espécie de meta-poesia. Isso nasce de uma necessidade de entender o processo criativo? Seria também um sinal de que a poesia contemporânea se volta cada vez mais para si própria?

ARMANDO: No meu caso, sim. Me entendo no processo criativo e a recíproca é verdadeira; e aí, me estendo. “Numeral” meu poema-enguia, como disse uma vez Sebastião Uchoa Leite, não a respeito dessa composição que não tem fim, mas em geral sobre a minha poesia, é um exemplo vivo disso. Creio que não só a poesia contemporânea tem esse viés. Toda a poesia moderna, mais ou menos, apresenta essa inclinação. Não acho que seja um sinal relevante na poesia contemporânea, muito pelo contrário; o que vejo na poesia atual é a predominância de uma voz coloquial que a leva para fora de si, com um olho na rua. A minha geração estava muito mais presa ao metapoema, de variada extração, do que a de agora. No que me concerne, procuro antepor a essa tendência, uma poesia “no olho da rua”, por assim dizer, como fiz na segunda parte de Dever, que se chama “Anexo”. 

- Com 50 anos de poesia, olhando para trás você enxerga uma evolução linear na sua obra ou um caminho ziguezagueante? Em que sentidos a sua poesia se transformou, ao longo de cinco décadas?

ARMANDO: Creio que o caminho percorrido não é ziguezagueante (bem que poderia ser). Ele é linear, mas sobressaltado por alguns desvios e recapitulações que procuram novos pontos de vista sobre o mesmo motivo, que são mais problemas do que temas. Essas variações, dentro de um mesmo canal, ajudaram a manter tanto mudança quanto coesão sem perder o fio, como está dito na orelha de Dever. O poema ganhou mais musculatura e alcance, visível na mancha gráfica e no seu respectivo conteúdo, que incorporou um leque de interesses maior.

- Eu percebo no livro um impulso de revisão de sua história familiar, ainda que nem sempre explícita, e lembro que a morte do seu pai, anos atrás, teve um impacto grande sobre você.

ARMANDO: Meu pai foi meu esteio, e continua sendo. A lembrança dele me fortifica muitíssimo. A sua ajuda era toda feita de grandes e pequenas ações, sem maiores declarações. Minha mãe mais distante na idade adulta foi de uma presença decisiva na minha formação: sua aspereza e ironia, como que temperava sua relação comigo. Fui mimado a seco, digamos assim.

- Por que não existem mais poetas da importância de Drummond, Cabral e Bandeira? Você considera que a poesia brasileira perdeu relevância?

ARMANDO: Se eu achasse como você, não escreveria uma linha ou escreveria broxando. É cedo para esse diagnóstico severo. Amo os meus 3 mosqueteiros e mais Gullar D’Artagnan,   prova viva que vale a pena tentar.  Carlos Drummond disse que “o meu ódio é o melhor de mim” e já que amor e ódio, para mim, estão misturados na mesma face da moeda, meu amor por ele é de apache, sujeito a flechas de variado veneno; a ele e aos dois outros citados. Por que você põe, todos põem, os poetas para competir? Volta e meia, aparece alguém dizendo: o maior poeta vivo é fulano de tal; com os prosadores não acontece isto. A gente precisa de todos: Carlos Drummond comeu Bandeira e João Cabral comeu Drummond. Tem sentido esse reinado amalucado, de fantasia?! A estante da posteridade é maior do que você pensa, a meu ver, ou tenho esperança.

 - Com que poetas em atividade você dialoga?

ARMANDO: Infelizmente, minha geração está morrendo precocemente. Alguns dos meus mais íntimos amigos se foram: Tite de Lemos, Sebastião Uchoa Leite, Ana Cristina Cesar, novata, mas talento não tem idade, José Guilherme Merquior, Rubens Gerchman. Juntei um crítico e um pintor porque não vivo só de poesia. Mas em compensação, Heloisa Buarque, Maria Rita Kehl, Luiz Costa Lima estão firmes, me ensinando como sempre. Também não estão mais aqui, alguns companheiros de viagem: Cacaso, Leminski, Waly Salomão, Guilherme Mandaro. Mario Chamie.  Com os mais moços: Eucanaã Ferraz, Antonio Cícero, Mário Alex Rosa, Alice Sant’Anna, Laura Liuzzi, Sylvio Fraga Neto, Sergio Alcides, Eduardo Coelho, Mariana Quadros (os três últimos críticos de primeira água, sendo que Sérgio também é poeta em franca ascensão), converso sempre muito proximamente e com grande proveito. 

- Ana Cristina César está para ser reeditada. A poesia dela envelheceu bem? O que ela ainda tem a dizer para os leitores de hoje?

ARMANDO: Sou o coordenador editorial da Obra poética dela que a Companhia das Letras vai lançar em novembro, além de ser curador há 30 anos de toda sua obra. Ana Cristina não envelheceu nada, está nova em folha, não tem um fio de cabelo branco posso assegurar. Sei que ela tem muito a dizer, porque uma geração e meia se passou e a procura por sua poesia insinuante, que combina tão bem “ficção e confissão”, continua  crescente, sempre provocadora, exigindo releituras. Nunca vi uma poeta morta tão viva!

Leia aqui um trecho de “Dever”.

LIVROS DE ARMANDO FREITAS FILHO

1963    Palavra

1966    Dual

1970    Marca registrada

1975    De corpo presente

1979    À mão livre

1982    Longa vida

1985    3×4

1988    De cor

1991    Cabeça de homem

1994    Números anônimos

1997    Duplo cego

2000    Fio terra

2003    Máquina de escrever —  Poesia reunida e revista

2006    Raro mar

2009    Lar

2013     Dever